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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.56 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2004
PSICANÁLISE
A NOVA TRADUÇÃO BRASILEIRA DAS OBRAS DE SIGMUND FREUD
A partir dos anos 1970, o debate em torno da tradução da obra de Freud transbordou para além do campo dos especialistas ganhando destaque na comunidade psicanalítica. Naquela época, as críticas centravam-se fundamentalmente nos termos psicanalíticos adotados pela prestigiosa tradução inglesa de James Strachey, a Standard edition of Sigmund Freud complete psychanalytical works, que havia estabelecido um padrão terminológico internacional. Discutia-se uma possível revisão dos termos "técnicos" psicanalíticos, cuja tradução passou a ser considerada por muitos como demasiado medicalizada e biologizante e afastada da linguagem original freudiana mais ligada à experiência cotidiana e afetiva. Contudo, após 1980, empreenderam-se mais estudos abarcando não só a Standard edition, mas outras importantes traduções em outros idiomas enfocando também as circunstâncias pessoais, históricas e ideológicas que afetavam os projetos de tradução. Novos aspectos se foram acrescentando aos debates. Também se desenvolveram novas pesquisas conceituais na interface entre psicanálise e teoria da tradução.
Inúmeras distorções e falta de distinções conceituais foram mapeadas nas traduções em geral, colocando-as, de certa forma, todas sob suspeita e incentivando um movimento de revisão e re-feitura de traduções nos diversos idiomas. A tradução brasileira, a Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud passou por um processo análogo. Além de ter envelhecido, padeceu do defeito de ter sido traduzida do inglês, e uma nova tradução, a partir do alemão e conforme critérios mais atuais, se fazia necessária. Entretanto, mesmo buscando incorporar esses avanços, é provável que nenhuma das novas traduções, incluindo a nossa nova edição brasileira, sobreviva incólume ao atual crivo crítico.
O paradoxal é que, embora Freud seja o autor de língua alemã cuja tradução é de longe a mais debatida e estudada, seus textos não são resistentes à tradução quando comparados a outros da época. Freqüentemente Freud escrevia visando divulgação da psicanálise e, em geral, seus textos eram redigidos em estilo acessível. Por que então Freud transformou-se num dos maiores desafios à tradução contemporânea?
Parte do problema reside no fato de que o texto de Freud não é apenas lido, mas estudado, a partir de diferentes perspectivas. Na universidade Freud é estudado não só por psicólogos clínicos, mas também por outros especialistas e teóricos da literatura, cada qual exigindo diferentes atenções do tradutor. Porém, as escolas de psicanálise, cada uma com sua terminologia e distinções conceituais, desenvolveram concepções de tradução tão divergentes, que acabaram por gerar um verdadeiro "cisma" no campo.
Entretanto, uma tradução de Freud destina-se a servir a toda comunidade de leitores. Assim, optamos por debater essas questões com especialistas, alunos e leigos e finalmente organizamos um encontro interdisciplinar na Faculdade de Letras da USP, em outubro de 2003, com psicanalistas, tradutores e germanistas. Desses debates obviamente não surgiu um consenso, mas amadureceu uma opção: por um lado levar em conta os aspectos estilísticos, a clareza do texto freudiano e a naturalidade da terminologia psicanalítica, buscando resgatar o prazer de ler Freud e, por outro, oferecer um corpo de notas e comentários que aborde questões conceituais-semânticas essenciais a um estudo mais aprofundado. Além disso, ficou clara a necessidade de uma tradução crítica, que permita diversos tipos de leitura.
Um instrumento fundamental para realizar essa tarefa é a semântica contrastiva (comparações entre traços semânticos de dois idiomas a partir do idioma de chegada). Historicamente, importantes contribuições para a análise estilística e semântica dos textos de Freud ocorreram a partir de sua recepção no exterior e graças aos estudos realizados por estrangeiros e à leitura contrastiva. Este fenômeno não é exclusivo do campo psicanalítico, e ocorre também em análises literárias. São os estrangeiros que muitas vezes revelam, também para o leitor nativo, a riqueza do idioma de partida, bem como peculiaridades do ambiente cultural da obra, das quais, pela naturalidade com que o falante nativo as encara, ele mesmo não se dá conta.
Contudo, embora tradutores e comentadores estrangeiros tenham em muito enriquecido a leitura de Freud, a margem para uma recriação tradutiva ficou cada vez mais estreita devido à crescente conceptualização do campo. Muitos termos ficaram engessados em uma "terminologia técnica", semanticamente pobre. Essa tendência, até certo ponto, é o inevitável resultado do amadurecimento da psicanálise e da necessidade de adoção de certos padrões terminológicos. Por outro lado, Freud se serve constantemente daquilo que ele via como a sabedoria psicológica embutida nos idiomas, para apontar para nexos e origens, compartilhados entre fenômenos psíquicos aparentemente desconectados. Tirava partido da vivacidade de certas palavras, das conotações sutis e da facilidade de se construir palavras em alemão (por meio de composição), para descrever processos inconscientes fundamentais que estariam presentes na própria estruturação das línguas. Assim, dado o uso que Freud faz da linguagem, a conceitualização crescente da psicanálise cria para o tradutor um impasse insuperável entre dois gêneros de rigor conceitual, aquele apoiado na fixação dos termos em um código terminológico rígido e semanticamente mais pobre, ou o rigor conceitual apoiado na elucidação dos nexos semânticos e nos sinônimos que circunscrevem o conceito. Por exemplo, a palavra befriedigung deve ser traduzida sempre como "satisfação", ou, conforme o contexto, ora como "apaziguamento", como "saciação" ou como "gozo" ? Nos casos em que optamos pela terminologização rígida, usamos notas sobre os aspectos semânticos não resgatados em português, nos casos em que deixamos o termo flutuar livremente, advertimos que se trata do mesmo termo alemão.
Assim, se, em algum grau, todo tradutor leva em conta a semântica contrastiva, em nosso trabalho sentimos a necessidade de sistematizar este instrumento. Esses e outros critérios que nortearam o trabalho serão detalhados na apresentação do primeiro volume. Ao final da apresentação, consta um pequeno trecho especialmente difícil de se traduzir retirado do artigo "O Recalque" (1915), cuja tradução é discutida passo a passo e comparada com outras traduções existentes.
Luiz Alberto Hanns
Luiz Alberto Hanns é doutor em psicologia clínica, psicanalista, autor do Dicionário comentado do alemão de Freud e de A teoria pulsional na clínica de Freud e editor da nova tradução das obras de Freud para o português. É professor do curso de pós graduação latu-sensu em psicanálise no Instituto de Psicologia da USP.