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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar 2003
O CONTROLE DAS ENDEMIAS NO BRASIL E SUA HISTÓRIA
Luiz Jacintho da Silva
Inda tanto nos sobra, por este grandioso país,
de doenças e insectos por cuidar!...
Mário de Andrade, em Macunaíma (1928).
INTRODUÇÃO Convencionou-se no Brasil designar determinadas doenças, a maioria delas parasitárias ou transmitidas por vetor, como "endemias", "grandes endemias" ou "endemias rurais". Essas doenças foram e são, a malária, a febre amarela, a esquistossomose, as leishmanioses, as filarioses, a peste, a doença de Chagas, além do tracoma, da bouba, do bócio endêmico e de algumas helmintíases intestinais, principalmente a ancilostomíase (1).
A lógica era o impacto dessas doenças em saúde pública. Ainda hoje, esta conceituação de "endemias" é adotada pelo Ministério da Saúde (2).
Essas doenças, predominantemente rurais, constituíram a preocupação central da saúde pública brasileira por quase um século, até que diversos fatores, notadamente a urbanização, desfizeram as razões de sua existência enquanto corpo homogêneo de preocupação. Neste artigo, procuramos analisar a evolução das políticas e estratégias de seu controle.
PRIMÓRDIOS DO CONTROLE DE ENDEMIAS O conceito doenças infecciosas resulta do desenvolvimento da microbiologia como disciplina científica, no final do século XIX e início do século XX. Nesse período, graças ao desenvolvimento de uma nova tecnologia, uma enorme quantidade de agentes infecciosos e seus vetores, reservatórios e mecanismos de transmissão puderam ser identificados, permitindo a consolidação de uma nosografia que já vinha se estabelecendo desde o final do século XVIII.
Durante séculos, o controle das doenças infecciosas se fundamentava na medicina dos humores. Os fatores ambientais como os ventos, a chuva, emanações reais ou imaginárias, compunham um figurino de ação tipicamente hipocrático (3).
A saúde pública brasileira antes da República está repleta de medidas de intervenção ambiental, quase sempre nas cidades, ainda que a maioria da população fosse rural. A localização dos cemitérios e hospitais, a drenagem dos terrenos e a influência dos ventos e até de pessoas "nocivas", como mendigos, doentes mentais ou "leprosos" sempre constituiu um ponto central de preocupação (4-7).
FINAL DO SÉCULO XIX E O SALTO DE QUALIDADE A partir do final do século XIX, houve um salto de qualidade nas atividades de controle de endemias, decorrência do advento da microbiologia como ciência. Varíola, febre amarela e cólera foram as que mais sofreram a influência das novas idéias.(5,8).
O início do século XX foi um suceder de estudos sobre a etiologia, ocorrência e outros aspectos de diferentes doenças endêmicas brasileiras, como os estudos de Gaspar Vianna sobre a leishmaniose cutânea, de Lutz sobre a blastomicose sul-americana e a descoberta da doença de Chagas em 1909. Este fervilhante movimento científico, concentrado no Rio de Janeiro e em São Paulo, se fez sentir sobre o controle das doenças. A febre amarela que vinha causando epidemias sucessivas no Rio de Janeiro desde 1849, determinou a mais emblemática das ações de controle de endemias na história do país (4,9).
Ao mesmo tempo em que a Comissão Reed estudava a transmissão da febre amarela, em Cuba, e concluía de maneira definitiva pela transmissão vetorial, Emílio Ribas, então buscando controlar a febre amarela nas cidades cafeeiras do estado de São Paulo, passou a empregar o controle do Aedes aegypti como estratégia única do controle da febre amarela, em São Simão. O sucesso obtido ainda no século XIX, determinou a adoção da estratégia em outras cidades de São Paulo e, posteriormente, através de Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Em 1908, a febre amarela urbana havia desaparecido de São Paulo e do Rio de Janeiro, ainda que permanecesse nas cidades costeiras do Norte e Nordeste (4,5,10).
Em 1899, a peste bubônica chegava aos portos brasileiros, causando epidemias em Santos e no Rio de Janeiro. Foi a peste bubônica, mais do que a febre amarela, o gatilho para o desencadeamento da resposta governamental às endemias e epidemias que acometiam as cidades brasileiras. A investigação conduzida por Vital Brazil em Santos foi exemplar, e estabeleceu as bases dos serviços de controle da peste. A peste foi eficientemente controlada, não chegando a causar grandes epidemias e não mais surgindo no meio urbano, ainda que tenha permanecido em focos silvestres e rurais, hoje silenciosos, no Nordeste e na Serra dos Órgãos no estado do Rio de Janeiro (1,10).
Doença importada, de triste memória no imaginário europeu desde a idade média, a chegada da peste determinou uma enérgica resposta, que levou à constituição do Instituto Butantan em São Paulo e do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, ambos, ainda hoje, duas grandes instituições de pesquisa em saúde pública e ciências biológicas do país.
A renovação urbana talvez tenha sido o grande legado da resposta sanitária brasileira do início do século XX. Pereira Passos no Rio de Janeiro, Saturnino de Brito em Santos, Orozimbo Maia em Campinas, solidamente apoiados pelos governos centrais, buscaram emular Hausmann e empreenderam reformas nas suas cidades, com destaque às obras de saneamento (5,8,9,11).
A DESCOBERTA DO SERTÃO E A NOVA AGENDA DO CONTROLE DE ENDEMIAS O impacto das endemias na primeira década do século XX se fazia sentir essencialmente nas cidades. Tanto foi que a malária, doença do sertão e de pequenas cidades, somente foi alvo de ações sistemáticas quando dificultava projetos de grande importância, como a modernização do porto de Santos, a construção de uma estrada de ferro no sertão mineiro e a construção da adutora de água para o Rio de Janeiro, em Cachoeiro do Macacu, na serra fluminense. País com um vasto, desconhecido e inexplorado sertão, o Brasil ainda era uma constelação linear de cidades ao longo da costa. Poucos anos antes, no final do século XIX, a recém-proclamada República havia se dado conta dos riscos decorrentes de ignorar o povo e a cultura desse sertão, quando do episódio de Canudos.
Talvez impulsionado por essa trágica experiência, o governo brasileiro determinou ao Instituto Oswaldo Cruz que realizasse uma série de expedições ao interior do país para conhecer a realidade sanitária nacional (12).
A mais memorável dessas expedições foi a de Artur Neiva e Belisário Penna, mas não podemos esquecer as de Oswaldo Cruz à Amazônia, incluída aí a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré então em construção; a de Lutz e Penna ao Nordeste e a de Lutz, Souza Araújo e Fonseca Filho ao sul do país, chegando à Argentina pelo Rio Paraná (13-15).
O PERÍODO ENTRE AS GUERRAS E AS NOVAS ALIANÇAS O final da I Guerra Mundial alçou os EUA à sua nova posição de destaque na ordem mundial, e colocou o Brasil nos planos da Fundação Rockefeller, o braço sanitário internacional dos EUA.
Na época, o grande interesse da Fundação Rockefeller era a ancilostomíase, cujo controle se baseava na experiência adquirida no sul dos EUA no início do século, a febre amarela e a malária, estas últimas buscando reproduzir a experiência do exército norte-americano em Cuba e no Panamá.
A participação da Fundação Rockefeller teve um peso considerável na formação do pensamento sanitário brasileiro, influenciando-o até as décadas de 1950 e mesmo 1960. Financiou o treinamento de uma geração de sanitaristas brasileiros nos EUA, a imensa maioria na escola de saúde pública da universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Os três primeiros médicos brasileiros a receberem bolsa de estudos foram Carlos Chagas, Geraldo H. de Paula Souza e Francisco Borges Vieira (5,16).
Esse foi um período de intensa atividade e de grandes avanços. A parceria com a Fundação Rockefeller foi reforçada devido a duas importantes circunstâncias: o retorno das epidemias de febre amarela urbana, com a epidemia de 1928-29 no Rio de Janeiro, e a detecção do Anopheles gambiae no Rio Grande do Norte (5).
Quando a febre amarela deixou de causar epidemias nas capitais brasileiras, a partir de 1908, as atividades de controle do Aedes aegypti foram gradativamente sendo relegadas para um segundo plano, até que, 20 anos depois, irrompe uma epidemia no Rio de Janeiro, controlada a muito custo e com um contingente de 10 mil agentes. Essa epidemia serviu como um sério alerta às autoridades, que entenderam haver a necessidade de programas de controle de endemias mais organizados e de caráter permanente, o que levou o governo brasileiro a firmar um acordo com a Fundação Rockefeller para o controle da febre amarela em todo o país (5).
O PÓS-GUERRA E AS NOVAS TECNOLOGIAS O final da II Guerra Mundial trouxe não só uma nova ordem mundial, mas também a idéia de que as doenças endêmicas eram passíveis de controle, quando não de erradicação. A capacidade organizativa adquirida pelos sanitaristas norte-americanos durante a guerra e a percepção de que o controle das doenças endêmicas e epidêmicas poderia ser um importante trunfo na busca de aliados durante a Guerra Fria, fizeram com que o governo norte-americano, através de diversas agências de cooperação internacional, assim como os organismos internacionais de saúde, a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS), empreendessem uma série de ações globais ou regionais com vistas ao controle e a erradicação de doenças.
No Brasil, essas ações tiveram pleno desenvolvimento, graças a uma significativa corte de sanitaristas formados no país e no exterior, que haviam acumulado uma invejável experiência no controle de diversas endemias ao longo de décadas. Apoiados pela OMS e OPAS, empreenderam duas grandes campanhas cujo objetivo final era a erradicação: a malária, com sucesso parcial, e o Aedes aegypti, com sucesso total, ainda que de duração efêmera.
No início da segunda metade do século XX, havia uma grande proximidade entre essas organizações internacionais. O presidente da OMS era Marcolino Candau, um sanitarista brasileiro e o da OPAS era Fred L. Soper, um sanitarista norte-americano anteriormente da Fundação Rockefeller, que trabalhara por vários anos no Brasil, tendo sido responsável pelo programa de controle da febre amarela e pela erradicação do An. gambiae do Nordeste brasileiro.
Ao lado das sempre lembradas campanhas de erradicação do Aedes aegypti e da malária, há uma outra, sempre esquecida, mas com resultados excelentes e duradouros, que foi a campanha de erradicação da bouba. Este foi talvez campanha de erradicação mais eficientemente conduzida e de maior sucesso de toda a história da saúde pública brasileira, mas também a mais freqüentemente esquecida (17).
O DESMONTE DA MÁQUINA E A IMPLANTAÇÃO DO SUS A manutenção das agências de controle de endemias e de suas ações fazia parte da ideologia desenvolvimentista dos anos 50 e 60, fortemente apoiadas e, muitas vezes financiadas, por organismos internacionais e pelo governo norte-americano. O gradual desinteresse deste último pelo controle e erradicação de endemias, notadamente a malária, fez com que o governo brasileiro pós-1964 passasse a relegar essas atividades para um plano cada vez mais secundário, preocupado que estava com seu projeto de desenvolvimento de indústrias de base e de infra-estrutura, muito mais urbano do que rural. O centro das preocupações em saúde passou a ser o oferecimento de atenção médico-hospitalar à crescente população urbana.
As ações de controle de endemias foram perdendo sua importância na lógica oficial, ainda que fossem mantidas, mas não mais com a prioridade dada no início da década de 1950. Tanto foi que o Ae. aegypti, erradicado em 1955, voltou ao país por diversas vezes, mas sempre eliminado, até que em 1973 se constata a reinfestação do país, não mais sendo alcançada a erradicação.
O desmantelamento da estrutura de controle das endemias não se restringiu aos governos militares, ao contrário, se acelerou após a restituição da democracia e com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). A implantação do SUS implicou na enorme tarefa de passar para o controle e responsabilidade do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde de todo o país todo o sistema de assistência médico-hospitalar público, até então na sua maior parte sob o controle dos órgãos previdenciários. A constituição federal de 1988, assim como as constituições estaduais que se seguiram, colocaram como direito do cidadão e dever do Estado, o acesso à assistência médico-hospitalar.
SÃO PAULO, UMA HISTÓRIA (QUASE) À PARTE O controle das endemias no estado de São Paulo não pode ser analisado dentro do conjunto do restante do país. Nos demais estados do país, o controle das endemias sempre foi uma responsabilidade federal, não obstante a descentralização prevista na primeira constituição republicana, em 1891. Em São Paulo, graças a uma situação econômica privilegiada em relação ao restante do país e de interesses específicos determinados principalmente pela agroindústria cafeeira, essa foi uma área de atuação do governo estadual, desde a formação do Serviço Sanitário, em 1898 e mesmo antes, já no final da monarquia.
A febre amarela, a peste e a cólera constituíram os grandes desafios do final do século XIX em São Paulo; já a malária somente foi enfrentada de maneira sistemática e organizada a partir da década de 1930, quando se criou a Inspectoria de Prophylaxia do Paludismo, uma divisão do Serviço Sanitário (19).
A malária e a doença de Chagas foram duas doenças cuja transmissão vetorial foi interrompida em São Paulo graças a campanhas bem conduzidas, muito antes do mesmo ocorrer em outras áreas do país (9,18,19).
FIN DE SIÈCLE E O NOVO MILÊNIO Chegamos ao final do século XX com uma folha corrida no mínimo paradoxal. Algumas endemias importantes foram controladas, algumas por ação direta dos programas de controle, outras por força da evolução da sociedade, como urbanização, saneamento e melhoria das condições de vida, não obstante ainda termos uma parcela significativa da população vivendo próximo e abaixo da linha da pobreza. Dentre essas endemias, podemos citar a doença de Chagas, resultado de uma combinação de fatores: ações específicas de controle, urbanização e redução da população rural. A transformação do trabalhador rural de permanente e residente no local em trabalhador temporário, residindo na periferia de cidades, tendência observada no país desde a década de 1960, foi um importante fator na redução da doença de Chagas. A ancilostomíase sofreu uma importante redução, quase desaparecendo, graças a uma conjunção de fatores: urbanização, maior acesso ao uso de calçados, melhoria do saneamento e a disponibilidade de medicamentos específicos de baixo custo, altamente eficazes e com quase total ausência de efeitos colaterais (17).
É muito difícil conseguir estabelecer uma tendência geral das endemias na virada do século. Ao mesmo tempo em que o país se vê às voltas com repetidas epidemias de dengue, com a circulação, até a data, de três sorotipos diferentes do vírus, vários estados vêm sendo certificados pela OPAS como tendo interrompido a transmissão vetorial da doença de Chagas.
Uma análise sensata, ainda que sujeita a críticas, mostra que as endemias para as quais se dispõe de medidas de intervenção eficazes e de custo acessível, que não dependam da melhoria dos indicadores sociais e de qualidade de vida, sofreram uma redução significativa do impacto causado sobre a sociedade. Exemplo disso é a doença de Chagas, controlada mediante uma ação coordenada e sustentada (19).
A esquistossomose é um interessante exemplo, ao mesmo tempo em que deixou de representar um papel negativo sobre a população, graças à medicação específica, de custo acessível e altamente eficaz, continua a expansão da área de transmissão da doença, agora já atingindo todas as unidades da federação, inclusive os estados sulinos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, além da crescente urbanização. Esse comportamento indica que os determinantes da sua ocorrência ainda estão presentes, apenas a doença deixou de determinar a morbidade anteriormente vista (17,20).
MALÁRIA A malária, muitas vezes utilizada como exemplo de fracasso, foi, na verdade, um sucesso enquanto campanha de controle, ainda que tenha ficado muito longe da meta da erradicação. Quando o Brasil iniciou ações sistemáticas de controle da malária, no início da década de 1950, a imensa maioria dos casos de malária do país ocorria fora da região Amazônica, então virtualmente despovoada. Ao longo de vinte anos, a malária foi eliminada da região costeira do país e das áreas urbanas, restando alguns focos remanescentes, muitos de provável origem zoonótica, nas áreas de mata atlântica da região Sudeste.
A malária da Amazônia torna-se representativa numericamente a partir da década de 1970, quando essa região passa a ser povoada por migrantes do Sul, Sudeste e Nordeste do país, em busca de trabalho nas obras de infra- estrutura (hidrelétricas, rodovias, projetos de mineração), no garimpo, na extração de madeira e nos projetos agropecuários. A abertura das fronteiras norte e oeste à ocupação e ao desenvolvimento econômico não constava dos planos do programa de erradicação da malária proposto no início da década de 1950, e uma adaptação do plano não foi feita para essa nova circunstância no processo de desenvolvimento do país. Desse modo, a incidência da malária, após atingir o seu nadir no início da década de 1970, inverte a tendência de queda imposta pela campanha de erradicação e inicia um crescimento que somente se interromperia no início do século XXI (19,17,21).
Apesar desse crescimento de mais de 1.000% nos casos de malária num espaço de tempo de menos de duas décadas, a malária na porção extra-Amazônica do país, onde se concentra a quase totalidade da população, virtualmente desapareceu. A campanha de erradicação da malária iniciada nos anos 50 foi um sucesso, o crescimento da doença na Amazônia foi resultado da inexistência de um projeto específico de controle, as estratégias da campanha foram delineadas para uma parte do país e contemplavam uma Amazônia praticamente despovoada, com uma população ribeirinha de pequena mobilidade (21).
A malária exemplifica bem a situação atual do controle de endemias, de um lado sucesso e de outro fracasso; para o futuro, essa ambigüidade própria do país precisa ser resolvida, sob pena de um panorama sanitário sombrio.
Luiz Jacintho da Silva é professor titular de infectologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; titular da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo.
Referências bibliográficas
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