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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.75 no.3 São Paulo jul./set. 2023

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230042 

    REPORTAGEM

     

    Direitos humanos na América Latina: lutas sociais e desafios em uma região marcada por desigualdades

     

     

    Priscylla AlmeidaI; João NogueiraII

    IJornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca
    IIDesenvolvedor de software, professor e pesquisador. Transita por diversos temas, das ciências humanas às exatas, sempre estudando algo novo. Adora jogar videogame quando não está viajando

     

     

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) completa 75 anos, em 2023, desde que foi elaborada por representantes de várias regiões do mundo na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Para além dela, os países da América Latina têm à disposição instrumentos regionais, convenções e órgãos encarregados de lidar com o cumprimento dos compromissos assumidos. Em teoria, o amplo tema dos direitos humanos abrange o cuidado e a proteção da vida de qualquer pessoa, atribuindo oportunidades igualitárias às diferenças. Ou seja, falar dos direitos humanos é algo incontornável no projeto de uma sociedade melhor.

    Ao longo do tempo, a construção dos direitos humanos na região apresenta diversos avanços em processos históricos, políticos e sociais, como é o caso de redemocratizações, reformas de base e a descolonização de uma América Latina marcada pelo período colonial. A própria transposição das ideias da DUDH, discutidas e criadas em um contexto europeu pós-guerras, é carregada de contradições. Na prática, é possível observar uma distorção do significado e da amplitude do tema, cujo retrocesso de liberdades fundamentais, violências, impunidades e crises humanitárias apontam para uma alarmante discussão e defesa de espaços democráticos que pareciam já consolidados. “Nós temos desafios imensos, visto que os direitos humanos na América Latina têm uma pauta de implementação muito ligada aos direitos políticos de ditaduras que nos impulsionaram para um ajuste de contas, mas que foi tardio em termos de direitos humanos”, pontua Silene Freire, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenadora do Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC) e do Observatório de Direitos Humanos da América Latina (ODHAL).

    “Retrocesso de liberdades fundamentais, violências, impunidades e crises humanitárias apontam para uma alarmante discussão e defesa de espaços democráticos que pareciam já consolidados.”

     

    Atuais ameaças e retrocessos

    Dentre as principais ameaças aos direitos humanos, a violência relacionada ao crime organizado arruína a estabilidade social e coloca em risco a vida das pessoas. Com isso, a América Latina enfrenta atualmente um dos seus mais graves desafios em décadas: nove em cada dez assassinatos de ativistas registrados, em 2022, ocorreram na região, com mais de um terço de todos os ataques ocasionados na Colômbia, mais do que em qualquer outro país no mundo, segundo o recente relatório da Global Witness, publicado em setembro de 2023. A própria entidade já havia classificado a América Latina como a mais afetada pela violência, desde que iniciou a publicação de seus dados, em 2012.

    A impunidade também é um problema persistente que mina a confiança nas instituições, visto que, por muitas vezes, os responsáveis por violações de direitos humanos não são levados à justiça, o que perpetua um ciclo de abusos contínuos de corrupção, enfraquecendo o estado de direito e as instituições democráticas. No Brasil, a polícia matou 6.400 pessoas, em 2020, sendo que cerca de 80% das vítimas eram negras, segundo o “Relatório Mundial 2022” da Human Rights Watch.

    Ainda a violência, fundamentada em fatores discriminatórios como gênero e orientação sexual, ocasiona uma séria violação aos direitos humanos, tendo a América Latina e o Caribe enfrentado níveis elevados de perseguições direcionadas às pessoas LGBTQIA+. Países como Guiana, Jamaica, Antígua e Barbuda, Barbados, dentre outros, mantêm leis que criminalizam as sexualidades e as identidades de gênero que não se conformam com as normas estabelecidas, de acordo com informações fornecidas pela International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), em 2020. Já o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, liderando o ranking por 14 anos consecutivos, segundo o dossiê “Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras” da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). México e Estados Unidos aparecem em segundo e terceiro lugares, respectivamente.

    Outro fator comum é a migração forçada resultante de conflitos internos, como é o caso de países como Nicarágua, Haiti e Venezuela, resultando em xenofobias, abusos, perseguições e falta de oportunidades econômicas e migratórias, cuja realidade coloca em risco os direitos das pessoas em deslocamento. “Órgãos internacionais, como a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), são fundamentais para a proteção dos direitos humanos dos migrantes na América Latina. Eles trabalham para estabelecer padrões internacionais de direitos, monitorar a situação das pessoas migrantes e fornecer orientação e assistência técnica aos governos”, afirma Marta Rangel, consultora da CEPAL e especialista em pesquisa, análise social e diagnóstico sobre a situação das populações afrodescendentes e em recomendações de políticas para a inclusão e a promoção de seus direitos. “Entidades assim trabalham na implementação de medidas para melhorar a situação dos grupos mais vulneráveis e na promoção da cooperação regional, em diversas áreas que possam contribuir para a proteção dos direitos humanos”, ressalta (Figura 1).

     

     

    O aumento da repressão política enfrentada por países latinos são verdadeiros retrocessos de direitos humanos nos últimos anos, com prisões arbitrárias de opositores políticos e restrições à liberdade de expressão. Na Venezuela, a população tem enfrentado uma crise política, econômica e humanitária. Conforme o relatório publicado pela Missão Internacional Independente de Investigação dos Fatos sobre a Venezuela, designada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2020, as violações dos Direitos Humanos ocorridas no país denunciam de maneira minuciosa os abusos e crimes cometidos por órgãos policiais e de “segurança do Estado”, incluindo execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e torturas, dentre outros. Em países como Colômbia, Chile, Equador e Peru, as forças de segurança cometeram graves abusos contra manifestantes nos últimos anos. No Brasil, foram 2.507 agricultores e indígenas assassinados por motivo de conflitos de terra, entre 1964 e 2016, de acordo com dados do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA).

    “O aumento da repressão política enfrentada por países latinos são verdadeiros retrocessos de direitos humanos nos últimos anos, com prisões arbitrárias de opositores políticos e restrições à liberdade de expressão.”

     

    Impactos da pandemia de Covid-19 e mudanças climáticas

    Para além das crises econômicas, a pandemia de Covid-19 trouxe à tona as disparidades e desigualdades sociais que afetam as populações e os grupos mais vulneráveis na América Latina. Em abril de 2020, o Ministério da Saúde do Brasil revelou que um em cada três óbitos por Covid-19 ocorreu entre pessoas negras. “Nesse contexto de desigualdades múltiplas e exacerbadas, a promoção dos direitos humanos das mulheres e das pessoas afrodescendentes se apresentou como um grande desafio, considerando as várias dimensões da crise”, declara Marta Rangel. “Isso porque a pandemia revelou de forma contundente as desigualdades estruturais que afetam essas populações, principalmente as mulheres afrodescendentes, incluindo o acesso desigual a serviços de infraestrutura básica, como água potável, esgoto, eletricidade e internet, assim como serviços de saúde” (Figura 2).

     

     

    “A pandemia revelou de forma contundente as desigualdades estruturais que afetam essas populações, principalmente as mulheres afrodescendentes, incluindo o acesso desigual a serviços de infraestrutura básica, como água potável, esgoto, eletricidade e internet, assim como serviços de saúde.”

    Situações em que as mulheres precisaram conviver por prolongados períodos com seus parceiros, frequentemente sujeitas a agressões verbais, sexuais e psicológicas atreladas à crescente crise financeira (já que o setor de serviços domésticos foi um dos mais afetados), resultaram no alarmante aumento da violência doméstica contra as mulheres durante a pandemia, levando a ONU a criar uma página e central de ajuda dedicadas especificamente ao tema da Covid-19 e mulheres. “A pandemia foi uma verdadeira tragédia na América Latina, com várias experiências de genocídios e de ausência do estado, deixando marcas profundas”, declara Silene Freire.

    Outro agravamento se dá por conta de questões climáticas. No Haiti, fatores como a pandemia, associada a um terremoto de magnitude 7,2 na escala Richter mais o assassinato do presidente Jovenel Moïse, resultaram em uma grande instabilidade política e humanitária. No Brasil, a recente onda de calor ocasionou mortes em vários estados, além de desastres ambientais, como inundações e desabamentos. Diante desse cenário, o presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Federico Villegas, ressalta a importância de olhar os temas ambientais com uma “perspectiva humana”, declarando que “os temas ambientais não são temas sociais, econômicos, científicos, são temas de direitos humanos” (Figura 3).

     

     

    Avanços na garantia dos direitos humanos

    Na contramão, é necessário destacar os avanços frente a uma América Latina marcada por um conservadorismo herdado do período colonial: “como é o caso das mudanças em alguns países da região que apontam para um caminho de busca e manutenção de direitos humanos e sua promoção através de políticas públicas”, analisa Ana Carolina Delgado, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e presidente da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

    O Uruguai e a Argentina foram os países pioneiros na aprovação de lei que garante o aborto seguro, um grande avanço para os direitos reprodutivos das mulheres – segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 25 milhões de interrupções inseguras são feitas anualmente no mundo, o que resulta em uma taxa de mortalidade que varia de 4,17% a 13,8%. No México, a Suprema Corte emitiu uma decisão que descriminaliza o aborto, removendo punições para mulheres que realizam abortos no primeiro trimestre da gravidez.

    A Colômbia, que já havia legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2016, fez história ao permitir que uma criança tivesse legalmente três pais. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiu que os ataques homofóbicos passassem a ser criminalizados, classificando-os como equivalentes aos crimes de racismo. Outro avanço significativo na atualidade foi a extensão da aplicação da Lei Maria da Penha no Brasil, para abordar a violência contra mulheres trans.

    "A região da América Latina tem caminhado para avanços históricos, na medida em que tais camadas marginalizadas organizam-se para lutar por seus direitos e, paralelamente, a uma série de iniciativas" enfatiza Ana Carolina Delgado. Contudo, ainda há um grande caminho a percorrer para que tais leis possam ser efetivas na prática. "Embora atualmente muito se tenha avançado com o reconhecimento de direitos humanos não apenas nas constituições como também na internalização de normativas internacionais, há uma diferença entre o reconhecimento de fato e a efetivação da garantia desses direitos", ressalta.

     

    Integração regional para a uma efetiva defesa dos direitos humanos

    Para garantir os direitos das minorias, a conscientização sobre questões de gênero, racismo e discriminação é fundamental, já que a mudança de atitudes e comportamentos fortalecem leis e regulamentações que protegem os seus direitos, bem como suas efetivas aplicações. Se por um lado, a partir de 2023, temos a retomada do protagonismo do Brasil na intermediação da integração entre os governos da região, por outro, a unificação das pautas dos movimentos sociais e estruturais faz frente aos retrocessos experienciados nos últimos anos. “Todo esse contexto deve ser decifrado e deve estar nas esferas da educação”, afirma Silene Freire, ao defender a unificação de pautas para uma luta de direitos humanos mais pluralizada. “As minorias, não por acaso, compõem as classes trabalhadoras subalternizadas pelo capitalismo. Ou seja, sem que haja essa unificação e ampliação da consciência, nós não vamos superar esses desafios. É preciso denunciar, resistir, mas, acima de tudo, é preciso lutar para superar”.

    Além disso, é importante ressaltar o papel dos Estados e das organizações no estabelecimento de padrões e espaços de discussão para a contribuição da integração regional: “a eficácia dos acordos de cooperação pode variar segundo a vontade política dos governos e sua capacidade de implementar as medidas acordadas”, destaca Marta Rangel. A integração regional e o compromisso contínuo com políticas públicas inclusivas são passos fundamentais para alcançar uma América Latina mais justa e igualitária. “Somente com a defesa dos direitos humanos seremos capazes de fortalecer ações de denúncia e afirmar a importância da resistência em face do avanço nas diversas formas de desumanização que assistimos na América Latina”, complementa Silene Freire.