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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.56 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2004

     

     

    ARTE

    AUSÊNCIA DE LIMITES, CARÊNCIA DE RIGOR?

     

    Não há limites de espaço, materiais ou técnicas. A arte contemporânea lembra um grande laboratório de experimentação, transformando latinhas de alumínio, gomas de mascar, esponjas, carne, ossos, fios de cabelo e objetos que iriam para o lixo em obras que compõe as alas de galerias e bienais. "Quanto mais banal o objeto, maior seu valor simbólico e mais ricas podem ser as leituras da obra", acredita Alfons Hug, curador da 26ª Bienal de Arte de São Paulo, inaugurada em setembro, seguindo até 19 de dezembro. Affonso Romano de Sant'Anna, autor do livro Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão não concorda: "estão confundindo, simploriamente, divertimento com arte". E propõe uma intervenção interdisciplinar da "chamada" arte contemporânea.

    O que nasceu como espaço de libertação, de provocação e denúncia às imposições do sistema teria, ao longo dos últimos 50 anos, se congelado num discurso de que "tudo pode ser arte". A ausência de critérios, certamente, dificulta o olhar do público e dos próprios críticos. Saber o que é uma obra de arte e o que é mera disposição de objetos pode ser apenas uma questão de interpretação? Renina Katz, gravadora e professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, considera que não existe mais um trabalho sério, diário, de crítica de arte. "Percebo que o que se faz hoje são apenas comentários laudatórios ou descritivos, nunca uma crítica no sentido de desvendar o mistério". Para o historiador de arte da Unicamp, Nelson Aguilar, falta hoje no Brasil uma maior socialização da arte, por meio de publicações que facilitem o entendimento do público.

    Se não há mais uma referência segura por parte de especialistas, como o público leigo deve se comportar diante de instalações e obras criativamente inusitadas, que ele não entende? Para Sant'Anna, o público sente-se intimidado, sem saber como reagir ou compreender as obras, atribuindo essa postura a sua própria ignorância.

    Já Aguilar considera que o público jovem brasileiro identifica-se mais com a arte contemporânea justamente por sair de uma atitude apenas contemplativa e ser mais interativa e "visceral", do que com obras de outra época, como as de Portinari, que precisariam ser contextualizadas para fazerem sentido.

    ENTRETENIMENTO A última bienal paulista recebeu 670 mil visitantes, tornando-se a mostra de arte contemporânea mais visitada no mundo em 2002. "Vejo no país uma curiosidade extraordinária no público jovem, que é a maioria na bienal", afirma Hug. Para Renina,porém, quantidade nem sempre se traduz em qualidade, pois a freqüência jovem às exposições é semelhante às visitas ao Salão do Automóvel, ou, por simples entretenimento. "É uma espécie de massa que segue o fluxo da corrente", acrescenta. Em 1936, Walter Benjamin alertava, em seu conhecido ensaio sobre a reprodutibilidade técnica das obras de arte, que à medida que a significação social da arte diminuísse se assistiria a um divórcio crescente entre o espírito crítico e a fruição da obra.

    MUDANÇAS Os padrões estéticos e o conceito de arte têm mudado ao longo da história. Obras que, no passado, dificilmente seriam qualificadas como artísticas, hoje são aceitas. É o caso, por exemplo, do belga Jan Fabre que para tratar do tema violência desenha com o próprio sangue, ou do inglês Damien Hirst que expôs animais mortos mergulhados em formol. Para eles, retratar a violência cruamente é uma forma de arte provocativa que leva a refletir sobre a vida contemporânea.

    Chocar, incomodar e até ofender são indicadores, para alguns críticos e artistas, de que a arte contemporânea está atingindo o público e modificando sua visão das coisas. Para outros, no entanto, esse seria apenas um recurso para atrair público e a atenção de curadores de exposições. É o que antecipava Hannah Arendt, em 1963, em seu ensaio "A crise da cultura", dizendo que o principal produto da indústria cultural, a arte, seria consumida como mercadoria. "Se não trabalhar a sensibilidade e não revelar outras realidades, a arte contemporânea, principalmente trabalhos que visam ser objetos de escândalo, perde sua função artística de aperfeiçoamento da subjetividade", enfatiza Renina.

    Para o psicólogo e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, Carlos Perktold, os artistas contemporâneos já mostraram que a arte é um reflexo de uma época desumana, violenta e de medo que foi o século XX, mas agora espera mais deles. "Nas últimas décadas, a ética piorou e a globalização acabou por destruir o pouco que tínhamos de humanismo. O humanismo terá maior chance de retornar quando a beleza voltar ao universo da arte", considera.

     

     

    Germana Barata