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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo Apr./June 2012
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200015
Aborto e violência sexual
Jefferson Drezett
Daniela Pedroso
A Organização dos Estados Americanos (OEA), durante a Convenção de Belém do Pará, em 1994, definiu por violência contra a mulher "todo ato baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como privada" (1). Nesse sentido, a violência sexual constitui uma das mais antigas e amargas expressões da violência de gênero, inaceitável violação de direitos humanos, de direitos sexuais e de direitos reprodutivos (2).
Estima-se que, anualmente, 12 milhões de pessoas sofram diferentes situações de violência sexual (3). Apenas nos EUA, calcula-se que ocorram 680 mil estupros a cada ano (4). No Brasil, dados das Secretarias de Segurança Pública apontam para a média de 8,7 estupros por 100 mil habitantes (5). As estatísticas oficiais, no entanto, expressam precariamente a magnitude do problema. Estudos populacionais indicam que cerca de 10% das mulheres da região metropolitana de São Paulo relatam terem sido forçadas, alguma vez, a praticar atos sexuais que não queriam, terem sentido medo de negar ter relações sexuais, ou terem sido submetidas a práticas sexuais degradantes e humilhantes (5).
A fundamentação da violência sexual como problema de saúde pública não se faz exclusivamente pela sua elevada ocorrência (6). Cabe considerar os múltiplos agravos para a saúde, que podem incluir traumatismos físicos severos, morte, morbidades decorrentes de doenças sexualmente transmissíveis (DST), ou desfechos da infecção pelo vírus HIV. Os danos psicológicos produzem efeitos intensos e devastadores, por vezes irreparáveis (7). Ao longo do tempo, podem se estabelecer graves transtornos da sexualidade, suicídio, depressão, bulimia, anorexia, ou dificuldades afetivas e de relacionamento (8).
Embora mais difícil de mensurar, há indicadores sobre a significativa carga da violência sobre os sistemas de saúde e sobre a produtividade econômica. Mulheres em situação de violência têm mais problemas de saúde, maiores custos com assistência e utilizam com maior frequência serviços de saúde. Quase 25% dos dias de trabalho perdidos pelas mulheres têm como causa a violência, reduzindo seus ganhos financeiros em até 20% (9). Filhos de mães que sofrem violência têm risco três vezes maior de adoecer, e cerca de 60% dessas crianças repetem pelo menos um ano na escola, abandonando os estudos, em média, aos nove anos de idade (9). Mesmo frente a tantos agravos provocados pela violência sexual, a gravidez decorrente do estupro se destaca pela complexidade dos impactos que determina, sejam na esfera emocional, familiar, social ou biológica. Para muitas mulheres essa gestação, forçada e indesejada, é entendida como uma segunda violência, intolerável e impossível de ser mantida até o término (10).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define clinicamente por abortamento a interrupção da gravidez até a 22ª semana, com produto da concepção pesando menos que 500 gramas. O aborto é considerado inseguro quando praticado em condições sanitárias precárias ou inadequadas e/ou quando realizado por pessoas não capacitadas (11). A cada ano, cerca de 20 milhões de abortos são praticados no mundo em condições de risco. Quase 95% desses abortos são realizados em países em desenvolvimento, os mesmos que insistem em manter leis severas e ineptas que proíbem o aborto. Como resultado, até 25% da mortalidade materna resulta diretamente do aborto inseguro, levando desnecessariamente à morte quase 67 mil mulheres a cada ano (12). As evidências são contundentes em demonstrar a ineficácia da proibição do aborto como forma de evitar sua prática, contrastando com os efeitos dramáticos da proibição legal sobre a morte de mulheres (8).
Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD), realizada no Cairo, em 1994, os países participantes reconheceram o aborto inseguro como grave problema de saúde pública comprometendo-se, nas circunstâncias que não contrariem a lei, em garantir acesso ao aborto em condições médicas seguras (13). As mortes maternas e as graves sequelas do aborto inseguro podem ser prevenidas utilizando-se técnicas adequadas para interromper a gravidez (12). Quando esses métodos são aplicados por profissionais capacitados em serviços de saúde qualificados, o aborto assume contornos de procedimento da mais elevada segurança (11).
Embora a legislação brasileira encontre-se entre as mais restritivas, segundo o inciso II do artigo 128 do Código Penal, de 1940, não é crime e não se pune o aborto praticado por médico quando a gravidez resulta de violência sexual (14). No entanto, o exato destino dessas gestações ainda é pouco conhecido na medida em que parte expressiva das mulheres não tem acesso a serviços de saúde que realize o procedimento (10). Por falta de informação sobre seus direitos ou por recusa dos serviços de saúde, muitas mulheres, decididas em interromper a gravidez, recorrem ao aborto clandestino, quase sempre praticado de forma insegura (8). Existe, ainda, evidente descaso de muitos gestores da saúde que descumprem, de forma injustificada, tanto as políticas públicas como as normativas médicas e científicas sobre o aborto. Entre mais de 700 municípios brasileiros se constata que quase 40% das secretarias municipais de saúde não sabem sequer responder se contam com serviço preparado para realizar o aborto em situações de violência sexual. Outros 30% simplesmente declaram que não realiza o procedimento, indiferente quanto às consequências para a mulher (15).
"A segurança do aborto também deve considerar seus efeitos emocionais para as mulheres. A chamada "síndrome traumática do abortamento" preconizada há algumas décadas, atribuía ao aborto induzido graves e permanentes danos emocionais. No entanto, estudos cuidadosos demonstraram que a "síndrome" não passa de mito (16; 17). Investigações confiáveis constatam elevada frequência de respostas emocionais adequadas ao aborto induzido legalmente, prevalecendo sobre os aspectos negativos. Além disso, verifica-se que os problemas emocionais que resultam do aborto voluntário são excepcionais, menos graves e muito menos frequentes do que aqueles que surgem com a gravidez mantida até o termo contra o desejo da mulher (18;19). Tratando-se de aborto por gravidez decorrente de estupro, esses aspectos são ainda mais evidentes. Acrescente-se que, para essas mulheres, o aborto não trouxe componentes negativos para as relações interpessoais, nem arrependimento por sua prática (20)".
"A mulher em situação de gravidez decorrente de violência sexual deve ser esclarecida sobre as alternativas frente à gestação e as possibilidades de atenção nos serviços de saúde. É direito das mulheres a informação sobre a possibilidade legal de interromper a gravidez. Da mesma forma e com mesma ênfase, devem ser esclarecidas do direito de manter a gestação até o término. Nesse caso, devem receber orientação sobre as alternativas após o nascimento, com a escolha entre manter a futura criança inserida na família, ou proceder com os mecanismos de doação (9). A decisão final, sempre difícil e complexa, cabe a cada mulher. Aos profissionais de saúde resta o respeito à autonomia da mulher em decidir", (21).
A realização do aborto em casos de violência sexual também deve obedecer ao ordenamento jurídico. Nesse sentido, a portaria MS/GM nº 1.508, do Ministério da Saúde, desde 2005 estabelece procedimentos de justificação e autorização para a interrupção da gravidez. O "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" é, juridicamente, imprescindível. Nele, deve constar a declaração da mulher e/ou de seu representante legal da escolha livre e esclarecida pela interrupção da gestação, ciente da possibilidade de mantê-la até o término e das alternativas existentes (22).
No "Termo de Responsabilidade" consta que as informações prestadas para a equipe de saúde correspondem à expressão da verdade. A mulher admite conhecer as penalidades para os crimes de falsidade ideológica e de aborto, assumindo responsabilidade sobre as informações prestadas. No terceiro documento, "Termo de Relato Circunstanciado", a mulher descreve detalhadamente as circunstâncias da violência sexual sofrida que resultaram na gravidez (12). Acrescenta-se o "Parecer Técnico", assinado por médico, atestando a compatibilidade da idade gestacional constatada com a data da violência sexual, afastando hipótese de gravidez decorrente de uma relação sexual consentida. Por fim, o "Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção de Gravidez" é firmado pela equipe de saúde e pelo responsável pela instituição (22).
A realização do aborto, nos casos de gravidez decorrente de violência sexual, não exige autorização judicial, nem depende da abertura de processo criminal ou de sua sentença, caso houver. A mulher que sofre violência sexual não tem dever legal de noticiar o fato à polícia e não está obrigada a realizar o boletim de ocorrência policial, nem o exame médico-legal. Não obstante, deve ser apoiada a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis. Caso não o faça, por motivo justificável, não há base legal para negar o aborto (9;14). Quando concluído, amostra de material embrionário deve ser identificada e preservada, disponibilizando, para as autoridades, material para análise e confronto de DNA, fundamental no processo de responsabilização do agressor (9; 23).
Mesmo com todo o rigor adotado pelos serviços de saúde, há especulações de que não exigir o boletim de ocorrência favoreceria o acesso irregular ao aborto em casos de falsa alegação de crime sexual. A realidade dos serviços de saúde permite afirmar que se trata somente de especulação. Dados controlados do hospital Pérola Byington, uma das maiores referências em violência sexual do país, mostram que quase 80% das mulheres que solicitam o aborto em caso de estupro apresentam, espontaneamente, o boletim de ocorrência policial. Além disso, cerca de 90% daquelas que ingressam sem o documento concordam e realizam a comunicação para a polícia, quando esclarecidas e apoiadas. O número de mulheres que se recusam a fazer o boletim de ocorrência é muito pequeno e, na maioria dos casos, justificado pela ameaça de morte caso revele o ocorrido para a polícia (22).
Com a retirada da exigência irregular do boletim de ocorrência das normas do Ministério da Saúde, em 2005, nenhum serviço de saúde do país registrou aumento abrupto no número de abortos realizados ou na demanda de solicitações, muito menos foram verificadas filas de "mulheres mentirosas" em sua porta. Inferir à mulher brasileira a condição de suposta "mentirosa" expressa o desrespeito aos seus direitos humanos e à sua condição de cidadania. A legislação estabelece que a palavra da mulher que afirma ter sofrido violência sexual deve ter credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade (14; 24). Mesmo assim, a busca por provas materiais da violência é tratada como prioritária. O estupro se tornou, incompreensivelmente, a única condição onde boletim de ocorrência e exame pericial precedem medidas de emergência impostergáveis, como a prevenção da gravidez e da infecção pelo vírus HIV (21).
Nesse aspecto, é fundamental destacar a questão da anticoncepção de emergência (AE) como medida crítica na assistência à violência sexual (25). Sua eficácia é elevada, com índice de efetividade médio de 80%, o que significa que a AE pode evitar, em média, quatro de cada cinco gestações decorrentes da violência sexual. Contudo, os resultados da AE superam 99% quando empregada nas primeiras 12 horas da violência sexual, mesmo período em que se costumam colocar medidas burocráticas adiante de sua prescrição (26). Alguns países com leis restritivas para o aborto insistem em proibir a AE, alegando suposto "efeito abortivo" (21; 25). Mesmo frente à ampla evidência científica que sustenta que a AE não atua após a fecundação, não altera a receptividade do endométrio, não prejudica a implantação do embrião ou resulta em sua eliminação precoce (25; 27). É paradoxal que países que proíbem o aborto e que médicos que aleguem objeção de consciência para não realizá-lo também neguem para a mulher o direito de evitar a gravidez (21).
Essas e outras dificuldades que ainda existem para a implementação do aborto em situações de gravidez decorrente de violência sexual não devem ser entendidas como barreiras intransponíveis. Há que se reconhecer o notável avanço nas políticas públicas brasileiras nos últimos 20 anos, resultado do esforço do poder público, de gestores e profissionais de saúde, do movimento de mulheres e de organizações da sociedade civil. Se, por um lado, cabe admitir que o direito ao aborto previsto por lei foi ignorado por quase 50 anos, por outro, é necessário reconhecer que a sociedade brasileira caminha, irrevogavelmente, para um tempo em que nunca mais uma mulher que sofra violência sexual será desrespeitada ou abandonada.
Jefferson Drezett é diretor do Núcleo de Atenção Integral à Mulher em Situação de Violência Sexual e Abortamento Legal do Hospital Pérola Byington. Participa como membro do Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro (Clacai), do Consórcio Internacional de Aborto Medicamentoso (ICMA), e da Comissão de Abortamento Legal da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana.
Daniela Pedroso é psicóloga do Núcleo de Atenção Integral à Mulher em Situação de Violência Sexual e Abortamento Legal do Hospital Pérola Byington, e mestranda em saúde materno infantil pela Universidade de Santo Amaro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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