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Ciência e Cultura
versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. v.60 n.2 São Paulo 2008
APRENDIZADO
Crianças com dificuldades na escola: onde mora o problema?
Alunos com dificuldades de aprendizagem que chegam ao final do ensino médio com sérias problemas de leitura e escrita, ou praticamente não alfabetizados, representam 50% das crianças brasileiras, segundo dados do Ministério da Educação (MEC). A escola, sem saber lidar com esses casos, muitas vezes, alega que a origem do quadro é patológica. Esse quadro é mais comum do que se imagina: cerca de 30% desses alunos são diagnosticados como portadores de uma deficiência, para justificar seu mau desempenho escolar. Dislexia, hiperatividade, déficit de atenção, déficit do processamento auditivo e deficiência mental são os nomes mais comuns dados ao problema.
Embora os números ainda não sejam formalmente reconhecidos pelo MEC, eles fomentam uma série de estudos que avalia a situação da educação brasileira e procura entender o que impede a aprendizagem de uma parcela tão grande de alunos.
O insucesso da criança na escola, porém, se deve a um conjunto de fatores que não são considerados pela maioria das pesquisas e mesmo pela maioria das instituições de ensino. "Alguns termos científicos escorregam de sua área de origem para um uso popular, o que contribui para que ocorra um aumento indevido do uso de determinados rótulos. Nesses tempos modernos, os termos hiperatividade e dislexia me parecem campeões", avalia Sônia Sellin Bordin, fonoaudióloga que tem estudado e trabalhado com crianças com dificuldades de leitura e escrita que receberam um "diagnóstico" para tentar explicar seu mau desempenho escolar. Segundo a pesquisadora, a internet colabora para que esses diagnósticos se multipliquem. "Basta consultar um site específico desses distúrbios para que um grande número de crianças seja reconhecido como tal. No entanto, boa parte dos critérios apontados nessas descrições serve também para uma criança normal ou portadores de outros distúrbios que não esses", pondera.
O que acaba acontecendo é uma má interpretação da postura do aluno na escola como lentidão ao realizar uma tarefa, cópia sem compreensão, ou mesmo o esquecimento do que acabou de aprender como sintomas de uma enfermidade. "Nenhum caso de diagnóstico de dislexia ou de distúrbio de aprendizagem recebido por nós confirmou-se", revela Maria Irma Hadler Coudry, professora livre-docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das fundadoras do Centro de Convivência de Linguagens grupo que se destina ao acompanhamento de crianças e jovens aos quais foi atribuído um diagnóstico médico para justificar o mau desempenho escolar. A especialista lamenta que alguns educadores cheguem a informar aos pais dessas crianças que o melhor a fazer é desistir e tirá-las da escola, já que o trabalho com elas indica, quase sempre, que não há qualquer distúrbio e que a volta à escola e a conclusão do ensino médio são possíveis.
EPIDEMIA Não há dados oficiais que indiquem a quantidade exata de diagnósticos errados atribuídos a crianças com dificuldade de aprendizagem, mas Maria Irma acredita que seja superior a 90%. "Acho importante esclarecer que em nenhum momento negamos a existência real dessas patologias, o que negamos é que elas tenham se tornado uma epidemia. Quando fazemos isso queremos propor que as escolas, as famílias e a sociedade se percebam como produtoras dessa determinada criança que se caracteriza por ser hiperativa e com distúrbio de aprendizagem, por um lado, enquanto, por outro lado, passa horas jogando vídeo-game ou em frente ao computador assimilando regras e informações a todo instante", destaca Sônia.
Mas, se essa "epidemia" de deficiência de aprendizagem não é real, o fato de que quase metade das crianças chega ao ensino médio com graves problemas de leitura e escrita é bem verdadeiro. "É comum ouvirmos dos pais a queixa de que seu filho está na quarta série ou frequenta a oitava série e não sabe ler nem escrever", afirma a fonoaudióloga. Então, onde mora o problema? De acordo com as pesquisadoras, o problema está no que as pesquisas não revelam. O não acesso a livros, gibis, jornais e revistas; a responsabilidade precoce de ter que ficar sozinho em casa cuidando dos irmãos, ou até mesmo de trabalhar para ajudar a família; a falta de comunicação entre a escola e os alunos; o despreparo e a sobrecarga dos professores; a falta de recursos material e humano das instituições de ensino são alguns dos fatores apontados pelas especialistas que acabam dificultando a aprendizagem. "São tantas barreiras e empecilhos que chega a ser incrível que algumas crianças consigam aprender num ambiente tão flagelado", afirma Maria Irma.
Também fica de fora dos estudos uma análise profunda das tarefas escolares, em sua forma e conteúdo. Exercícios descontextualizados, tarefas fragmentadas, enunciados equivocados e atividades mecânicas (como ditados, cópia e listas de palavras) constituem a base do ensino de português, mas que não exigem reflexão e não fazem sentido para os alunos. "O 'não sentido' é um sintoma de um ensino padronizado que deixa de levar em consideração as experiências de vida, a história e a comunidade (cultura) da qual a criança faz parte", diz Michelli Alessandra da Silva, lingüista e pesquisadora do Grupo de Estudos em Neurolinguística (GEN) do IEL. Isso acaba criando um círculo vicioso difícil de ser rompido: as crianças não entendem, então "erram", para tentar sanar o problema, a escola propõe a repetição dos exercícios nos mesmos moldes, que os alunos continuam não entendendo e, conseqüentemente, não acertando.
ESTIGMA Ao afirmar que o aluno com mau desempenho escolar possui uma enfermidade, o problema torna-se ainda mais complexo. "O 'rótulo' atribuído à criança repercute de forma negativa em sua vida, pois reforça apenas o que ela não é capaz de fazer; mexendo com sua auto-estima e a desencorajando, desestimulando, desanimando ainda mais a aprender", aponta a lingüista Michelli.
Antes de culpar a escola ou os professores pelo insucesso escolar de uma criança, porém, é preciso cuidado já que a própria escola pública brasileira enfrenta um processo "patológico", enfatiza Sônia Bordin. "O professor não tem mais autoridade para decidir a relação aluno/aprendizagem/ensino. Além disso, muitas vezes, em uma mesma sala de aula ele precisa abrigar crianças com problemas de leitura e escrita, na maioria das vezes simples, que se agravam porque recebem atividades/atenção diferentes das outras crianças. A escola, dessa maneira, perde a dimensão social, perde-se o respeito com a profissão mais importante de um país", declara.
O problema do mau desempenho escolar de grande parte das crianças é complexo e delicado de se lidar. Mas, é fundamental ressaltar que é preciso cuidado ao diagnosticar uma criança com dificuldade de aprendizado. "Mais do que isso, é necessário que o ensino estabeleça essa ponte da vida com a escola, da escola com a vida; sem isso o ensino não apenas se torna sem sentido, mas deixa efetivamente de ocorrer", diz Michelli Silva, do IEL da Unicamp.
Chris Bueno