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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000100003 

    BRASIL
    ENTREVISTA CÉLIO BERMANN

     

    Produção de energia elétrica a partir de usinas nucleares é desnecessária no país

     

     

     

    Frequentemente a região de Angra dos Reis, no litoral fluminense, é atingida por grandes deslizamentos de terra. A fragilidade geológica da região, origem de muitos transtornos para turistas e para a população local, já era conhecida por seus primeiros habitantes. Os indígenas que ali viviam deram à região o nome de Itaorna, ou "terra podre", em tupi-guarani. Para o engenheiro Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), as características do terreno em Angra são fonte de um outro tipo de preocupação: a segurança do complexo nuclear brasileiro, que em 2015 completa 15 anos, composto por duas usinas em atividade, Angra I e Angra II, e mais uma que deve entrar em operação até 2018, Angra III.

    "O que houve em Fukushima pode acontecer em Angra", alerta Bermann, referindo-se à possibilidade de um desastre provocado por deslizamentos de terra e pedras, que poderia afetar o sistema de resfriamento dos reatores das usinas nucleares. Num momento em que a crise hídrica destaca a necessidade de se diversificar o modelo de produção de energia elétrica no Brasil, ainda fortemente baseado em hidrelétricas e em seu pressuposto de uma perene abundância de água, Célio Bermann falou à Ciência & Cultura sobre os riscos do uso da energia nuclear como alternativa de geração de energia elétrica. E alertou: é preciso mudar o atual sistema de fiscalização de nossas operações nucleares.

     

    O que os brasileiros deveriam saber em relação à geração e ao uso da energia nuclear no país?

    CB - A energia nuclear sempre foi entendida sob o ponto de vista do "secreto". Seu debate nunca foi devidamente popularizado e segue como um tema fechado para o público. Infelizmente, a população não tem acesso a informações sobre as atividades nucleares no Brasil. Isso é assim por dois motivos: primeiro, pela dificuldade de tanto as instituições governamentais como as empresas envolvidas com atividades nucleares prestarem esse tipo de informação; segundo, pela falta de um órgão, no país, que possa servir de ponte entre as atividades nucleares. A criação de uma agência nuclear no Brasil é algo absolutamente necessário para que haja uma efetiva fiscalização e monitoramento dessas atividades, assim como um acesso público a elas.

     

    A agência à qual o senhor se refere seria nos moldes da Anvisa, da saúde, só que na área nuclear?

    CB - Sim. Um projeto que visa criar essa agência tramita há bastante tempo no Congresso Nacional, mas não vai para frente. E não anda porque a instituição que hoje tem a responsabilidade de fazer a fiscalização, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), é a mesma que opera as nossas usinas nucleares. Para que a fiscalização e o acesso à informação sejam feitos de forma isenta há a necessidade de se desvincular o órgão de operação do órgão de fiscalização das atividades nucleares. A ideia da criação de uma agência nuclear tem sido levantada por vários colegas, tanto da academia como das próprias empresas envolvidas com as atividades nucleares no país, um grupo que não se restringe à Eletronuclear, atuante na área de geração de energia elétrica, mas inclui empresas que se dedicam a outras atividades proporcionadas pela energia nuclear - como, por exemplo, a utilização de radioisótopos na medicina.

     

    Que porcentagem do total de energia elétrica consumida hoje no país é gerada pelas usinas nucleares?

    CB - A informação oficial da participação da energia nuclear na produção de energia elétrica é de menos de 3% (2,7%) hoje. Esses são dados oficiais do Balanço Energético Nacional, documento produzido pelo Ministério das Minas e Energia no ano de 2013, com referência aos dados de 2012. A perspectiva - pelo menos é o que dizem os planos de longo prazo para essa área -, é de um aumento da participação da energia nuclear na produção de energia elétrica no país. O plano do Ministério para 2030 menciona a construção de mais seis usinas nucleares no Brasil. Pelo menos três delas seriam construídas às margens do Rio São Francisco, na região da usina hidrelétrica de Itaparica.

     

    Precisamos da matriz nuclear para garantir a qualidade de vida das próximas gerações de brasileiros?

    CB - Discordo de que a energia nuclear seja uma modalidade que evita a emissão de gases de efeito estufa. O processo de produção de energia nuclear também gera esses gases, tanto na construção como na manipulação do elemento nuclear. Mas no Brasil, e também no exterior, se constrói a falsa ideia de que a produção de eletricidade a partir da energia nuclear é benéfica porque evita a emissão de gases de efeito estufa durante a operação das usinas.

     

    E isso não é verdade?

    CB - Se pensarmos exclusivamente na operação, isso é verdade. Mas a pergunta é: diante dos riscos - e Fukushima evidenciou que esses riscos não são pequenos - o uso dessa alternativa vale a pena? O que a indústria nuclear sempre argumenta é que a probabilidade de ocorrência desses acidentes é muito pequena - e isso é verdade. Mas a questão é que uma vez que eles aconteçam, as consequências são absolutamente incontroláveis. As duas usinas brasileiras em operação na região de Angra dos Reis - Angra I e Angra II - têm um problema seríssimo em relação às condições de segurança. Esse problema não é que nós podemos ter um terremoto ou tsunami naquela região, mas o fato de que aquela área é extremamente frágil sob o ponto de vista geológico. O que aconteceu em Fukushima pode acontecer em Angra. Um deslizamento de terra de grandes proporções que afete as linhas de transmissão de energia elétrica para as usinas pode fazer cair o fornecimento de eletricidade para o bombeamento da água do mar, usada no resfriamento dos reatores.

     

    Não existe um plano de contingência para essa situação?

    CB - Desconheço se a Eletronuclear tem back-up para esse tipo de situação, ou seja, se dispõe de pequenas usinas de geração de energia elétrica a diesel. Desconheço também a capacidade de geração de energia dessas usinas e o tempo que elas podem operar. O que aconteceu em Fukushima foi a ausência de energia elétrica para resfriar os reatores - e isso pode muito bem acontecer em Angra. E as condições para evacuação na região são absolutamente inexistentes.

     

    Não existe então um plano de evacuação e treinamento da população no caso de um acidente nuclear?

    CB - Os administradores dizem que sim, que há um plano. Mas trata-se apenas de algo para fazer constar que há um plano. Não há treinamento da população, que desconhece os procedimentos necessários numa emergência - e, pior do que isso, não existem condições físicas para promover a evacuação da área. A única via de acesso à região, que é a rodovia Rio-Santos, fica intransitável em época de chuvas, por conta da queda de barreiras causadas por deslizamentos de terra e de pedras - justamente os eventos que poderiam causar um acidente nas usinas de Angra. A construção da usina Angra III vai aumentar ainda mais o risco de ocorrência de um acidente.

     

    Há algo de novo em termos de segurança previsto para Angra III?

    CB - Não há nenhuma novidade em relação àquela situação que está descrita no site da Eletronuclear. Logo após o acidente de Fukushima, o presidente da Eletronuclear declarou à imprensa que o plano de evacuação não pode se estender para um raio maior do que 15 km a partir das usinas porque alcançaria a cidade de Angra dos Reis e aí "complica muito". Foi essa a expressão que ele usou. Isso é uma desconsideração com a imprensa e com a população brasileira. Não podemos admitir que a questão nuclear seja tratada dessa forma.

    O que marca hoje as atividades nucleares, assim como outras atividades de risco no Brasil, é uma situação de conivência e irresponsabilidade de parte das instituições e órgãos envolvidos. Não sou catastrofista, apenas me amparo no princípio da precaução. Não é possível que o enfrentamento de todos os acidentes que ocorrem no país fiquem restritos a uma atenção de emergência depois do ocorrido.

     

    A tecnologia usada nessas usinas tem sido atualizada?

    CB - Angra I utilizou equipamentos americanos (anos 1970). Os equipamentos de Angra III vieram da Alemanha e são os mesmos que os de Angra II (anos 1990), têm a mesma concepção, embora tenham se passado quase 20 anos. Eles ficaram no porto de Roterdam (Holanda) durante 15 anos e se desconhece as suas condições de manutenção desse período. Desconheço se a empresa responsável pela construção de Angra III está monitorando os equipamentos que ficaram estocados no porto de Roterdam nesses anos. Não vi nenhuma informação a esse respeito por parte da Eletrobrás e da Eletronuclear, sua subsidiária. É fundamental que as duas empresas disponibilizem informações ao público.

     

    Sob o aspecto econômico, a energia termonuclear é uma boa alternativa?

    Angra III, por exemplo, é uma usina extremamente cara, se formos comparar com as alternativas de geração de energia que o Brasil oferece. Há várias alternativas que poderiam suprir o montante energético que será fornecido por Angra III, a partir da biomassa, da eólica, do gás natural. Não vejo nenhum argumento plausível para a teimosia de prosseguir no processo de construção de Angra III.

     

    O senhor é favorável à utilização da energia nuclear no Brasil?

    CB - Não sou desfavorável, desde que em pequena escala e para fins da medicina e da segurança civil, como, por exemplo, no uso de dispositivos que empregam a energia nuclear na detecção de dutos subterrâneos que podem apresentar problemas de corrosão. Mas produzir energia elétrica a partir da energia nuclear é um risco, comprovado internacionalmente por evidências. Existem evidências, também, de que grande parte dos acidentes nucleares de menor proporção sequer vem a público. A energia nuclear para gerar energia elétrica no nosso país não é necessária, porque temos alternativas. Veja que não mencionei as usinas hidrelétricas, porque penso que esse tipo de energia só é uma alternativa quando as condições sociais e ambientais para a sua construção são devidamente observadas. É preciso que a população envolvida e afetada pelas hidrelétricas esteja de acordo com os projetos e que as questões ambientais sejam cumpridas. Nessas condições, considero que a energia hidroelétrica também é uma alternativa.

     

    Alice Giraldi