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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2004

     

     

    PESQUISA PSICANALÍTICA

    Fabio Herrmann

     

    PSICANÁLISE E PESQUISA Por definição, a pesquisa existe em todas as ciências. Porém, não há duas que a façam igual; se houvesse, seriam a mesma ciência. Por definição. A ciência da psique, a psicanálise, irmã das ciências do espírito, prima das ciências humanas, contraparente da medicina, ocupa-se em investigar o sentido humano nas pessoas – nos pacientes em particular – nos grupos e organizações dos homens, na sociedade e em suas produções culturais. Tudo isso? Bem… Em todo caso, nisso tudo, em todo o mundo humano, enquanto mundo psíquico. No entanto, dentro de sua forma peculiar de ver, que não coincide com a da filosofia ou da psicologia. Seu método de investigação muito especial – mas todos o são – é a interpretação psicanalítica.

    Da grande massa líquida da pesquisa psicanalítica, no estado presente de nossa ciência artística, de longe a maior parte é realizada nos consultórios, no tratamento de pacientes. Existem outros rios de pesquisa, sempre existiram; mais de dois terços do que Freud publicou, por exemplo, não eram descrições de análises. Na pesquisa de todas as ciências há uma parcela de arte combinada; na nossa, a arte envolvida é predominantemente a literatura a qual, muito antes de nós, soube apreender e revelar o contraditório sentido da existência dos homens. Freud explorou com excelência essa combinação onde, enquanto ciência, a psicanálise é arte, mas sempre faz ciência, quando literatura. Todavia, com o passar do tempo, os psicanalistas se foram concentrando mais e mais em suas análises, já que disso vivemos, e menos em interpretações da psique do real. Pode ter sido um erro, mas foi assim que aconteceu. Hoje, de nossa massa líquida, os tratamentos psicanalíticos equivaleriam à do oceano.

    Por diversas e compreensíveis razões, análises quase nunca se publicam. Seria tolo, porém, e inescusável, excluir do cômputo do conhecimento humano a porção considerável de saber por elas auferida, inventando outra forma de pesquisa psicanalítica, dissociada daquilo que os analistas fazem todo dia. O relato de uma sessão, ou mesmo de uma análise, talvez não renda uma tese acadêmica, admitamos; mas a forma do trabalho clínico pode ser extraída e purificada, dela resultando um método de investigação e cura, que tanto se aplica à análise padrão, como à clínica extensa e ao estudo – também clínico, em sentido lato – da psique cultural. Dessa forma, mesmo os tratamentos de consultório podem vir a transformar-se em trabalhos acadêmicos, assim como o método interpretativo pode ser estendido, com toda propriedade, a seu âmbito inteiro de direito, ao sentido psíquico do mundo. Bem melhor que o ignorar e substituí-lo por pesquisas estatísticas ou comentários teóricos, a meu ver.

    Trazer de volta ao mundo do debate científico a investigação quotidiana de milhares de analistas, numa época cujo desconcerto a solicita especialmente, parece-me uma digna empresa, na qual se alinha o presente artigo.

    PRODUÇÃO TEÓRICA Em sentido amplo, num sentido demasiado extenso para que o possa comodamente qualificar de psicanalítico, o desenvolvimento histórico de nossa investigação da psique deixa ver com clareza certa propriedade que, de maneira menos notória, pode, quem sabe, reconhecer-se noutras ciências. Nossa história é curta, pouco mais de um século, e compacta, quase solipsista, em razão do já tradicional isolamento das nossas organizações internacionais, que não se integram de todo à universidade. Com isso, defeitos, virtudes ou simples peculiaridades ficam ressaltados. O que se por um lado é um problema prático, por outro, oferece um campo fértil à observação epistemológica.

    Em termos gerais, teorias científicas não avançam por mera acumulação de conhecimento, a qual inspiraria, de tempos em tempos, um salto qualitativo sob forma de uma teoria revolucionária. Ao que tudo parece indicar, a um período de ativa produção teórica tampouco se segue, comportadamente, outro de consolidação. O que se passa, se vale generalizar o exemplo da psicanálise e guardadas as devidas reservas, é radicalmente diverso do que sugere esse idealismo pragmático. Cada grande teoria constituída cria seu procedimento de investigação – em certos casos, como o nosso, que também se presta a intervenções – no qual, por assim dizer, esta se encarna em forma concentrada. A propósito, muito mais que nas próprias publicações científicas. O procedimento seria assim a teoria geral em ação. Por certo tempo, o procedimento garante a teoria que o fundamenta, por ser sua expressão mais viva. Produz, também, pequenos circuitos de ilação laterais e de desenvolvimentos localizados. Porém, não chega a modificar o essencial, de que é expressão fiel; tampouco o comprova. Somente ao cabo desse ciclo, os incrementos do procedimento padrão (provindos de pequenos circuitos de realimentação entre procedimento e teoria) e sua prática contínua dão margem a que a investigação do método, nele embutido de maneira inaparente, liberte a produção teórica. Esta, agora, já não se assenta de fato nos postulados da teoria geral anterior, mas na transformação a eles imposta pelo procedimento (onde estava concentrada), e que, ao pô-la em movimento, a depurou, em especial do excesso de conjectura e de reificação.

     

     

    Na psicanálise, tal seqüência é bastante visível. Os postulados ontológicos da doutrina freudiana e os das escolas posteriores – a noção de instintos, estruturas fixas do psiquismo, defesas etc – geraram o procedimento a que damos o nome de clínica psicanalítica. Nossa clínica tem sido, a um tempo, a expressão concentrada da teoria do aparelho psíquico e o lugar de sua paulatina liqüefação. Concentrados em procedimento clínico, os conceitos psicanalíticos não retêm seu estado teórico; equivalente ao estado sólido, digamos. O uso clínico desmancha sua estrutura, reagrupa os conceitos, operacionaliza-os, côa deles as partículas teóricas reificadas, numa palavra, transforma-os no fluído metodológico que alimenta a análise. Suponho que nenhum bom analista fale a seu paciente de libido ou de id, para colocar as coisas com simplicidade; mas, com sua ajuda, cria uma prototeoria apropriada para o caso. Destarte, embora a prática da teoria psicanalítica na clínica a repita à exaustão, essa própria exaustão vai conduzindo os analistas às portas de uma renovação teórica geral que, é de se presumir e os sinais o indicam, deve reconstruir nossa concepção geral, não mais agora sobre conjecturas ontológicas a respeito do homem – conjecturas que supõem a existência de um aparelho psíquico com tais ou quais propriedades – senão derivando-a da própria constituição da clínica, que não estava disponível no tempo da invenção freudiana, mas que hoje faculta a pesquisa metodológica dos fundamentos. Na interpretação da psicanálise proposta pela Teoria dos Campos, os fundamentos teóricos mais gerais seriam conceitos metodológicos, como ruptura de campo, expectativa de trânsito, vórtice representacional etc – termos estes mais ou menos familiares em nosso meio, hoje em dia (1).

    Como a metapsicologia freudiana inventou a clínica psicanalítica e, desta, o método foi isolado, os postulados e conjecturas originais não estão perdidos nem se abandonaram: liquefeitos em procedimento, são em seguida destilados, para seguir com a analogia. A teoria decorrente do circuito é, por conseguinte, o equivalente a uma metapsicologia clínica que, mesmo sem pagar tributo à reificação dos conceitos fundadores, conserva-os na formulação metodológica. Em nosso projeto piloto – da Teoria dos Campos –, o inconsciente torna-se plural, generaliza-se e converte-se em campos (campos do inconsciente individual e social); regressão reaparece clinicamente embutida na noção de vórtice; resistência, como certa tendência à regeneração estrutural de um campo; etc. No curso desse processo, a clínica experimenta, por seu lado, uma importante extensão com respeito a seu padrão de referência, a análise de consultório, ampliando-se como clínica extensa; enquanto a teoria, já o vimos, é destilada numa metapsicologia clínica sem postulados ontológicos, ou, como prefiro dizer, para afastar confusões, em alta teoria. Alta teoria é o fundamento teórico que incorpora a própria crítica epistemológica da teoria, concepção ilustrada pela presente discussão, aliás.

    O MÉTODO EM AÇÃO Essas considerações gerais a respeito da evolução de nosso conhecimento – evolução que se disfarça, para o olhar ingênuo, em progressão por acúmulo de dados, de que resultam inspiradas hipóteses conjecturais, de tempo em tempos – servem aqui de introdução ao problema das pesquisas psicanalíticas atuais, que a espelham, cada qual em sua própria escala. Com efeito, nossas pesquisas não conseguem esconder sua cabeça de Jano: uma face voltada a interrogar seu objeto; a outra, a interrogar seu fundamento, uma vez que a aplicação direta da teoria à interpretação via de regra resulta tautológica. Não que os circuitos de realimentação procedimento/teoria estejam inoperantes ou apenas repitam o cânon estabelecido nas três primeiras décadas do século passado. Os interpretantes psicanalíticos sucedem-se como vagas, no mar da clínica de consultório. Dentre eles, por exemplo, o falso self (Winnicott) e a mãe morta (Green) têm freqüentado nossas praias, ultimamente; tais rearranjos e correções da metapsicologia freudiana exprimem, no plano teórico, os pequenos movimentos realizados pelo procedimento clínico, no sentido de reavivar sua eficácia, uma vez que noções psicológicas – as que descrevem a hipótese de um aparelho psíquico, a do desenvolvimento emocional etc. – gastam rapidamente seu poder interpretante. O reservatório dos interpretantes gastos, inaugurado por conceitos do gênero viscosidade da libido (Freud, 1926), é reciclado episodicamente por rearranjos teóricos, até que ocorra uma reconversão maior, já então por via metodológica. Esta é uma dimensão que a pesquisa psicanalítica deve considerar.

    Para ser eficaz, sobretudo para não ser tautológica, nossa interpretação precisa ter consciência da poderosa concentração de teorias no íntimo do procedimento. O resultado clínico, por si só, não comprova a metapsicologia de fundação nem seus acréscimos, uma vez que os critérios de avaliação da clínica também já os incorporaram. Só quando o método psicanalítico é isolado, descrito e seus passos cuidadosamente compreendidos é que o valor demonstrativo da clínica merece inteira confiança. Acima de tudo, depois de haver sido separado das técnicas. Na clínica extensa, que compreende a investigação da sociedade e da cultura, a livre associação, por exemplo, básica diretriz técnica da análise, não comparece necessariamente, mas a ruptura de campo, operação do método, nunca está ausente.

    Na realidade, nosso método é antes de tudo heurístico. Dou-lhes um pequeno exemplo. No início da década de 1980, propus a interpretação de um campo da psique do real, sugerindo que uma série de tendências – entre as quais, a erosão do pensamento como raiz da ação, suplantado pela representação por imagem, e a fragmentação das articulações sociais concretas, com a decorrente perda de prestígio ontológico de indivíduos e grupos (que acompanha sua efetiva impotência prática) – anunciavam um novo sistema político, que então batizei de regime do atentado (2). A regra principal do novo campo seria a ação de máxima eficácia pontual e mínima participação do pensamento social, mínima subjetividade, logo, mínimo alvo oferecido, o ato puro. O regime resultante, sucessor do regime de nações – porque disso se trata, de um novo regime político, não de intercorrências esporádicas de violência – seria caracterizado pelo confronto de um poderoso sistema econômico e militar contra opositores depauperados, marginais, desapegados da existência. Teoricamente, segundo essa hipótese, recorreriam ambos ao ato puro (o ato que não se deriva do acordo social, mas que o cria a posteriori, por seu próprio efeito) como meio de reivindicação de absoluta hegemonia, no primeiro caso, ou de sobrevivência e prestígio mínimo, no segundo.

    Quando, exatos vinte anos depois, o atentado ao WTC chamou a atenção ao tema, isso foi considerado, em alguns círculos, como prova de uma surpreendente antecipação, demonstrativa da teoria. Honestamente, não me parece assim. Grandes acontecimentos não demonstram uma interpretação geral. Atentados suicidas encaixam-se como luva na previsão teórica, é verdade – máximo efeito, zero de sujeito final. Como as ações militares e econômicas, de cunho policial, também nela se encaixam. Todavia, só a análise minuciosa da propagação do regime do atentado ao quotidiano – projeto em que estamos empenhados – pode ser considerada uma demonstração aceitável. Muito acima de qualquer fato corroborante, é a produtividade que sustenta uma teoria psicanalítica. Interpretar não significa apenas antecipar um evento, critério válido noutras ciências. Mede-se a veracidade de uma interpretação pelo valor heurístico da análise de um campo já operante.

    Sejam amplas ou restritas as investigações psicanalíticas, parece-me que devem ter em comum o método de ruptura de campo, essencial à psicanálise – use-se ou não esta terminologia. Um trabalho de mestrado, apresentado recentemente à PUC(3), pretendia originalmente examinar as causas da adição ao jogo de azar, numa paciente em análise. Ao esboçar a análise da paciente, deparou-se a autora, porém, com uma série de versões psicanalíticas da história (quatro versões principais) internamente coerentes mas irredutíveis entre si. Somente quando lhe foi possível conjugar a pluralidade de sentidos coerentes, a convivência de distintas análises no mesmo processo, é que a reconversão temática da dissertação – já agora versando sobre o problema da narrativa, resultado da ruptura do campo estabelecido pelo projeto – acabou por iluminar a estrutura temporal da adição ao jogo. Cumpriu-se o objetivo inicial, mas só depois de seus pressupostos passarem por uma crise conceitual. Esta é uma típica ocorrência da pesquisa em psicanálise, quase diria um índice de legitimidade.

    Por mais que valorizemos o debate teórico e uma técnica apurada, há um motivo básico para iniciarmos qualquer estudo psicanalítico: ele tem de servir para alguma coisa, não é mesmo? Tomemos o exemplo de uma pesquisa em curso. O grande ataque histérico parece haver desaparecido. A explicação corrente atribui seu desaparecimento à diminuição da repressão sexual, característica do século XIX, que seria responsável pelo quadro. Porém, itens da psicopatologia raramente desaparecem sem deixar vestígio. Sua freqüência diminui, altera-se a patoplastia (ou seja, a forma circunstancial), o quadro muda, mas não some. Dentro do projeto de psicopatologia do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (Cetec ) ligado à PUC-SP, iniciamos, há alguns anos, a procura dos resíduos da grande histeria de conversão. E fomos agraciados pela sorte – e pelo empenho de nossos colaboradores do CEPSIC(4), que encontraram uma concentração desse quadro desaparecido na Clínica de Neurologia do HC-FMUSP. Apenas, estavam diagnosticadas como pseudo-epilepsia, e não histeria, as crises clássicas, de aspecto predominantemente convulsivo. Foi montado um serviço de atendimento psicoterápico de orientação psicanalítica, para seguir esses pacientes, numa colaboração entre Cetec, CEPSIC e Clínica Neurológica(5). Com um ano e meio de trabalho, o serviço recebeu 21 encaminhamentos, dos 52 pacientes lá reconhecidos até o momento como pseudo-epilépticos. A título de prova terapêutica, a terapia tem confirmado o caráter neurótico dos quadros clínicos, com a cessação rápida das crises, as quais, em média, já duravam entre oito e dez anos.

    Vitória da doutrina clássica? Nem tanto. O objetivo de nossa pesquisa não se resume à correção do diagnóstico. Buscamos estudar a complexa interrelação entre fenômenos convulsivos e histéricos – aliás, parte dos pacientes apresenta ambos – o processo de mimetismo de um quadro comicial nas neuroses – as crises histéricas observadas são muito mais parecidas às convulsões epilépticas que noutros contextos – a questão da sugestão pela via de atendimento – os pacientes devem enquadrar-se na esfera neurológica, para serem atendidos pela neurologia – e assim por diante. Como a revisão dos dados a respeito da epilepsia de difícil controle aponta para uma freqüência mundial estimada de 20% de pseudo-epilepsia, é este, em todo caso, um tema clínico relevante.

    Em que sentido, porém, esta é uma investigação com o método psicanalítico? O campo dominante nesses estudos, que tentamos analisar e romper, distingue estritamente doença orgânica de neurose, doença de simulação, psicogênese de patologia somática. Os estudos costumam limitar-se ao diagnóstico diferencial, enquanto nossa investigação ambiciona apreender as configurações psicanalíticas de uma patologia confluente ao neurológico, sem se deter na hipótese psicogenética tradicional. Clínica psicanalítica extensa e uma oportunidade aberta para a investigação em alta teoria, como se vê.

    CONSULTÓRIO E PESQUISA Todo analista pesquisa. O trabalho clínico, no dia a dia do consultório, é uma das formas mais elevadas de investigação. De cada análise, derivam-se proto-teorias ad hoc que, às vezes, desembocam em teorias elaboradas o bastante para serem publicadas. Ademais, os psicanalistas praticam outras formas de clínica, que se podem dizer extensões; vale dizer, clínica extensa no consultório ou fora do consultório. Aí também há pesquisa da psique, da psique individual e da psique social. Que têm em comum essas investigações que, considerando o tamanho de nossas sociedades psicanalíticas, reúnem com certeza uma massa respeitável de conhecimento potencial? Em sua absoluta maioria, são realizadas com o método psicanalítico. Não necessariamente a partir da técnica terapêutica padrão, é evidente, mas, tal como as psicanálises da cultura de Freud, obedecendo ao método interpretativo.

    Uma pesquisa psicanalítica é mais que um relato clínico, com efeito. Quanto mais? Um dos historiais clínicos de Freud não se consideraria, em si mesmo, uma pesquisa? Com certeza, pois, além de apresentar a história de um tratamento, faz avançar decisivamente o conhecimento da psique humana. Um ensaio teórico, apoiado em material clínico ou na análise de certo recorte da sociedade e da cultura, constitui também uma pesquisa. Explorações técnicas, idem. Em suma, pesquisa é algo que os analistas estão sempre a fazer; bastaria saber como transformar o trabalho diário em pesquisa comunicável.

    Decerto, ninguém o ignora, a opção pelo método psicanalítico equivale a propor uma alternativa ao modelo usual de pesquisa psicológica, baseada em protocolos, estatística, grupos de controle etc. A experiência do Cetec, como a de inúmeros outros colegas que orientam teses acadêmicas, tem comprovado que tal alternativa não só é válida, mas em geral mais produtiva que a pesquisa convencional. O que não deve ser motivo de estranheza: se o modelo positivista fosse realmente produtivo na investigação da psique, por que as descobertas mais importantes nesse âmbito resultaram até hoje da psicanálise?

    A convergência entre prática clínica e investigação tem gerado muita discussão e alguns equívocos. Grosso modo, há três gêneros de pesquisa em nossa área, no momento. A investigação clínica, o comentário teórico, a pesquisa empírica. Como sempre, os defensores de cada qual esgrimem argumentos razoáveis. Para defender a pesquisa empírica, seus praticantes argumentam que falta rigor ao procedimento clínico, por ser subjetivo e singular, e que as demais áreas científicas não o reconheceriam. Os defensores do comentário teórico demonstram sua erudição e sutileza nas sucessivas retomadas da obra freudiana. Os clínicos reivindicam, com justiça, a autenticidade do contato direto com o fenômeno vivo e a naturalidade de sua pesquisa, sendo aquilo mesmo que faz o analista, por ofício.

    Os equívocos são simples de elucidar.

    De pouco nos vale buscar nossa exatidão científica fora da psicanálise. Observação empírica, protocolos, estatística etc. não fazem parte do espírito de nossa disciplina e, o que é mais sério, falta-lhes justamente o rigor buscado, face ao campo onde são colhidos os dados. Há coisas quantificáveis e outras que não o são – a começar por não serem coisas, como o psiquismo. Não é raro que, na sede de aplicar estatística elementar, atribua-se quantidade a atitudes, opiniões, respostas a questionário. A investigação dos campos do inconsciente, tratada dessa forma, tende a criar entidades inexistentes.

    A pesquisa teórica estrita tem valor, mas também tem seus problemas. Em especial, o seguinte: as teorias psicanalíticas, quando em estado teórico, admitem combinações e variações quase ilimitadas; somente no quadro metodológico da clínica, elas encontram seu pleno sentido de origem. Podem-se comparar os conceitos psicanalíticos aos fotogramas de um filme: a análise quadro a quadro é pouco esclarecedora do enredo. É o método em ação que os põe em movimento.

    Por seu lado, a clínica é nosso domínio por excelência. Porém, contar um caso não constitui uma pesquisa, nem se limita nossa clínica ao consultório e aos pacientes individuais.

    A solução não consiste em escolher uma das três formas e defendê-la à outrance. Há algo melhor. É possível habitar a clínica, seja a psicanálise de consultório ou outras formas psicanalíticas de clínica extensa, e, em nosso hábitat natural, procurar o rigor possível, que em geral supera de muito o da pesquisa quantitativa enxertada na clínica, mas sem perder de vista a crítica e a criação de teorias.

    Visando apurar o estado presente das pesquisas com o método psicanalítico na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), organizamos a jornada Pesquisando com o Método Psicanalítico, em maio de 2003, patrocinada pela Associação Brasileira de Psicanálise (ABP) e pela própria Sociedade (6). Durante o encontro, mais de trinta trabalhos foram apresentados – a maioria vinculada também à universidade (7) – que estarão reunidos em um livro, a ser publicado em 2004. O resultado parece demonstrar a vitalidade potencial da pesquisa conduzida com o método psicanalítico; mas, acima de tudo, mostra que, em São Paulo, esta é uma realidade que não se pode ignorar, sem grave prejuízo para o progresso do conhecimento da psique.

     

    Fabio Herrmann é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor da PUC-SP.

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Um esclarecimento dos conceitos metodológicos da Teoria dos Campos pode ser encontrado em meu livro Introdução à Teoria dos Campos, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001.

    2. "L’Attentat", in Cahiers confrontation — accident catastrophe, 7, Paris, Ed. Aubier, 1982 e Andaimes do real: psicanálise do quotidiano, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2001, 3ª edição, especialmente a parte 3: "O mundo em que vivemos".

    3. Lanzoni, Maria da Penha Z. Jogando com a vida, dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Estudos Pós–Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, defendida em outubro de 2003.

    4. Centro de Estudos em Psicologia da Saúde, Divisão de Psicologia do Instituto Central do HC-FMUSP, presidido por Mara Cristina Souza de Lucia.

    5. Em colaboração com os professores Milberto Scaff, professor titular de neurologia da FMUSP, e Luis Henrique Martins Castro, da neuro-clínica do HC-FMUSP.

    6. Organização: Fabio Herrmann, coordenador geral, Theodor Lowenkron, coordenador da Comissão Psicanálise e Pesquisa da ABP, comissão executiva: Iliana Horta Warchavchik, Luciana Estefano Saddi e Magda Guimarães Khouri.

    7. Dezenove projetos em programas de pós-graduação universitária, seis dos quais de membros do Cetec, e nove relativos a pesquisas independentes de membros e candidatos da SBPSP.