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Ciência e Cultura
versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200014
ARTIGOS
BRUMADINHO
Todo dia é vinte e cinco de janeiro
André Luiz Freitas Dias; Fernando Antônio de Mélo
ICoordenador do Programa Transdisciplinar Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor e pesquisador do Departamento de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado), do Programa de Pós-Graduação em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência (mestrado profissional), da Faculdade de Medicina da UFMG e professor colaborador do Grupo Girche, da Universidade de Barcelona, Espanha
IICoordenador do Programa Transdisciplinar Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG, professor e pesquisador do Teatro Universitário da Universidade e dramaturgo e diretor geral da trupe “A torto e a direito”
Cordel é poesia do povo
Que sabe captar sentimentos
Sejam fatos da história
Sejam amores, tormentos
Nesse caso ele registra
Com poesia os sofrimentosMais aprendemos com o tempo
Conhecer nosso lugar
Quem sabe da dor do povo
É quem por ela passar
Queremos só com estes versos
Tristeza compartilharNossa história em Brumadinho
É anterior ao crime
Foi na luta pela água
Que a Coca-Cola suprime
Lá da Serra da Moeda
Que sem água, ao povo oprimeForam tantas violências
Violações de direitos e danos
Que o Polos foi convocado
Para enfrentar os Tiranos
A Vale e os governos
Buscando lucros insanosE com a comunidade
A verdade revelar
Pois junto com o sofrimento
Vem a força de lutar
Lutar contra covardias
E a frieza de matarMas o povo é sempre esperto
Com as mentiras amáveis
Que tornam crimes graves
Em fatos inevitáveis
E a Jóia brasileira
com desculpas inesgotáveisDo Espetáculo do Desastre
Negamos participar
Os protagonismos locais
Queremos valorizar
A voz do povo é quem manda
Só vamos amplificarÉ outro nosso compromisso
Universidade que mobiliza
Fortalece políticas públicas
Que o direito preconiza
Junto à saúde local
Que os cuidados realizaCom este cordel queremos
Nosso respeito expressar
Duzentas e setenta e duas vidas
A ganância veio ceifar
Que nunca serão esquecidas
Nem a história vai apagarPor isso nos corações
De Brumadinho inteiro
Dilacerados com a dor
Desse crime sorrateiro
Todo dia que amanhece
É Vinte e Cinco de Janeiro
CORPOS DESCARTÁVEIS
Um esquete do Programa Transdisciplinar
Polos de Cidadania da UFMG
Dramaturgia: Fernando Limoeiro e trupe
“A torto e a direito”
Direção: Fernando Limoeiro
Trupe “A torto e a direito”: Sol Markes
Santos, Jéssica Naiane Cordeiro Alcântara,
Marco Antônio Rodrigues de
Aguiar Júnior, Raquel de Faria Rodrigues,
Alice de Oliveira Cabral e Silva,
Lucas Raimundo
Pesquisadores-extensionistas envolvidos:
André Luiz Freitas Dias e Gabriel Augusto
Vilaça da Silveira
PRÓLOGO
Num espaço público ou praça de uma comunidade, uma trupe de teatro se apresenta, abordando uma catástrofe criminosa que acabara de acontecer e atingiu a todos os moradores.
PERSONAGENS
(por ordem de entrada):
Arauto narrador
Valéria Ganancia Morte
Conceição Brumadinho defunta agricultora
que ajudava o tio na lavoura às
margens do Paraopeba
Eustáquio Brumadinho defunto motorista;
funcionário terceirizado
Alberto Brumadinho defunto engenheiro
da Cale
Arauto: Vamos se aproximando, senhoras e senhores, que a trupe "A torto e a direito", do Programa Polos de Cidadania, junto com o Teatro Universitário da UFMG, preparou um espetáculo exclusivamente para vocês! Vocês que querem se divertir e, ao mesmo tempo, refletir, prestem atenção a esse emocionante, lacrimejante e estonteante esquete teatral. Vale ressaltar o quanto a arte é necessária ao homem e não adianta censurar ou cortar verba, porque teatro verdadeiro é aquele feito de sonho e de garra, que ensina divertindo e diverte educando! Alegra os justos e aos injustos vai incomodando. Com vocês: Corpos Descartáveis!
Em7 A7 B7 Em7
Sob o sol quente do dia
No roçado ou na caldeira
Pro povo da nossa terra
É sempre segunda-feiraUma empresa de renome
Conhecida e respeitada
Fazia do dia a dia
Desse povo uma empreitada
Refrão
É garimpeiro, motorista, engenheiro
Todo mundo contratado
Trabalhando com minérioMas a empresa esqueceu de avisar
Que dinheiro na verdade
É o que era levado a sério
Eustáquio:
Trabalhava a qualquer hora
Sem saber como voltar
Duas horas da manhã
Me faziam acordarSem saber sequer meu nome
O chefão mandou chamar
Dirigir sei lá pra onde
Só me resta trabalhar
Refrão
É garimpeiro, motorista, engenheiro
Todo mundo contratado
Trabalhando com minérioMas a empresa esqueceu de avisar
Que dinheiro na verdade
É o que era levado a sério
Alberto:
A camisa da empresa
Eu vesti sem questionar
Emprego de engenheiro
Tenho que valorizarBate ponto, faz visita
Vivo no computador
Toda hora é reunião
Nunca desliga o motor
Refrão
É garimpeiro, motorista, engenheiro
Todo mundo contratado
Trabalhando com minérioMas a empresa esqueceu de avisar
Que dinheiro na verdade
É o que era levado a sério
Conceição:
“Isso é coisa do trem ruim”
Foi meu tio que me disse
As plantas quase morrendo
Olha só que esquisiticeO meu rio Paraopeba
Já não dá mais alimento
Essa empresa só enriquece
E a gente sem sustento
Arauto
Essa gente na labuta
Seguia seu dia a dia
Trabalhando a mil por hora
Mas mantendo a alegriaPorque além de trabalho,
Tinha família e escola,
Tinha casa, tinha sonho
Correndo cidade aforaTinha também uma barragem
Construída na cidade
A partir dela, sustento
Pra essa gente sem maldadeE foi justo essa barragem
Por descaso da empresa
Que provocou triste fim
Chegado em tom de surpresaSurpresa nem sempre é boa
E essa nos fez chorar
Sem preparar as pessoas
Pro alarme que ia tocarNão deu tempo de ir embora
De largar sua cidade
Que virou leito de lama
Grande palco da maldadeFoi-se embora muita gente
Ficaram só na memória
E a empresa imoral
Marcou com lama a históriaAdeus povo bom, adeus
Adeus aos que foram embora
Adeus povo bom, adeus
Adeus aos que foram embora!
(Arauto, junto com a Morte, entra marcando com um tambor numa espécie de cortejo fúnebre, enquanto os atores defuntos respondem em coro)
Primeira Incelênça (cantado):
G C D
Uma incelênça
Pra quem está na lama
Despertem, não se esqueçam
Que os mortos reclamam(Eustáquio falado)
Despertem, nunca esqueçam
Que os mortos também reclamamDuas incelenças
Pra não ter confusão
Esse mar é rejeito
De contaminação (bis Conceição)Três incelênças
Dizendo que a hora é hora
É a sina de Minas
Destroem e vão embora(Alberto falado)
É a sina de Minas
Destroem, faturam e vão embora
Arauto (em tom de contador de história):
Num espaço encantado
Onde as palavras têm rimas
Onde as coisas mais terríveis
Se transformam em coisas lindas
Acontecem mil histórias
Que nos tocam, são bem vindasBem vindas para esclarecer
Os labirintos da história
Dos crimes que muitas vezes
São contados como glória
Principalmente pra gente
De alma boa e simplóriaUm poeta se rebelou
E abandonou a cidade
Pelos estragos que uma firma
Causou na comunidade
Destruindo um morro inteiro
Por ganância e crueldadeE deixou esse cordel
Contando revolta e sina
Dos sonhos que destruíram
Atacando na surdina
E o poeta, junto ao povo
Protesta com duras rimas
Morte:
Eu sou Valéria Ganância
Permitam me apresentar!
Já que ele falou meu nome
É hora de eu me expressar
Essa história mal contada
Tenho que recontarUma empresa chamada Cale
Que trouxe emprego e progresso
Arriscou muito dinheiro
Construindo seu sucesso
Sofreu acidente grave
Destruindo seu processoProcesso que sempre trouxe
Ao povo benfeitoriasMudando toda a cidade
Ampliando a economia
A cultura e a educação
Numa total melhoriaPorque na verdade a Cale
É uma joia brasileira
E não pode ser culpada
Por uma simples besteira
Que faz esse povo ingrato
Esquecer a história inteira
Conceição: (levanta-se) Epa! Agora foi demais! Era só o que faltava, aparecer essa figura, manequim de cemitério, pra defender um crime! E mesmo depois de mortos somos chamados de ingratos. Imaginem quem tá vivo, o que não tem que aguentar... Fico pensando nas comunidades ribeirinhas, que, como meu tio, a vida inteira dependeram da água pra plantar, pra comer, pra viver. Eles acham que o dinheiro compra tudo!
Eustáquio: (levanta-se) E compra mesmo! Epa digo eu! Pois, na verdade, Conceição, até pra ser defunto carece de ter sorte. Eu já soube que um morto como eu, terceirizado, vale bem menos do que um defunto contratado pela Cale. Minha família vai se lascar!
Alberto: (levanta-se) Eustáquio, inveja depois de morto não vale nada. De que adianta se o dinheiro que eu vou receber como funcionário da Cale não poderei desfrutar?
Eustáquio: Mas já desfrutou. E muito! Além da estabilidade de emprego, que eu nem cheguei perto, Alberto. E depois, tudo que acontece de errado, a culpa é do terceirizado!
Alberto: Ah, mas tem coisas que dinheiro não paga. Ou você acha que a nossa vida tem preço?
Eustáquio: É claro que para a Cale a nossa vida vale muito pouco! Agora, quanto ao dinheiro, Alberto, sua família vai estar muito mais bem assistida, é ou não é? Só o seu plano de saúde é maior que meu salário!
Conceição: Eustáquio Brumadinho e Alberto Brumadinho! Vocês parem com essa discussão que a Cale adora jogar uns contra os outros e ficar assistindo. Quanto mais intriga houver, menos articulação vai ter.
Eustáquio: É isso mesmo, Conceição! Nós não podemos mais cair nessa armadilha. Principalmente depois de morto. Se a gente nunca brigou em vida nem por causa de dinheiro, porque vai brigar agora na morte?
C#m F#m Gm
Olha só, veja só
Não precisa de mais conflito
Só vai deixar mais aflitoOlha só, vamos ver
Se a gente trabalhar juntos
É mais fácil resolverÉ... tanta coisa
Que eu perdi minha razão
Não adianta brigar
Pra encontrar solução (bis)(todos concordam)
Alberto: É isso mesmo! Para a Cale, é fácil resolver tudo com dinheiro. Mas a dor que a minha família está sentindo não tem preço. Eles nunca vão nos esquecer! Os mortos costumam ficar mais vivos na memória dos que ficam.
Conceição: Acredita que eu não tinha pensado nisso, Alberto? Às vezes, os vivos estão mais mortos do que nós. E todo lugar que tinha cheiro de lembrança agora tem cor de saudade, de lama, de perda. Eu fico pensando na agonia de minha família quando chegou a notícia do rompimento. Já são 8 dias de espera e ninguém encontra nossos corpos.
Eustáquio: E minha mãe, então? Ser filho único é dor dobrada. Parece que eu estou vendo ela ajoelhada nos pés de Nossa Senhora Aparecida, rezando dia e noite.
(Arauto entra)
Arauto:
Entre os crimes mais terríveis
Mais cortantes e medonhos
O pior deles, acredite
É poder matar os sonhosPorém os sonhos resistem
Com a força da esperança
Em cada flor que renasce
Em cada nova criança
(Arauto canta junto aos mortos e a plateia: Amo-te muito - Nara Leão)
Amo-te muito
Como as flores amam
O frio orvalho que, infinito, chora
Amo-te como o sabiá da praia
Ama a sanguínea
E deslumbrante aurora
Ó não te esqueças
Que eu te amo assim
Ó não te esqueças
Nunca mais de mim
Eustáquio: É... E o pior: a Cale calou-se diante da nossa dor. Trata todo esse sofrimento como se fosse um dado estatístico, um acidente de percurso... Até as noites mudaram. Papo de boteco agora sempre termina em papo de morte. Ninguém faz mais seresta, ninguém conta mais piada... no meio da conversa sobre futebol, entra o rompimento da barragem.
Alberto: Todos só querem falar da dor da perda e dessa melancolia que tomou conta de tudo, mas apesar disso, a cidade resiste!
Conceição: Verdade, Alberto! E eu tenho certeza que nosso povo está lutando e vai continuar nessa batalha até que toda a cidade se regenere. Eu sempre acredito numa nova primavera.
Eustáquio: Eu sou otimista até depois de morto.
Conceição/Alberto (rindo): Otimista? Você?
Alberto: Tudo que você fez desde que a gente chegou aqui foi reclamar!
Eustáquio: Que isso, também não é assim não! Tô falando sério! Eu acho que eles estão muito perto de nos encontrar.
Alberto: Olha, otimista eu também sou, mas em tempos de meias verdades, é bom lembrar que esse país tem memória curta.
Eustáquio: Já estão quase esquecendo da catástrofe de Mariana que não faz nem cinco anos! Porque aqui nesse país um escândalo cobre o outro, uma dor sufoca a outra, essa é que é a verdade!
Morte: (voltando, junto ao Arauto, que acompanha os versos, marcando com o bumbo) Falou em verdade, é comigo mesmo! Olha aqui, se dependesse de mim, já tinha encontrado vocês todos e eu já estaria longe daqui.
Em A9
Eu sou a rainha do nada
Dama do absoluto
Seja dono ou empregado
Seja dia ou no escuro
Quando beijo meus amados
Claro que eu faço carícias de luto
Defuntos:
Em A9
Não queremos carícias
Nem seus beijos de morte
Você se exaltando
Por ceifar nossa sorte
Todo esse sofrimento
Pra você não passa de esporte
Morte: O quê? Se vocês pensam que eu gosto desse tipo de morte, estão muito enganados. Não tem grife, nem exclusividade.
Eustáquio: Grife? Um horror desses e você pensando em exclusividade? Você não faz ideia do tamanho da dor que essas mortes causaram!
Alberto: Não sabe! Não tem ideia da dor que eu tive por não poder entregar o primeiro presente para o meu filho que ia nascer.
Morte: Eu não tenho nada a ver com nascimento! Isso é uma falta de respeito com meu ofício eterno!
D#m7 A#7 | A#7 G#m D#m7
Eu detesto batizados
Gosto de velórios grandes
Crematórios com direito
A buffet e espumantesE também com vinhos raros
Coroas com orquídeas grandes
Ou as mortes nordestinas
Com canções emocionantesCarpideiras com inselências
Lágrimas cristalizantes
Conceição: Você gosta e acha bonito porque não sabe de nada! O meu tio foi achado e foi velado num caixão trocado. A mulher dele já tinha derramado um riacho de lágrimas quando chegou a funerária e falou: "Ó, eu sinto muito, mas o seu defunto é outro, viu?". Já pensou? Chorar pelo defunto errado?!
Eustáquio: Misericórdia! Se fosse comigo eu gritava com todo tudo mundo até abrirem o caixão pra eu ter certeza de quem tava lá!
Conceição: E ela gritou! A Cale não deixou: "caixão aqui é lacrado!" Ela fez um escândalo de dor. Adiantou? Como os velórios só podiam durar de 5 a 15 minutos, a Cale mandou vir um enfermeiro e aplicou um sossega-leão nela.
Morte: Estratégia, meu bem. Estratégia! Todo velório se presta à comoção e pobre adora um escândalo! Já imaginaram aquele povo todo revoltado contra a Cale e berrando em todos os caixões? Ia ser uma loucura! Nenhuma empresa suporta tanta propaganda negativa, mesmo sendo uma joia para a economia. Mas vamos mudar de assunto...
Alberto: Mudar nada, eu tô reconhecendo essa sua voz venenosa...
Conceição: Eu também!
Eustáquio: Eu mais ainda!
Alberto: Eu lembro de ter lhe visto num escritório da Cale recebendo um malote. Era o preço pago por nós, não era? Não é a toa que você se chama Valéria Ganância.
Morte: É que pra mim só há um poder que pode enfrentar a morte. Só há uma força para a qual eu me rendo. Nada é mais forte pra mim do que o dinheiro.
G C D G
Dinheiro não perde guerra
Para tudo é solução
Manda em tudo nessa terra
Paga até minha missãoE pra quem aí disser
Que eu não tenho razão
Procure se informar
Mude sua opiniãoDinheiro não perde guerra
Para tudo é solução
Manda em tudo nessa terra
Paga até minha missãoPode até calar o povo
E mudar opinião
Dinheiro é coisa boa
(Apenas a morte) Aquece meu coração
Morte: Tenha dinheiro e tudo o mais lhe virá como acréscimo!
Eustáquio: Eu fico pensando na hora em que começarem esses pagamentos.
Morte: Vocês ainda irão ver o jogo virar. E essa mala vai provar (abre a mala com dinheiro). Às vezes, o dinheiro faz até a lágrima secar.
Alberto: E a ganância faz ela desaparecer. Eu aposto que essa é a famosa mala dos 700 mil.
Morte: E se for? Não é da sua conta!
Conceição: Mas é da minha! Garanto que minha família nunca vai esquecer da dor dessa tragédia. Gente como eu nasceu e criou-se na terra, o adubo do coração é outro. Suborno é erva daninha, é carrapixo que garra na alma!
Morte: Fofa, você esquece que meu ofício merece ser bem remunerado, porque sou a única que pode exercê-lo. E toda exclusividade tem seu preço. (em tom de provocação) Eu só não entendo por que vocês facilitaram tanto o meu serviço...
Eustáquio: Ah, mas é agora que eu mato essa Morte! A culpa é nossa? A responsável por isso tudo é a Cale! Inclusive, pelo restaurante para os funcionários, que estava cheio de gente almoçando na hora que a lama chegou.
Conceição: E quer saber mais? Muita coisa já estava aqui antes da Cale chegar. Por isso, os velhos moradores, como meu tio, ficaram arrasados, indignados, e com toda razão! A lama enterrou nossa história.
Todos (exceto Conceição): É o preço pago pela minerodependência.
Conceição: Minero o quê?
Eustáquio: Mi-ne-ro-de-pen-dên-ci-a! As mineradoras chegam com seu poder financeiro e dominam a comunidade. Tem gente que é até contra a gente ser contra.
Alberto: Emprego pra uns...
Conceição: Indenização pra outros...
Alberto: Lazer para todos! Basta ver os bailes, as festas... Chamaram até Simone & Simária para cantar aqui... Até um boulevard eles fizeram em Barra Longa, querendo provar o “desejo de restauração da natureza”.
Morte:
DAEAD
Todo mundo saiu ganhando
tudo novo e brilhante
onde tem festa pro povo
tem sorriso estonteanteA natureza restaurada
agora tá tudo bem
a cidade tá alegre
reunida em paz e bem
Alberto: O famoso pão e circo né! Ah, por favor!
Eustáquio: Mais essa pra gente engolir, eu hein!
Arauto:
Mas essa restauração
Não deu grande resultado
O boulevard na verdade
Era todo maquiado
A intenção verdadeira
Era cobrir o estragoPintaram a grama seca
Com o verde mais destacado
E de branco os coqueiros
Em que a lama tinha grudado
E o povo olhando de longe
Até que achou ajeitadoMas não contavam com os cães
Rolando em grama pintada
Ficando assim todos verdes
A farsa desmascarada
Provando que a cidade
Em nada foi restaurada
Eustáquio: Enquanto isso, a terra vai sendo corroída e arrasada. E o minério extraído vai sendo beneficiado e reaproveitado para enriquecer o bolso deles. Isso sem falar que as águas de minas estão todas comprometidas com a mineração.
Conceição: Pelo que eu tô vendo, os nossos lençóis d'água tão servindo é para cobrir as falcatruas da Cale.
Alberto: Eu não acredito que eles ainda conseguem lucrar com essa tragédia em forma de lama.
Eustáquio: Pois lucram! Eles estão garimpando e faturando com o minério que retiram do rejeito! E pra gente, o que é que sobra?
Morte: Sobra o bem-estar e o progresso, seus ingratos! O que era essa cidade antes da Cale chegar? Uma cidadezinha qualquer do interior de Minas...
Conceição: Nada disso! Era um povo sossegado, vivendo na sua terra, do que plantavam, do que colhiam. Todo mundo em paz.
Arauto: Me lembrei do poeta, que disse: “cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”. Agora, essa cidade é só uma fotografia na parede.
Todos os defuntos: Mas como dói...
Morte: Pera aí... eu acho que eu tô ficando doida. O que que eu tô fazendo aqui? Conversando com defuntos, casos já resolvidos... Isso só pode ser teatro!
Em A9 B7
Ô povinho enxerido
Esquisito e danado
Está sempre do contra
Nunca fica calado
E cutuca a história inteira até encontrar
O que é falso e errado!
Mortos:
Só você não enxerga
Que o jogo virou
Você não acredita
A história acabou
Tira essa máscara que por tanto tempo
Lhe cegou
Morte: Cheeeeega! Tá bom, eu já entendi! (pausa. Atriz percebe que está fazendo teatro)
Tuuuuuum! (os mortos congelam)
Arauto:
Acontece, meu grande povo
Que isso tudo é teatro
A gente faz fantasia
Pra olhar melhor o fatoEssa morte que vos fala
Desde o início tão cruel
Sem limites, nem rigor
É atriz no seu papelMas ninguém quer terminar
A peça com tanta dor
Então minha querida morte
Se despeça, por favor
Morte: (tirando o chapéu)
Um espetáculo pra ser justo
Também pode utilizar
Uma personagem cruel
Servindo pra reforçarQue a verdade disso tudo
É que nada foi acidente
Porque tem nome o culpado
E também tem precedenteMas a morte já fez sua parte
Veio pra representar
Os verdadeiros criminosos
Que ainda tentam se ausentarMe despeço da personagem
E me mostro como artista
Eu, através do teatro
Espero que você reflitaPeço perdão a todos
E agradeço pela acolhida
Não vamos deixar
Mais essa história esquecida
Arauto:
História que muitas vezes
O próprio povo não vê
O próprio povo não crê
Que ele poderia mudar
Mesmo que os poetas
Agindo como profetas
Em versos venham alertarPoetas são visionários
Sabem dominar o tempo
E sempre previnem os homens
Mudando seu pensamento
Como o cordel que assistimos
Para vencer o tormentoE quando os poetas falam
Incomodam muita gente
Vereador, deputado
Homem de toda patente
Por isso são detestados
Pois a poesia não mente
(defuntos, com os instrumentos, se reúnem em fila, junto com Morte e Arauto)
Todos:
Uma incelença
Cantamos em respeito
A todos que se foram
E perderam seus direitosDuas incelenças
Do fundo do peito
Nós pedimos paz
pelo mal que já foi feitoTrês incelenças
Cantamos com amor
Adeus irmãos, adeus,
estamos a seu favor
(bumbo)
Alberto: No dia 2 de fevereiro, foi encontrado, próximo ao restaurante, o corpo do engenheiro Alberto Brumadinho.
Conceição: Conceição Brumadinho foi encontrada próximo ao corpo de Alberto.
Eustáquio: Os bombeiros encontraram também junto a eles o corpo de Eustáquio Brumadinho.
Arauto: Um fato, porém, surpreendeu a todos.
Defuntos: Os três corpos estavam de mãos dadas.
Arauto:
E assim os sonhos resistem
Com a força da esperança
Em cada flor que renasce
Em cada nova criança
Morte:
Em cada povo guerreiro
Que não se deixa abater
Lutando por seus direitos
E mostrando seu poder
Ciranda final:
C D G
Eu só espero que não se repita
Outra tragédia igual
Não dá pra suportarEles vão ver que a força de um povo
Quando junta e vibra
Ninguém vai pararE Brumadinho não se entrega nunca
Não vai ter empresa
Que possa barrarAguardaremos nova primavera
Uma nova era
Pra nos libertar!