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Ciência e Cultura
versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. v.59 n.2 São Paulo abr./jun. 2007
LITERATURA
FICÇÃO PÓS-COLONIAL RETRATA CONFLITOS CONTEMPORÂNEOS
Salman Rushdie. V. S. Naipaul. J. M. Coetzee. Wole Soyinka. Ghita Metha. Mia Couto. Arundhati Roy. A ficção desses e de muitos outros escritores tem sido chamada de pós-colonial. Como todos os rótulos, o pós-colonial não deixa de ser uma generalização que corre o risco de desconsiderar as especificidades das obras e de seus autores. "A literatura pós-colonial difere, consideravelmente, conforme o país e a cultura em que se manifesta. Mas não há dúvidas de que há traços em comum a partir mesmo do fato de existir o eixo dominador/dominado (ou colonizador/colonizado, eu/outro), típico da condição colonial e pós-colonial", explica Anna Beatriz da Silveira Paula, pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
O termo pós-colonial se refere, de modo geral, ao processo de descolonização que marcou, mesmo que de formas muito diferentes, tanto os países colonizados como aqueles que foram os colonizadores. Ou seja, o termo quer enfatizar que a colonização nunca foi um fato "externo" às metrópoles imperiais, estando inscrita nas suas próprias culturas assim como as culturas imperiais também se inscreveram nas culturas dos colonizados. Pensar nessa ambivalência posta pelo encontro colonial implica, assim, em deslocar uma série de noções como centro/periferia, nós/eles, dentro/fora, rompendo com essas oposições binárias para pensar as relações sociais de modo mais complexo, múltiplo e transversal.
Boa parte da chamada literatura pós-colonial foi produzida pelo chamados migrant writers, autores que imigraram para antigas metrópoles (como Londres e Paris), seja por opção profissional, seja por exílio político. Autores como Salman Rushdie, Monica Ali e Zadie Smith passaram a problematizar, em sua literatura, sua condição de subalterno, a partir dessa experiência de viver no espaço do antigo colonizador: os dilemas da integração dos imigrantes aparecem em muitas dessas produções literárias.
Outro elemento trabalhado por diversos escritores é a questão lingüística. "Seja polarizando o dialeto com o idioma do colonizador, seja demonstrando o conflito que ocorre quando o idioma integrador da nação é o do colonizador", lembra Anna Beatriz. Além desse conflito lingüístico, em diversas ex-colônias, denunciar as atrocidades cometidas durante o colonialismo permitiu que as minorias políticas adquirissem condições de luta. Nesse contexto é que as mulheres ganharam relevância, por exemplo, na literatura indiana contemporânea.
RESISTÊNCIA SILENCIOSA Língüa e gênero são dois elementos importantes na obra da escritora indiana Arundathi Roy, que se tornou conhecida mundialmente com seu romance O deus das pequenas coisas (1997). A narrativa se passa no estado de Kerala onde fica Calicute, cidade a partir da qual Vasco da Gama descobriu "as Índias". Partindo das contradições que caracterizam a história desse lugar, o romance faz uma série de alusões à fragmentação da própria Índia, seja no que diz respeito ao seu sistema de castas, seja em relação ao modo como uma Índia rica e cosmopolita se mescla com uma Índia miserável e provinciana. Enfim, a pluralidade que caracteriza a Índia contemporânea.
Roy prioriza o universo familiar e adota uma perspectiva mais subjetiva e intimista para problematizar a condição da mulher em seus aspectos mais simbólicos: a forma como o preconceito e a exclusão social, característicos da situação pós-colonial, manifestam-se também através da tradição cultural indiana (para a qual a mulher é inferior ao homem) e nas relações intercastas; e o modo como as mulheres indianas lidam com tudo isso. "Em vez de sustentar a condição da dupla colonização a que as mulheres indianas (e de outras culturas) estão submetidas, Arundathi Roy demonstra como o feminino tem uma semiose que lhe é própria na cultura daquele país, sustentando-se no silêncio" afirma Paula. Em sua tese de doutorado, intitulada "Margens silenciosas: a escritura da mulher na literatura indiana contemporânea", a pesquisadora trabalhou com essa dupla referência: às mulheres indianas silenciadas pelo colonialismo; e à inscrição silenciosa dessas mesmas mulheres em sua cultura. Uma resistência silenciosa.
Brasil pós-colonial? Mas, afinal, qual seria o alcance do termo pós-colonial? Faria sentido aplicá-lo à nossa literatura? "O que falta é uma teorização do nosso pós-colonial para que o rótulo de literatura pós-colonial possa ser atribuído a diversas produções brasileiras. A questão que nos fica é até que ponto isso seria, efetivamente, válido para nós", adverte Anna Beatriz Paula.
Intelectuais portugueses como o sociólogo Boaventura de Souzas Santos e o antropólogo Miguel Vale de Almeida têm se debruçado sobre as diferenças da experiência pós-colonial dos países do norte e os do sul e, mais do que isso, dos países que foram colonizados por Portugal. O projeto colonial português tem sido comumente representado como um colonialismo cordial, baseado na miscigenação e que, por isso não seria racista. Esses seriam, supostamente, os aspectos característicos da experiência colonial dos países de língua portuguesa. Para esses autores, a tarefa pós-colonial é complexificar essas representações. Nesse sentido, a miscigenação deve ser pensada, necessariamente, em relação à escravidão, à violência embutida nas relações entre senhores e escravos e às suas conseqüências nas desigualdades sociais, raciais e de gênero que perduram ainda hoje no Brasil.
Se não se fala, aqui, numa literatura pós-colonial, se fala em literatura negra ou afro-brasileira. "Desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente em praticamente todos os campos da atividade artística, mas nem sempre obtendo o reconhecimento devido. No caso da literatura, essa produção sofre impedimentos à sua divulgação, a começar pela própria materialização em livro", lembra Eduardo de Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da UFMG.
Duarte é coordenador do projeto "Afro-descendências: raça/etnia na cultura brasileira". Sua intenção é divulgar e estimular estudos sobre a produção literária de escritores negros, já que essa literatura carece tanto de uma história como de um corpus consolidado que esbarra, muitas vezes, na resistência do próprio campo acadêmico em reconhecer uma literatura que se postula como negra. Em artigo publicado no portal Literafro, Duarte diz que essa resistência tem o argumento de que arte e literatura "não tem sexo, nem cor". Para ele, a arte concebida sem adjetivos é baseada a idéia de essência do belo, que seria pretensamente universal: o cânone literário hegemônico é masculino, branco, ocidental e cristão e, por isso, deixa de reconhecer ou valorizar obras que não se encaixem nele. Por isso é que ele deve ser revisto e questionado a partir de outras identidades.
Carolina Cantarino