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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003
PODER E ÉTICA NA PESQUISA SOCIAL
Guita Grin Debert
O investigador precisa, enfim, descobrir um papel e uma posição que o deixem à vontade perante os investigados e que também ponham estes à vontade perante ele. As informações prévias sobre o grupo a ser investigado, por exemplo, poderão
indicar-lhe se deverá ou não revelar, desde o início, suas intenções de pesquisador; se deve tomar notas e fazer registros abertamente ou se deve adotar um pretexto uma atividade ocupacional, necessidade de repouso, férias, turismo etc. para justificar sua presença na comunidade." (Nogueira, 1977:96-97)
"Quando entrevistei o pároco da vizinhança em que cresci, constatei que ele se lembrava de mim como uma criança de classe média, que freqüentava a igreja com relativa assiduidade, e também que partia do princípio que nossa posição política seria idêntica. Como nada me perguntou, nada lhe esclareci. Em vista disso, ele não hesitou em me contar como examinava, com a maior cautela, todos os pedidos de emprego na fábrica local a fim de que ninguém com tendências esquerdistas tivesse a mais remota chance de ali conseguir trabalho. Essa entrevista veio a ser a primeira prova documentária concreta de algo que, indiretamente, sempre soubéramos: o papel desempenhado pela Igreja na discriminação política, naquele contexto específico. É evidente que, por saber que o uso que eu faria do material iria de encontro às expectativas do clérigo, fui rigorosamente ético em termos profissionais. Dei-lhe o manuscrito para ler, obtive sua aprovação por escrito das citações, antes de publicá-las, e assim por diante. Abstive-me de informá-lo sobre o contexto em que situaria o material, bem como a interpretação que a ele daria. Este representa um bom exemplo, creio eu, de manipulação "ética" neste caso, espero, por uma boa causa".(Portelli, 1997:28).
Intrinsecamente envolvida com o estudo da diversidade cultural, a Antropologia, ao longo de sua história, acumulou um rico acervo sobre as formas pelas quais a vida social é produzida em diferentes contextos.
Esse acervo compreende o resultado de pesquisas em sociedades indígenas, populações camponesas e contingentes de imigrantes europeus e de outras partes do mundo, mas não se restringe à análise de grupos étnicos e nacionais claramente delimitados. É parte integrante do estudo da biodiversidade cultural contemplar as clivagens no interior desses grupos, particularmente aquelas relacionadas com questões de gênero, classes sociais, grupos profissionais e gerações. (1)
As ciências humanas, no processo constante de ampliação desse acervo, têm se defrontado com a redefinição de procedimentos éticos, num momento em que os sujeitos tradicionalmente estudados por suas diferentes disciplinas passam por mudanças radicais, e em que novas agendas de pesquisa desafiam as fronteiras disciplinares.
Vinte anos apenas separam os dois trechos que servem como epígrafes neste artigo. As colocações de Oracy Nogueira foram feitas num livro que era uma das referências básicas para iniciantes na pesquisa sociológica. Hoje, é praticamente um reflexo profissional do professor alertar os estudantes sobre a necessidade de explicar com clareza os objetivos da pesquisa, de modo a obter o consentimento dos sujeitos pesquisados.
Os comentários de Alessandro Portelli foram apresentados num seminário sobre ética e história oral, e trazem para o debate os problemas envolvidos na pesquisa feita com grupos mais poderosos, com os quais o pesquisador não estabelece uma relação de simpatia. Essa dimensão da pesquisa social tem sido pouco tratada quando discutimos procedimentos éticos e códigos de ética na investigação científica. Nesses debates, a reflexão tem privilegiado situações marcadas por uma relação de desigualdade: o cientista social é alguém que ocupa não apenas uma posição de saber, mas é também detentor de status, prestígio e poder, num mundo em que os setores estudados são desprivilegiados, vítimas de formas de opressão e dominação, minorias em situação de vulnerabilidade.
Dessa perspectiva, nos debates sobre ética, procedimentos éticos e códigos de ética, os interesses dos grupos pesquisados devem preceder os interesses da pesquisa. São temas centrais da discussão o caráter do consentimento (formal ou informal), o tipo de informação que o pesquisado deve obter da pesquisa de que participa, a capacidade legal e intelectual dos entrevistados de entender o trabalho proposto e as formas de coerção que podem estar envolvidas nessa relação. Avaliam-se, também, os riscos envolvidos na publicação dos resultados, porque nossas conclusões não podem constranger, humilhar ou trazer prejuízos para as populações estudadas.
Tendo se voltado para o estudo da ampla variedade de culturas humanas, particularmente para o estudo desses grupos desprivilegiados, a Antropologia foi a primeira disciplina das ciências humanas a elaborar um código de ética. Por isso, também, ganha centralidade, nos debates que a disciplina atualmente vem promovendo, o tema dos modos de restituição aos sujeitos pesquisados do saber que construimos a partir deles. Devem eles ter acesso em primeira mão à obra produzida? Qual será sua participação nos lucros obtidos com os resultados das pesquisas empreendidas, ou com a divulgação das imagens por eles confeccionadas ou que confeccionamos a partir deles? Quando a biodiversidade e o conhecimento local estão em jogo, a questão dos direitos sobre o patrimônio genético é primordial. A quem cabe a soberania sobre esses recursos? São eles um bem comum da humanidade? A soberania é dos estados-nações ou das populações locais? Como controlar e combater a pirataria das empresas estrangeiras, mas também das empresas nacionais? (2)
Levar em conta essas questões é romper com a visão que restringe a biodiversidade ao impacto de fatores não-humanos sobre a vida humana, e trazer para o cerne do debate os direitos das populações que conservam a biodiversidade.
Levar em conta essa dimensão é também romper com a "cegueira normativa" que ainda marca boa parte das discussões sobre direitos humanos. Essa expressão, cunhada por Richard Falk (1992), caracteriza uma visão da modernização em que as culturas não-ocidentais, mas também os pobres, as minorias étnicas e religiosas, e outros grupos desprivilegiados aparecem como expressões de um atraso a ser superado para o bem desses próprios grupos. Sua assimilação, organizada e equitativa no espaço benevolente do ethos modernista, é tida como a condição para superar sua situação de vulnerabilidade. Em nome do desenvolvimento, populações indígenas, por exemplo, foram e ainda são destruídas, deslocadas de seus territórios e estão assistindo ao roubo de suas riquezas em biodiversidade e propriedade intelectual.
Contudo, esses grupos tradicionalmente estudados pelos antropólogos vêm estabelecendo relações muito diferentes com os pesquisadores e com o modo de divulgação das pesquisas sobre eles. Grupos indígenas contam com associações e advogados empenhados em defender seus direitos sobre suas produções. A situação desses povos e de outras minorias é cada vez mais afetada por projetos cuja elaboração e decisão não se dá apenas no âmbito de estados nacionais, mas obedecem a conjunto de normas, convenções e diretrizes definidas em foros internacionais e em agências multinacionais.(3)
O conhecimento que produzimos a partir deles e as imagens que sobre eles divulgamos podem ser objeto de disputa judicial. É, portanto, fundamental ter em mente a distância que separa os empreendimentos nos quais estamos envolvidos daqueles que exercíamos há 20 anos. Os códigos de ética têm, por isso mesmo, se constituído não apenas em uma defesa de direitos das populações pesquisadas, mas também precisam ser compreendidos como uma forma de defesa do pesquisador e da comunidade científica e, nesse sentido, seu interesse e suas características requerem avaliações com um cuidado redobrado.
Essas questões e os debates em torno delas devem, no entanto, ser ampliados de modo a dar conta de outras situações em que a desigualdade entre pesquisador e pesquisado não é tão evidente, como no caso dos estudos com elites religiosas ou políticas. É preciso ainda levar em conta as novas agendas de pesquisa, apresentadas num contexto em que o conhecimento científico produzido polariza aspectos fundamentais da vida social em escala planetária.
NOVAS AGENDAS DE PESQUISA E A POLITIZAÇÃO DO SABER É parte do senso comum ver o passado como uma chave explicativa fundamental na compreensão do presente, porque condições históricas específicas deram um formato próprio às sociedades contemporâneas. Os historiadores, muitas vezes, têm questionado e invertido essa relação, argumentando que são as questões postas pelo presente que levam às releituras do passado.
No entanto, pouca atenção tem sido dada ao modo como o futuro formata o nosso presente. Ou, para dizer de maneira menos paradoxal, é preciso reconhecer que as projeções feitas sobre o nosso futuro têm um impacto fundamental no modo como organizamos o nosso presente. Para dar um único exemplo: todos nós sabemos que o prolongamento da vida humana é um ganho coletivo. Mas esse ganho tem se traduzido também em ameaça, em perigo à reprodução da vida social. As projeções dos custos da aposentadoria e da cobertura médico-assistencial da velhice, de maneira alarmante, indicam a inviabilidade do sistema que, em futuro próximo, não poderá arcar com os gastos assumidos. Essa profecia sobre o futuro da aposentadoria tem um impacto fundamental no modo como as pessoas, no presente, preparam seu próprio envelhecimento. A crença nas previsões e a convicção de que o Estado será incapaz de arcar com os gastos do envelhecimento populacional podem, assim, levar a um conjunto de práticas que tornam o futuro da aposentadoria muito mais imprevisível.
Estamos muito distantes do modelo de uma ciência feita em torres de marfim, em que o fosso entre seus operadores e o público leigo era praticamente intransponível. Os conhecimentos produzidos são divulgados de maneira muito rápida, eles mudam os cenários sobre os quais os cientistas se debruçam e têm efeitos estrondosos nas nossas concepções do que é a saúde e o autocuidado, do que é a beleza e as tecnologias que podem ser colocadas a seu serviço, do que é normal ou patológico, do que são dados da natureza e o que são questões de liberdade de escolha.
Não se trata apenas de denunciar os conflitos morais envolvidos na bioética. Seria ingênuo e desastroso propor um tribunal voltado para decidir sobre as diferenças morais. É, contudo, um projeto imperativo nas ciências humanas politizar o debate nesses domínios que afetam nossa vida cotidiana e a vida dos grupos que pesquisamos. Esses são domínios que, dada a complexidade das questões abordadas, constituem-se em espaços privilegiados para o exercício de uma magistratura que se pretende metapolítica.
A relevância democrática das ciências humanas exige que possamos realizar estudos minuciosos dos significados de práticas que podem ser nefastas ao destino e à dignidade humana. Para entrar no universo dos cientistas ou no de outros grupos ainda mais poderosos, talvez jamais possamos dizer com clareza o que de fato estamos pesquisando, quais são os objetivos e as hipóteses que organizam o nosso trabalho. A politização das questões com as quais eles trabalham é, certamente, uma forma de prejudicar o conforto com o qual eles operam.
CÓDIGOS DE ÉTICA E COMUNIDADE CINETÍFICA Não podemos desconhecer a força e o sentido que as exigências éticas da pesquisa ganham hoje em dia, tampouco que os pesquisadores têm que estar armados para esse tipo de exigência num contexto em que os recursos da pesquisa e o interesse por ela se ampliaram enormemente. É imprescindível dispormos de um código de ética da pesquisa científica, porque ele oferece também uma proteção ao pesquisador e à comunidade científica. Obviamente, um código não substitui o bom senso e não elimina as discussões que empreendemos sobre os dilemas éticos enfrentados em diferentes contextos. Contudo, propor um código de ética é uma tarefa monumental. Como criar um código de ética que não imponha a todas as disciplinas parâmetros específicos exclusivos da pesquisa em certas áreas disciplinares? Como criar um código que não seja tão vago a ponto de não poder impor limites a certas práticas de pesquisa, e que seja tão restritivo e exija procedimentos lentos e burocratizados que inviabilize a investigação e perca o respeito dos pesquisadores?
Será que para renovar nossa agenda de pesquisa e garantir a relevância democrática da nossa disciplina só nos resta fazer manipulações éticas em nome de boas causas?
Guita Grin Debert é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da mesma universidade.
Notas
1. Para um balanço recente da produção nas ciências sociais ver, Micelli (1999).
2. Há uma vasta bibliografia sobre questões de ética na pesquisa antropológica. Para um balanço das questões colocadas ver Oliveira (1996) e sobre as implicações da Convenção sobre a Diversidade Biológica para as populações indígenas e tradicionais, ver Carneiro da Cunha (2001).
3. Para uma visão crítica das diretrizes operacionais que estabelecem as condições a serem seguidas em todos os projetos apoiados pelo Banco Mundial, ver Oliveira Filho (2000).
Bibliografia citada
Carneiro da Cunha, M. "Saber Local", Folha de S. Paulo, 19/12/2001:A-3. 2001.
Falk, R. Cultural Foundations for the International Protection of Human Rights. In Abdullai Ahmed An.Na'Im (org.) Human rights in cross-cultural perspective A quest for consensus. Philadelphia, University of Pennsylvania Press; pp. 44-64. 1992.
Micelli, S. (org). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995) São Paulo: Editora Sumaré/ANPOCS. 1999.
Nogueira, O. Pesquisa social - introdução às suas técnicas. São Paulo: Cia Editora Nacional. 1977.
Oliveira Filho, João P. Cidadania e Globalização: Povos indígenas e agências multilaterais. Horizontes antropológicos, n.14:125-142. 2000.
Oliveira, R.C. e Oliveira, L.R.C. (orgs.). Ensaios antropológicos sobre moral e ética, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1996.
Portelli, A. "Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral". In: D. Perelmutter e M.ª Antonacci (org.) Ética e história oral, projeto história: revista do programa de estudos pós-graduados em História do Departamento de História da PUC-SP, n.15, São Paulo: Educ, Editora da PUC-SP. 1997.