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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.58 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2006

     

     

    JORNADA DE TRABALHO: DURAÇÃO E INTENSIDADE

    Sadi Dal Rosso

     

    A sociedade moderna erigiu o trabalho, na forma do assalariamento, como sua atividade central. Em conseqüência, a jornada de trabalho ganhou espaço incomum tanto no terreno de estudo e pesquisa, em que floresceram as áreas da economia, da sociologia, da psicologia, da epidemiologia, do direito e da administração, quanto nas relações sociais em que se enfrentam classes sociais, governos e movimentos sociais com vistas a controlar as formas da regulação social.

    A jornada de trabalho se expressa primeiramente pelo componente de duração, que compreende a quantidade de tempo que o trabalho consome das vidas das pessoas. A questão tem diversas implicações, três das quais são aqui destacadas: afeta a qualidade de vida, pois interfere na possibilidade de usufruir ou não de mais tempo livre; define a quantidade de tempo durante o qual as pessoas se dedicam a atividades econômicas; estabelece relações diretas entre as condições de saúde, o tipo e o tempo de trabalho executado. Essas razões, muito além da curiosidade histórica, são suficientes para explicar porque os estudos de tempo de trabalho que se dedicam à análise da duração se tornaram socialmente tão relevantes.

    A CURVA DA JORNADA A análise histórica da evolução da jornada de trabalho é feita com base nas experiências dos Estados-nações e das diversas categorias ocupacionais. Tomando como parâmetro a experiência das nações desde a constituição do sistema capitalista até hoje, é possível descrever (1) genericamente a duração da jornada por meio de uma curva composta de três elementos gráficos básicos: alongamento; jornada máxima; e redução da jornada.

    Historicamente, o alongamento da jornada é encontrado na constituição das sociedades modernas como sociedades que generalizam a relação de assalariamento para a maior parte de sua força de trabalho e nos períodos que antecedem as revoluções industriais capitalistas, passadas e contemporâneas. A imposição de um aumento da duração do trabalho para o conjunto dos trabalhadores de uma nação justifica integralmente a compreensão das sociedades modernas como sociedades do trabalho. Como ter-se-á ocasião de demonstrar mais adiante o alongamento da jornada não constitui apenas uma fase da experiência passada das nações. O aumento do tempo de trabalho pode retomar seu lugar na história, como sucede aos dias de hoje em algumas das potências econômicas mundiais.

    A jornada máxima decorre do fato de que as pessoas têm uma capacidade máxima de trabalhar, apesar das variabilidades individuais, sem afetar as condições de saúde e de vida. Novamente, em termos históricos, os períodos em que a duração do trabalho dos assalariados tomou o maior número de horas por ano, são constituídos pelas revoluções industriais. O número médio de horas de trabalho por ano subiu das 2,5 mil horas nos períodos pré-industriais para 3 mil a 3,5 mil horas durante as revoluções industriais. A historiografia desconhece períodos históricos que o patamar do trabalho tenha-se elevado a níveis superiores aos verificados durante a revolução industrial capitalista. Neles, o número máximo de horas por ano constitui um indicador de clareza meridiana sobre o grau de exploração a que os/as trabalhadores/as foram submetidos/as.

    O último componente da curva da jornada é representado pela redução das horas de trabalho. Novamente, a historiografia mostra que, submetidos a um aumento da duração que elevou o trabalho até o ponto máximo da sua resistência humana, os/as trabalhadores/as reagiram a esse grau de dilapidação dos corpos e das mentes com movimentos políticos, com greves, empregando diversos outros instrumentos de pressão social e com negociação das condições de trabalho. Aos poucos, a duração da jornada vai sendo reduzida nos países mais ricos do mundo ocidental, como descrevem Evans, Lippoldt e Marianna (2): "as horas médias de trabalho nos países que pertencem à OCDE caiu de em torno a 3 mil horas por ano em 1870, para entre 1,5 mil e 2 mil horas por ano em 1990."

    A curva da jornada de trabalho não descreve apenas a experiência dos países de capitalismo inicial, como também é um elemento que permite a interpretação da experiência dos países de capitalismo tardio e dos países subdesenvolvidos. Assim a curva da jornada pode aplicar-se ao caso brasileiro. Ainda que exígua, a pesquisa historiográfica que descreve a duração do tempo de trabalho na época da instalação das primeiras indústrias no Brasil do século XIX, mostra o aumento das horas relativamente aos padrões costumeiros anteriores de trabalho, e que esse trabalho excessivo foi motivação para inúmeras greves ocorridas em diversas cidades brasileiras (1). As greves alcançaram em boa medida seus objetivos específicos de controlar a duração desvairada do trabalho exigida pelo patronato. A partir de 1932, o Estado brasileiro interveio, nesse aspecto da questão social representado pela duração do trabalho, regulamentando-o por meio de decretos, mais tarde incorporados à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). É nessas condições que é introduzido o parâmetro das oito horas regulares de trabalho ao dia, quarenta e oito semanais, suplementadas pela possibilidade de acrescentar mais duas horas-extras por dia, sempre que necessário. Vê-se que a regulamentação é particularmente favorável aos empregadores, levada em consideração a possibilidade de duas horas extras ao dia.

    Um segundo ciclo de redução da jornada de trabalho no Brasil é aberto pela exitosa greve dos metalúrgicos do ABC paulista de 1985 e concluído pela generalização a todos/as os/as trabalhadores/as da redução da jornada de trabalho de 48 semanais para 44 horas promovida pela Constituição de 1988. O efeito dessa redução da jornada de trabalho pela força da lei foi em grande medida frustrado pela continuidade da prática das horas-extras como atividade normal, tendo-se verificado um salto substantivo no número de pessoas que passaram a realizar trabalho extraordinário imediatamente após a promulgação da Constituição (3).

    E HOJE: O QUE ACONTECE COM A DURAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO NO MUNDO? O emprego da curva da jornada como meio descritivo de uma realidade histórica e não como instrumento analítico pode conduzir à falsa impressão de que doravante a duração do trabalho caminha irreversivelmente no sentido de redução. No fundo, existe a expectativa de que, com o desenvolvimento econômico e social, as pessoas precisem trabalhar cada vez menos horas por ano e possam usufruir de mais tempo a seu livre dispor. No capitalismo, entretanto, a jornada é socialmente determinada implicando em que além dos/as trabalhadores/as, os governos e os empregadores tenham interesse direto na questão da duração do trabalho. Conseqüentemente ela pode oscilar para mais ou para menos, para cima ou para baixo.

    Se não aparecessem casos indicativos de oscilação para cima da curva da jornada, a questão nem deveria ser posta, a não ser em termos abstratos apenas como possibilidade teórica. Entretanto, começam a se acumular evidências no sentido de que importantes países do bloco capitalista ocidental estejam retomando a prática de alongamento da jornada de trabalho nos dias de hoje. Se verificada, a tendência não deixa de ser inquietante e constitui uma reviravolta histórica, uma vez que, observada sob a ótica dos Estados-nações, a jornada de trabalho vinha sendo reduzida há mais de século.

    Evans, Lipoldt e Marianna (2) afirmam que "o fato mais chocante a respeito das tendências recentes das horas anuais médias de trabalho é que o seu declínio de longa duração refreou-se em quase todos os países da OCDE e ocasionalmente reverteu-se". É necessário examinar com mais detalhe esta reversão: quando e onde acontece e qual seu significado.

    O início da reversão teria acontecido nos Estados Unidos, Inglaterra e Suécia ainda na década de 1980, segundo dados citados por aqueles autores. A mudança projeta-se para a década de 1990, exceto na Inglaterra, envolvendo também a Espanha. Noutros países, como o Canadá, Austrália, Finlândia, Nova Zelândia, os indícios da reversão do processo de redução da jornada média anual de trabalho são muito tênues, na expressão dos autores. Evidência consistente, durante duas décadas, de reversão da redução da jornada média de trabalho provém basicamente dos Estados Unidos, onde o aumento das horas extras é apontado como o fator básico responsável pela mudança da tendência. Na década 1980, os Estados Unidos, sob a presidência de Ronald Reagan, e a Inglaterra, sob o governo da primeira ministra Margareth Thatcher, promoveram a ortodoxia neoliberal e implementaram as políticas de reestruturação econômica, com a redução do espaço do Estado na economia, privatização de empresas e serviços governamentais, junto com um arsenal de outras medidas liberalizantes. Ambos governos enfrentaram o forte movimento sindical que resistia às mudanças e tentava preservar postos de trabalho ou ainda o estado de bem estar social construído anteriormente. Tornou-se emblemática na história do movimento sindical a resistência dos mineiros ao governo de Thatcher e dos controladores do tráfego aéreo ao governo de Reagan.

    Por outro lado, a tendência à redução da jornada de trabalho mantém-se firme, ainda que se manifestando mais lentamente, em países como França, cujas políticas a transformaram em ícone simbólico do encurtamento da jornada de trabalho, Alemanha, Itália, Holanda, Noruega, sendo a redução mais acentuada no Japão e na Coréia.

    Duas tendências referentes à duração do tempo de trabalho, pois, dominam o cenário mundial: uma consolidada e vigente nos países europeus e asiáticos capitalistas avançados, no sentido de continuar a histórica redução da jornada média anual de trabalho; a outra, presente mais fortemente nos Estados Unidos, no sentido de alongamento das horas de trabalho. Qual delas prevalecerá nos próximos anos? Há fortes argumentos a favor da tendência dominante nos Estados Unidos da América em função do papel que aquele país desempenha no cenário da economia mundial. Entretanto, deve ser observado que a expansão para outros países não é verificada de maneira inconteste quando se analisam as horas médias anuais, o que não implica que determinadas categorias de trabalhadores não tenham sentido o aumento de suas jornadas de trabalho. Tentativamente poder-se-ia pensar que o alongamento da jornada de trabalho representado pela reviravolta liberal norte-americana está enfrentando forte resistência dos/as trabalhadores/as de outros países do mundo, o que aparece nos frágeis indicadores de expansão da tendência de alongamento da jornada de trabalho por outros países.

    A INTENSIFICAÇÃO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO A exposição feita até agora sobre tempo de trabalho alicerçou-se sobre a dimensão de duração nele contida e que é relevante por ser um parâmetro de qualidade de vida, podendo ser lida também como indicador do grau de exploração do trabalho. Deste ponto em diante, a exposição destacará outra dimensão, a de intensidade, que se refere ao consumo de energias pessoais e grupais no trabalho, expressa de outra maneira como sendo o esforço despendido pelos/as trabalhadores/as em seu labor cotidiano.

    É comum a literatura do campo não distinguir intensidade de produtividade do trabalho, o que resulta em erro lastimável, porquanto, se ambas as categorias são responsáveis por expressar incrementos nos resultados obtidos do trabalho, as origens e as forças responsáveis pela produção de tais resultados são completamente diferentes. Reserva-se a categoria de produtividade para a obtenção de resultados superiores em qualidade e quantidade, decorrentes de investimentos em tecnologias materiais inovativas e organizativas que não requeiram maior consumo das energias pessoais. Por outro lado, a categoria de intensidade refere-se ao esforço gasto pelos indivíduos no processo de trabalho. A intensidade tem a ver com o investimento das energias das pessoas com o trabalho. Refere-se ao desgaste da pessoa com o trabalho.

    Alguns problemas metodológicos para investigar a intensidade do trabalho e para aferir sua mensuração são discutidos por Fernex (4) e por Bartoli (5). O manual "Medindo a Produtividade" da OCDE (6) distingue produtividade e intensidade quando registra que "a produtividade do trabalho reflete somente parcialmente a produtividade do trabalho em termos das capacidades pessoais dos trabalhadores ou da intensidade do seu esforço", mas não oferece uma medida concreta para o conceito.

    A partir da distinção conceitual entre intensidade e produtividade, é possível imaginar um conjunto de situações abstratas e teóricas que iluminam a realidade concreta: o aumento de produtividade combinado com aumento da intensidade do trabalho é comum ser encontrado em diversos momentos da história, particularmente nos períodos de revoluções industriais; já aumento de produtividade, sem elevação da intensidade do trabalho, somente é possível pela resistência dos/as trabalhadores/as a um desgaste físico ou mental maior; elevação de intensidade, sem elevação da produtividade, tende a acontecer em momentos de reorganização dos processos do trabalho, sem que tenha havido ganhos tecnológicos, sendo o taylorismo um exemplo típico de uma estratégia organizacional que em sua origem não dependia de investimentos em tecnologia de inovação, em investimentos em máquinas e equipamentos mais produtivos.

    A intensificação do trabalho é um fenômeno antigo na história do capitalismo ocidental. Foi descrito por Marx (7), que se valeu da metáfora da porosidade do trabalho para explicá-la. Tanto menos recortado por paradas, interrupções, tempos de descanso, intervalos de qualquer ordem – genericamente chamados de "tempos mortos" – mais intenso é o trabalho, mais energias são consumidas do trabalhador e mais resultados produz.

     

     

    Intensificação do trabalho e alongamento da jornada são condições que podem conviver juntas enquanto essa união não colocar em risco a vida do trabalhador por excesso de envolvimento com o trabalho. Por isso, Marx concebe a intensificação como uma prática de exploração do trabalho que é colocada em ação pelos capitalistas de maneira sistemática a partir do momento em que as horas de trabalho são controladas por meio de legislação ou por movimentos sociais, e os empregadores ficam impedidos de obter mais trabalho através do alongamento da jornada. Lançam mão, então, do recurso à intensificação do trabalho. Alongamento da jornada e intensificação do trabalho não tendem a operar ao mesmo tempo.

    A intensidade foi objeto de estudo das principais correntes de organização do trabalho dos séculos XIX e XX, ainda que o termo tenha perdido sua função social crítica e sua essência de produção de maiores resultados tenha sido aplicada sistematicamente para elevar a produção da mais-valia. Taylor, no final do século XIX, alçou os estudos dos tempos e dos movimentos à categoria científica, abrindo as portas para práticas vigentes até os dias de hoje no trabalho, empreitada continuada e aprimorada por H. Ford. T. Ohno não é menos pretensioso quando traça o objetivo de superar o método de produção norte-americano – leia-se o método taylorista-fordista – que seria baseado sobre uma estrutura de desperdícios, pela adoção dos princípios de perda zero, da polivalência e do trabalho em grupo.

    A partir da década de 1980, começam a ser detectados sinais de que uma nova onda de intensificação do trabalho (8) dissemina-se pelo mundo, juntamente com o processo conhecido como reestruturação produtiva. Esta onda é responsável, segundo Fairris (9), por um acréscimo imenso de acidentes e problemas do trabalho, verificados nos Estados Unidos da América desde essa data.

    No Brasil, a intensificação do trabalho já se faz presente aos dias de hoje em diversos ramos de ocupações, ainda que não esteja generalizada por todos, sendo as evidências empíricas levantadas junto àquelas atividades mais expostas à concorrência nacional e internacional que inicialmente constituíram as portas de entrada dos trabalhos mais intensificados (10). É assim que a partir das avaliações efetuadas pelos/as trabalhadores/as em uma amostra representativa, bancos e finanças, telefonia e comunicação, além de grandes empresas de abastecimento, emergiram como os setores que podem ser tomados como modelos de intensificação do trabalho em nosso país.

    CONCLUSÃO Desse relato sobre a duração da jornada de trabalho e sobre seu grau de intensidade resulta que nos dias de hoje convergem tendências que acumulam repercussões sobre a exploração do trabalho. Por um lado, a secular tendência de redução da jornada de trabalho perde força. Por outro, as condições de trabalho agravam sua intensidade e os requerimentos impostos aos trabalhadores/as, em meio a uma plêiade de outras tantas exigências paralelas. A combinação de tais elementos sugere fortes impactos sobre a saúde dos/as trabalhadores/as, em seus aspectos físico, emocional e cognitivo.

     

    Sadi Dal Rosso é professor titular da Universidade de Brasília, no Departamento de Sociologia, onde leciona sociologia do trabalho. É autor, entre outros livros, de A jornada de trabalho na sociedade – O castigo de Prometeu (SP: LTr); Debate sobre a redução da jornada de trabalho (SP: ABET); A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea (SP: Boitempo, no prelo).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Dal Rosso, S.. A jornada de trabalho na sociedade – O castigo de Prometeu. São Paulo: LTr, pp. 225-262, 1996.

    2. Evans, J.M., Lipoldt, D.C., Marianna, P. "Trends in working hours in OECD Countries". OECD Labour Market and Social Policy Occasional Papers nº . 45, OECD Publishing, pp. 7-8, 2001.

    3. Dal Rosso, S. O debate sobre a redução da jornada de trabalho. São Paulo: ABET, pp. 84-89, 1998.

    4. Fernex, A. "Intensité du travail, définition, mesure, evolution". Colloque Intensification du Travail. Centre d'Études de l'Emploi, Paris, 2000.

    5. Bartoli, M. "L'intensité du travail" Thèse pour le Doctorat d'État en sciences économiques. Université des Sciences Sociales de Grenoble, Suisse, 1980.

    6. OCDE. "Medindo a produtividade". OECD Publishing, pp. 14-15, 2002.

    7. Marx, K. O capital. New York: International Publishers, vol. 1, pp. 581-592, 1975.

    8. Gollack, M., e Volkoff, S. "Citius, altius, fortius. L'intensification du travail", Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 114 (septembre), pp. 54-67, 1996.

    9. Fairris, D. "Towards a theory of work intensity". Colloque Intensification du Travail. Centre d'Études de l'Emploi, Paris, 2002.

    10. Dal Rosso, S. A intensificação do trabalho na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo (no prelo), 2006.