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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.56 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2004
LOCALIZANDO A ATIVIDADE CEREBRAL VIA MAGNETOENCEFALOGRAFIA
Dráulio B. de Araújo, Antônio Adilton O. Carneiro e Oswaldo Baffa
O estudo das relações entre o campo magnético e os seres vivos é dividido, metodologicamente, em duas áreas: a magnetobiologia e o biomagnetismo (1). A primeira trata dos possíveis efeitos produzidos por esse campo sobre os seres vivos. O biomagnetismo, por sua vez, ocupa-se das medidas diretas de campos magnéticos gerados pelos próprios seres vivos para, então, encontrar novas informações que possam ser úteis ao entendimento de sistemas biofísicos, desde diagnósticos clínicos até a terapia. Por necessitar de instrumental altamente sensível, desenvolvido somente na década de 1970, o biomagnetismo é relativamente novo quando comparado a outras áreas interdisciplinares que envolvem a física.
Dentre os principais campos de pesquisa, podemos destacar o neuromagnetismo, o cardiomagnetismo, o gastromagnetismo, a biosusceptibilidade magnética e o pneumomagnetismo (2).
Neste artigo, estamos interessados na descrição da magnetoencefalografia (MEG) que, conforme o próprio nome indica, refere-se ao estudo dos campos magnéticos produzidos pelo cérebro. Esses campos aparecem devido à atividade elétrica neuronal, que é caracterizada pela passagem de corrente elétrica ao longo da estrutura dos neurônios, em resposta ao gradiente de concentração de diferentes eletrólitos através da membrana de uma célula nervosa. Essa corrente elétrica altera as concentrações de certos íons, fazendo surgir um potencial de ação que se propaga ao longo da célula nervosa e que, por sua vez, faz aparecer um campo magnético de intensidade e sentido bem definidos.
Semelhante ao eletroencefalograma (EEG), primeiramente registrado em 1929, pelo psiquiatra alemão Hans Berger (1873-1941), a magnetoencefalografia (MEG) mede, de maneira não-invasiva, a propagação de um estímulo nervoso no cérebro. No entanto, os sinais magnéticos associados a essa corrente são tênues, bem menos intensos que seus equivalentes elétricos, estando na faixa de nT (10-9T) a fT (10-15T), o que corresponde a aproximadamente um bilionésimo do campo magnético da Terra, que é de 20 mT em nossa região.
Além do campo magnético terrestre, existem outras fontes de campos magnéticos provenientes de ruído urbano, denominadas de "ruídos magnéticos ambientais", que dificultam as medidas biomagnéticas. Dentre as várias fontes, as mais comuns e mais intensas são: as redes elétricas, as antenas de comunicação, e os deslocamentos de grandes massas magnéticas como carros e elevadores.
Em razão dessa série de complicadores, o surgimento da MEG só aconteceu 40 anos depois dos primeiros traçados eletroencefalográficos, ou seja, no final da década de 1960. Em um estudo pioneiro, David Cohen (3), então coordenador do Francis Bitter Magnetic Laboratory, integrado ao Massachusetts Institute of Technology (MIT), mediu a atividade magnética cerebral utilizando indutores magnéticos alojados em uma câmara magneticamente blindada.
Um ano mais tarde, James Zimmerman (4) apresentou, pela primeira vez, detectores de fluxo magnético altamente sensíveis, mediante a utilização de materiais supercondutores, conhecidos como Superconducting Quantum Interference Devices (SQUIDs), e registrou a atividade cardíaca de seres humanos. Em 1972, o próprio doutor Cohen registrou, com a tecnologia dos SQUIDs, a atividade espontânea alfa cerebral em humanos (5).
Desde então, a MEG vem sofrendo avanços constantes na detecção de sinais cerebrais, com o desenvolvimento de novas tecnologias que possibilitaram a construção de sistemas altamente eficientes. Além disso, a modelagem das fontes de corrente, com algoritmos robustos, permite à MEG aliar a alta resolução espacial da ressonância magnética à excelente resolução temporal da eletroencefalografia, inferior a 10 ms.
A utilização da MEG também passa pela necessidade clínica, em especial de pacientes que serão submetidos à intervenção cirúrgica. Nesses casos, o mapeamento pré-cirúrgico de regiões corticais eloqüentes, como áreas motoras, somato-sensoriais e de linguagem, é imperativo. É indispensável buscar manter a integridade funcional de regiões subjacentes e adjacentes àquelas que serão cirurgicamente removidas.
Além do mapeamento pré-cirúrgico, a MEG tem se destacado na investigação de processos cerebrais complexos. Como exemplo dessa aplicação, foi investigado, em um trabalho recente, o envolvimento de padrões oscilatórios cerebrais em tarefas de navegação em seres humanos assintomáticos. Para estudar esse problema, uma cidade em realidade virtual foi criada, por meio de um programa comercial, Duke Nuken 3D (3D Realms, Inc.). Usando um mouse para navegar, medimos os padrões de oscilação neuronal espontânea que estivessem relacionados à atividade cognitiva de navegação. Como conclusão, acreditamos que os ritmos do tipo teta, cuja freqüência está entre 4-7 Hz, têm um papel fundamental no ato de mover-se por entre ambientes familiares ou não (6).
Algumas patologias, como é o caso de distúrbios epilépticos, que estão associadas a descargas nervosas anormais, resultando em anomalias funcionais transitórias, também podem ser investigadas por MEG. Essas irregularidades observadas nos sinais cerebrais em epilepsia são descargas recorrentes, síncronas, de uma porção relativamente extensa do cérebro. Em algumas formas de epilepsia refratária à medicação anticonvulsivante, a cirurgia pode ser indicada. Esse procedimento é caracterizado pela remoção (ressecção) do tecido epileptogênico, causador da atividade elétrica anormal. Infelizmente, os métodos de diagnóstico e localização das fontes das descargas ainda são muito imprecisos e invasivos. Dado o número de pacientes que sofrem desse mal, existe a necessidade de aperfeiçoamento de métodos de detecção e localização de eventos anormais. No Brasil, só para se ter uma idéia, aproximadamente 1% da população é acometida por essa enfermidade, e dentre os indivíduos afetados, 10-15% requerem o tratamento cirúrgico.
Algumas formas de epilepsia são acompanhadas por distorções anatômicas, evidentes em técnicas de neuroimagens de alta resolução anatômica, como a MRI. No entanto, outros casos exibem alterações neurofisiológicas que não são combinadas a deformações anatômicas. Por conseguinte, sua caracterização passa pela análise dos traçados da atividade elétrica cerebral, em busca da localização do tecido epileptogênico.
COMO DETECTAR A ATIVIDADE CEREBRAL? Detectar o sinal magnético é apenas parte do problema de localizar suas fontes. A partir dos padrões característicos observados nos sinais, simultaneamente, em diferentes regiões, podemos localizar, com um erro da ordem de milímetros, as regiões cerebrais envolvidas.
A atividade elétrica cerebral proveniente de uma região limitada do espaço pode, para a finalidade desta discussão, ser modelada por um pequeno elemento de corrente ou dipolo de corrente elétrica. Essa corrente é aquela produzida pelos potenciais pós-sinápticos no corpo da célula. Tais elementos de corrente podem ser modelados de modo a calcular o campo magnético produzido em diferentes regiões do espaço. O chamado problema direto, uma vez que estamos partindo das fontes para a determinação dos campos, possui solução direta.
Na MEG, contudo, desejamos exatamente o contrário. A partir do campo magnético detectado, precisamos encontrar a localização das fontes que o produziram, ou seja, resolver o chamado problema inverso. Infelizmente, não é possível determinarmos de maneira unívoca as fontes de corrente através das medidas dos campos magnéticos por elas produzidos, já que várias distribuições de corrente podem resultar em um mesmo campo medido. Dessa maneira, a solução do problema passa por uma modelagem teórica.
COMPARAÇÃO ENTRE A MEG E A EGG Juntamente com a EEG, a MEG constitui uma das únicas técnicas de neuroimagem capaz de medir a atividade elétrica cerebral diretamente. A maior vantagem da MEG sobre a EEG refere-se ao seu poder de localização das fontes, bastante restrito no caso da EEG, bem como à sua capacidade de detectar sinais cerebrais que durem menos que 10 ms.
A comparação entre a MEG e a EEG é inevitável. Em ambos os métodos, os sinais medidos são gerados pela atividade síncrona neuronal, tendo ambos a capacidade de mapear essa atividade com a precisão de milisegundos. Existem, contudo, diferenças importantes entre as duas técnicas:
1. Enquanto a atividade registrada pelo EEG envolve uma mistura de componentes radiais e tangenciais ao detector, a MEG mede, quase que exclusivamente, fontes tangenciais, e, por conseguinte, é mais sensível à atividade proveniente de sulcos e fissuras cerebrais. Somente dipolos cujos componentes são tangenciais ao equipamento de medida produzem um campo magnético não-nulo. Do ponto de vista da anatomia cerebral, as células granulares (não piramidais) possuem simetria esférica, não tendo um sentido definido de propagação do sinal elétrico. Por conseqüência dessa simetria, o campo magnético produzido tem resultante nula. Já no caso das células piramidais, devido à distribuição linear dos seus axônios, é possível identificar um campo magnético resultante segundo uma distribuição dipolar. Felizmente, a circunvolução em que a superfície cortical está disposta propicia o aparecimento de uma distribuição determinística na orientação dos dipolos de correntes. A presença de componentes paralelos à superfície gera campos magnéticos que podem ser captados.
2. O campo elétrico medido depende dos valores da condutividade dos tecidos. Dessa maneira, uma interpretação mais precisa sobre o EEG depende de informações sobre a condutividade das diferentes camadas cerebrais, enquanto que essas inomogeneidades são transparentes aos campos magnéticos. Uma das grandes vantagens da MEG sobre a EEG é a precisão na localização de fontes de atividade cerebral, já que distorções, devidas à caixa craniana ou demais tecidos extra-cerebrais, podem ser negligenciadas no caso da MEG. Os erros de localização de fontes corticais usando a EEG (de 10 a 30 mm) (7), são bem maiores que aqueles provenientes da MEG (de 1 a 5 mm) (8). Mesmo assim, é importante notar que a MEG é menos sensível a localizações de fontes profundas que a EEG, podendo acarretar um erro superior ao desta.
3. Os equipamentos necessários para a EEG, em comparação com aqueles de MEG, são bem mais acessíveis. Um dos principais problemas da MEG é seu alto custo. Além do custo fixo do equipamento e ambiente de instalação, as quantias dispensadas para sua manutenção não são baixas, em especial devido à necessidade constante da presença de hélio líquido, indispensável na refrigeração dos sensores do tipo SQUID. Espera-se que com o aumento do uso dessa nova tecnologia ocorra uma economia de escala e esses equipamentos tornem-se mais acessíveis. Outra perspectiva é o desenvolvimento de sensores supercondutores baseados nos materiais de "alta temperatura" crítica que operam a temperaturas de nitrogênio liquido (-196o C), o que sem dúvida irá revolucionar essa área.
4. Como não existe nenhum contato direto entre os detectores da MEG e o paciente, as medidas podem ser obtidas de forma mais rápida.
Durante muito tempo, vários estudos foram publicados sobre as vantagens e desvantagens de uma técnica sobre a outra. Atualmente, um sentimento de complementaridade tem dominado o pensamento nesse campo de pesquisa. As vantagens de localização de regiões ativas através da MEG são inegáveis. É bem verdade, também, que a MEG oferece uma visão mais sensível de fontes tangenciais. Mas o que dizer das fontes radiais? Um estudo de processos cognitivos através da utilização de ambas as técnicas é, sem sombra de dúvida, a maneira mais completa de observação, de uma perspectiva neurofisiológica.
Dráulio Barros de Araújo é físico, professor-doutor do Departamento de Física e Matemática da FFCLRP USP campus de Ribeirão Preto.
Antônio Adilton O. Carneiro é físico, pesquisador, pós-doutorando no Departamento de Física e Matemática da FFCLRP USP campus de Ribeirão Preto.
Oswaldo Baffa é físico, professor-titular do Departamento de Física e Matemática da FFCLRP USP campus de Ribeirão Preto.
Referências bibliográficas:
1. de Araújo, D.B., Carneiro, A.A.O., Moraes, E.R. & Baffa, O. Ciência Hoje 26, 24-30. 1999.
2. Carneiro, A.A.O., Ferreira, A., de Araújo, D.B., Sosa, M., Moraes, E. & Baffa, O. Revista Brasileira de Ensino em Física 22, 324-338. 1999.
3. Cohen D. Science 161, 784-786. 1968.
4. Zimmerman, J.E., Thiene, P., Harding, J.T. Journal Applied Physics 41, 1572-1581. 1970.
5. Cohen D. Science 175 :(4022), 664-666. 1972.
6. de Araujo, D. B., Baffa, O., Wakai, R. T. Jounal of Cognitive Neuroscience 14, 70-78. 2002.
7. Roth, B.J., Balish, M., Gorbach, A., Sato, S. Electroencephalography and Clinical Neurophysiology 87, 175-184. 1993.
8. Menninghauss, E., Lutkenhner, B., González, S.L. IEEE Transactions on Biomedical Engineering 41, 986-989. 1994.