SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.54 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.54 no.2 São Paulo Oct./Dec. 2002

     

     

    TEMPO E HISTÓRIA

    Raquel Glezer

     

    A relação entre o Tempo e a História é tema inesgotável, com questões, problemas e propostas analíticas, campo de conflito insolúvel entre filósofos e historiadores, que pode ser explorada sob múltiplos aspectos, cada uma delas aparentemente encerrada em si mesma, e na prática inter-relacionada com todas as outras (1).

    Diversamente da percepção, hoje consensual entre os historiadores, de que o tempo da história é diferente do tempo da ciência – o conceito de tempo dos historiadores não é o utilizado pelas outras ciências, o confronto entre a reflexão em abstrato e o manejo empírico do 'corpus documental' é questão ainda sem conclusão, parte integrante das reflexões filosóficas e das historiográficas, que se colocam em termos divergentes e opostos, mas que podem e devem ser complementados (2).

    Para historiadores, tempo é tanto o elemento de articulação da/na narrativa historiográfica como é vivência civilizacional e pessoal. Para cada civilização e cultura, há uma noção de tempo, cíclico ou linear, presentificado ou projetado para o futuro, estático ou dinâmico, lento ou acelerado, forma de apreensão do real e do relacionamento do indivíduo com o conjunto de seus semelhantes, ponto de partida para a compreensão da relação Homem – Natureza e Homem – Sociedade na perspectiva ocidental (3).

    Tempo é palavra de muitos significados, e em alguns deles empregado como sinônimo de passado, ciclos, duração, eras, fases, momentos ou mesmo história, o que contribui para o obscurecimento das discussões teóricas dos historiadores sobre ele, e acaba confundindo o público leitor (4).

    Da noção de tempo civilizacional derivaram filosofias, teorias, historiografias, com seus calendários, cronologias, periodizações por momentos, seleções de fatos marcantes – elementos mutáveis a cada leitura, a cada narrativa historiográfica, sempre datada, quer a de nacionais quer a de estrangeiros (5).

    Historiadores convivem com as tensões inerentes ao tempo em que vivem e as formas de análise e compreensão, instrumentalmente dadas. Sabem que estão imersos no tempo, no seu tempo, e, simultaneamente devem trabalhar com ele, para os atos da profissão, no 'corpus documental' selecionado para pesquisar o tema, o assunto, o objeto de estudo em um dado momento: organizar, recortar, dividir, estruturar, analisar, compreender, explicar, generalizar, teorizar, sintetizar...

    Do mito à História, do tempo cíclico ao linear progressivo, ao teleológico e ao devir, da causalidade primária seqüencial cronológica às temporalidades braudelianas (6); da passagem do tempo da natureza ao tempo social (7), do tempo do trabalho natural ao tempo do trabalho industrial (8), o tempo real como fronteira última (9) – todas estas transformações marcaram as relações dos homens com o passado, e atuam em seu presente tanto em seus atos como nas formas de percepção do passado.

    Para os historiadores do contemporâneo, os seres humanos passaram do Tempo dominante da natureza ao Tempo dominado pelo homem e depois ao homem dominado pelo Tempo (10).

    Depois que a História formalmente se estruturou como um campo de conhecimento, muitos dos historiadores do século XIX estavam preocupados com a ordenação cronológica dos fatos, que era uma das formas possíveis de organizar o conjunto documental, e que acabou sendo a dominante, pois quase sempre permitia a estruturação causal explicativa (11). Contudo, as transformações econômicas, políticas e culturais do século XX, principalmente as da segunda metade, romperam com os critérios europocêntricos que ainda eram dominantes e com as estruturações históricas uniformes e hierarquizadas, muitas vezes preconceituosas (12).

    A História passou a ser diferenciada: de quem e para quem? Qual é o passado que cada Nação, cada Estado, cada grupo social deseja e valoriza? O passado deixou de ser único e unívoco, mesmo para uma mesma sociedade. Vencedores e vencidos nas lutas sociais, culturais, econômicas e políticas disputam os espaços da memória social, buscando encontrar o próprio significado (13).

    A quebra da uniformidade histórica hierarquizada trouxe para historiadores, especialmente para os do campo da história da cultura, a riqueza diferenciada das culturas e civilizações, o respeito ao outro, ao diferente, ao divergente, o pluralismo cultural e o multiculturalismo. Talvez alguns problemas conceituais possam surgir do relativismo cultural mas, por enquanto, esse é dominante.

    As transformações culturais ocidentais, que se difundiram pelos espaços dominados pela civilização ocidental européia, trouxeram tempos diversos para a contextualização histórica, e para cada tipo de fenômeno a ser estudado existem diversas possibilidades de escolha de temporalidade: longa, estrutural, milenar – para os fenômenos de longa duração, como estrutura familiar, mentalidades, relação com o meio ambiente; média, conjuntural, secular ou semi-secular – para os fenômenos econômicos, sociais ou culturais, como ciclos de economia, estruturas sociais, formação econômica - social, crenças religiosas ou políticas; ou ainda, curta, factual, anual ou quase que diária, como a política cotidiana, os movimentos da economia, as transformações nas relações culturais em veículos de comunicação de massa etc (14).

    Qualquer que seja a temporalidade escolhida pelo historiador, ela passa a integrar o objeto de estudo desde a seleção do tema, na escolha das fontes – escritas, iconográficas, objetos tridimensionais, no viés analítico do campo, no conceitual teórico selecionado; fica interiorizada no objeto, e os marcos de periodização, datas iniciais e finais do estudo, são apenas recortes temporais, que devem guardar coerência interna, e não elementos de explicação causal.

    Como sabem os historiadores, o século XX pode ser longo (15) ou curto (16), dependendo dos critérios do autor e dos elementos selecionados para dar significação e conteúdo ao que pretende estudar.

    As opções epistemológicas, as formulações teórico-metodológicas, as características lacunares do trabalho não ficam claras para o público leitor não especializado, pois a narrativa historiográfica tende a elidir tais aspectos.

    A passagem da História para as Histórias; do Tempo da História, linear, progressivo, teleológico para as temporalidades da História são transformações que estão integradas no campo neste início do século XXI e se projetam para os próximos anos, em prospectiva.

    As questões que sinteticamente relacionamos continuam em debate no campo teórico, como temas para especialistas, mas relativamente restritas, relegadas muitas vezes pelos próprios historiadores, e totalmente desconhecidas para o público leitor dos livros de história – que tende a considerar a narrativa historiográfica como passado, verdade e o tempo de outrora.

     

    Raquel Glezer é historiadora, doutora em História Social, professora titular de Teoria da História do Departamento de História/FFCLH/USP e diretora do Museu Paulista/USP.

     

     

    Notas e Referências

    1 Domingues, I. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. São Paulo: Iluminuras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996.

    2 Toulmin, J. e Goodfield, J. El descubrimiento del tiempo. Buenos Aires: Paidos, 1968; Cardoso, C. F. "O tempo das ciências naturais e o tempo da história" In: Ensaios racionalistas. Filosofia, Ciências Naturais e História. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 25-40; Rossi, P. Os sinais do tempo. História da terra e história das nações de Hooke a Vico. São Paulo: Cia das Letras, 1992; Koselleck, R. Le future passé: contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: Ed. Ehess, 1990; Périodes. La construction du temps historique. Actes du Ve. Colloque D'Histoire au Présent. Paris: Ed. Ehess; Histoire au Présent, 1992.

    3 Auerbach, E. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971.

    4 Como em títulos em que são indicativos de periodização: O tempo das catedrais, A era das revoluções, O tempo do Quixote... Ou em ensaio de ego-história, como em Ariès, P. O tempo na história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. Ou um conceito – a economia-mundo, como em O tempo do mundo, que é o do 3o. volume de Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII de F. Braudel.

    5 Toulmin, J. e Goodfield, J. El descubrimiento del tiempo. Buenos Aires: Paidos, 1968; Pomian, K. L'ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984; Cardoso, C. F. "O tempo das ciências naturais e o tempo da história" In: Ensaios racionalistas. Filosofia, Ciências Naturais e História. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 25-40; Rossi, Paolo. Os sinais do tempo. História da terra e história das nações de Hooke a Vico. São Paulo: Cia das Letras, 1992; Koselleck, R. Le future passé: contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: Ed. Ehess, 1990; Périodes. La construction du temps historique. Actes du Ve. Colloque D'Histoire au Présent. Paris: Ed. Ehess; Histoire au Présent, 1992; Wehling, A. "Tempo e história nas diferentes culturas" In: A invenção da história: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: U. Gama Filho; UFF, 1994, p. 51-8.

    6 Braudel, F. "La longue durée" In: Écrits sur l'histoire. Paris: Flammarion, 1969, artigo publicado inicialmente na revista Annales – ESC, em 1958. Há tradução em português.

    7 Le Goff, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980.

    8 Thompson, E.P. "Tiempo, disciplina y capitalismo" In: Tradición, revuelta y consciencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Critica, 1979.

    9 Chesneaux, J. De la modernité. Paris: la Découverte-Maspero, 1983.

    10 Glezer, R. "O tempo e os homens: dom, servidor e senhor" In: Contier, A. D.(org.) História em debate. São Paulo: INFOUR/CNPq, 1992, p. 257-268.

    11 Ver em Langlois, Ch-V. et Seignobos, Ch. Introduction aux études historiques (1898), préface de Madeleine Rebérioux. Paris: Ed. Kimé, 1992.

    12 Ver esp. Chesneaux, J. Du passe faisons table rase? A propôs de l'histoire et des historiens. Paris: Maspero, 1976; e, Ferro, M. Comment on raconte l'histoire aux enfants, à travers le monde entier. Paris: Payot, 1981, - L'histoire sous surveillance, science et conscience de l'histoire. Paris: Calmann-Lévy, 1985. Há tradução em português.

    13 Ver esp. Dosse, F. A história em migalhas: dos Annales a Nova História. São Paulo: Ensaio, 1992; Dicionário das ciências históricas, org. de André Burguière. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993; Bédarida, F.(dir.) L'histoire et le metier d'historien en France, 1945-1995. Paris: Éd. de la Maison des sciences de l'homme, 1995; Boutier, J. et Julia, D. Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/FGV, 1998; Ruano-Borbalan, J.-Cl. (coord.) L'histoire aujourd'hui. Auxerre/Fr: Sciences Humaines Ed., 1999.

    14 Braudel, F. "La longue durée" In: Écrits sur l'histoire. Paris: Flammarion, 1969.

    15 Arrighi, G. O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São Paulo: Contraponto; Edunesp, 1996.

    16 Hobsbawm, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.