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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.58 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2006
TRABALHO, COOPERATIVISMO E DIREITO
José Antônio Peres Gediel
As transformações ocorridas na economia e no mundo do trabalho, nas duas últimas décadas, tornaram obsoletas e inadequadas, a um só tempo, a Consolidação das Leis do Trabalho (1) e a Lei nº 5.764/71(2), que regula as sociedades cooperativas, no Brasil. A precarização do trabalho e as novas formas de organização dos trabalhadores estão a exigir respostas legislativas, que contemplem os direitos fundamentais constitucionais e permitam a formulação de políticas públicas de crédito, qualificação e organização de trabalhadores em cooperativas de produção e prestação de serviços, genericamente denominadas cooperativas de trabalho.
Nesse conjunto de transformações recentes, o Estado Social de Direito, Welfare State, denominação que, simultaneamente, traduz e oculta um longo processo de luta dos trabalhadores, que se inicia na primeira metade do século XIX e resulta na formulação das primeiras leis de proteção aos trabalhadores, entra em declínio com as sucessivas crises econômicas do capitalismo, nas últimas décadas do século XX.
A aproximação do Estado brasileiro com o Estado Social é tardia, frágil e imperfeita e só se delineia claramente com a Constituição Federal de 1988, período em que também começa a sofrer as pressões políticas neoliberais.
Do mesmo modo, o direito do trabalho surge tardiamente no Brasil, na primeira metade do século XX, em virtude da escravidão e da violência com que os trabalhadores livres são reprimidos. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, resulta da luta dos trabalhadores, mas tem como avalista o Estado ditatorial de feição corporativista e fascista.
Com a implementação do projeto neoliberal, o mundo do trabalho se torna mais complexo. O nível de informalidade e precariedade do trabalho se acentua. Milhões de trabalhadores brasileiros encontram-se submetidos a condições de trabalho aviltantes, podendo-se verificar que uma grande maioria não é atingida pelas normas trabalhistas de cunho protetivo. Uma outra expressiva parcela já participou do mercado de trabalho, mas se encontra desempregada, sendo vítima dos processos de reestruturação produtiva preconizados pelas políticas neoliberais e não-sujeitos dos direitos de proteção e tutela dos trabalhadores, como se retira dos dados apresentados pelo Dieese (3):
A taxa média anual de desemprego, em janeiro de 2004, nas seis maiores regiões metropolitanas do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e Recife), medida pela Pesquisa Mensal de Emprego (PME) IBGE, foi de 11,7%.São 2,450 milhões de pessoas desempregadas contra 1,792 milhões em janeiro de 2002, e 2,262 milhões em janeiro de 2003.
Diante disso, é possível indagar a respeito da efetividade do estado democrático de direito e do direito do trabalho, no Brasil. Nessa conjuntura adversa aos trabalhadores, as cooperativas de trabalho apresentam-se como mais um elemento a ser considerado pelo direito do trabalho, principalmente porque trabalho subordinado, cooperativismo e organizações de trabalhadores não tinham, até então, se aproximado no Brasil. Com efeito, o aparecimento do cooperativismo agrícola e de crédito, no final do século XIX, limita-se às regiões de colonização européia mais acentuada e não tem a participação de trabalhadores brasileiros, em sua grande maioria recém saídos da escravidão.
O segundo ciclo do cooperativismo brasileiro é, sem dúvida, marcado pela sua inserção no modelo de empresa agro-exportadora, com forte intervenção do Estado brasileiro, então dirigido por governos ditatoriais militares. Essas características podem ser extraídas do texto da Lei 5.764/71. Por essas e outras razões, a recepção dos princípios do cooperativismo foi precariamente assimilada e as práticas das cooperativas não refletiam, sobretudo, a solidariedade econômica e o valor social do trabalho.
Apesar disso, a crise econômica que se abateu sobre os trabalhadores, nas décadas de 1980 e 1990, os levou a buscar no cooperativismo e na autogestão alternativas de trabalho e renda, mas sem o respaldo da sociedade e do Estado, que desconheciam as práticas do cooperativismo voltadas à defesa democrática dos espaços de produção autogestionários.
Para tornar mais crítica a situação, a Lei 8.949 (4), de 09 de dezembro de 1994, acrescentou um parágrafo único ao artigo 442 da CLT, dispondo que: "Parágrafo único. Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre os tomadores de serviços daquela".
O impacto dessa medida legislativa foi imediato, permitindo que as denominadas cooperativas de trabalho servissem à intermediação de mão-de-obra e repartição de ganhos, segundo os parâmetros do mercado de trabalho terceirizado, sem ônus dos encargos sociais previstos na legislação trabalhista. Por outro lado, atingiu as sociedades cooperativas de trabalhadores que procuram alocar serviços e produtos no mercado e que se organizaram de acordo com os cânones do cooperativismo e da autogestão. A partir daí, todas essas cooperativas passam a ser tratadas à luz da legislação trabalhista como empresas fraudulentas de intermediação e terceirização de mão-de-obra. Abre-se, assim, um vácuo no direito brasileiro, pois nem a legislação cooperativista, nem a legislação trabalhista, têm instrumentos para regular tais cooperativas.
Tal é a gravidade da questão que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lavrou a Recomendação 193/2002 (5) estabelecendo, dentre as políticas nacionais de proteção ao trabalho, a vigilância dos Estados-membros para proibir a criação de cooperativas que dissimulem relações subordinadas de trabalho, violando o direito dos trabalhadores, verbis:
8.1) As políticas nacionais deveriam especialmente:
(...)
b) velar para que a criação de cooperativas não tenha por finalidade ou não se preste a evadir a legislação do trabalho nem sirva para estabelecer relações de trabalho encobertas, e combater as pseudo-cooperativas, que violam os direitos dos trabalhadores, assegurando que a legislação laboral se aplique a todas as empresas.
Dessa forma, a construção de marcos jurídicos que possam superar a contento o vazio legislativo referente às cooperativas de trabalho deve ser feita levando em consideração as diretivas de organismos internacionais, mas deve, também, ter suas bases na Constituição Federal de 1988 que destaca em seu art. 1º , o princípio da função social da livre iniciativa e do trabalho assegurando aos trabalhadores o direito à "relação de emprego" protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa (art. 7º , I). A função social da livre iniciativa impõe ao beneficiário do lucro auferido na atividade empresarial a responsabilidade social daí decorrente.
O art. 170 da Constituição, que introduz o Capítulo da Ordem Econômica e Social, traça duas diretrizes fundamentais quanto ao trabalho: a primeira é a valoração do trabalho humano que não é custo da produção, constituindo-se, ao contrário, como elemento indispensável à manutenção e reprodução do capital.
Outro ponto de balizamento para a construção dos marcos jurídicos do cooperativismo de trabalho exige o exame e a compreensão do trabalho subordinado, a partir do art. 2º da CLT, que está em consonância com os princípios constitucionais, ao destinar ao empregador os riscos da atividade econômica. O grande pacto social subjacente é o de que o empregador dirige a atividade econômica, subordina o trabalho alheio, mas responde socialmente pelos riscos. Assim, a inserção de trabalhadores, cooperados ou não, na produção de bens, cuja titularidade dos meios de produção e dos bens produzidos seja alheia à cooperativa, acarreta, imediatamente, responsabilidades trabalhistas para quem se utiliza do trabalho subordinado.
Outro elemento para balizar os marcos jurídicos do cooperativismo do trabalho retira-se da Lei 5.764/71, que regulamenta o cooperativismo no Brasil e não reconhece que as cooperativas se prestem para transferir riquezas advindas da força de trabalho tomada por terceiros, determinando que o cooperado é, ao mesmo tempo, trabalhador da cooperativa e beneficiário único e direto desse trabalho (Lei 5.764/71, artigos 4º , 6º e 7º ). Trata-se do princípio da dupla qualidade do trabalho cooperado.
Com base nessas balizas constitucionais e legais restará, ainda, enfrentar questões conceituais para que se possa ter uma regulação jurídica adequada às cooperativas de trabalhadores, que se associam para auferir vantagens, trabalham de forma coordenada e dividem as decisões e os resultados do próprio trabalho, firmando um processo de autogestão da produção e dos serviços, transferindo a terceiros apenas os produtos e os serviços acabados, não força de trabalho que possibilitaria a produção fora do espaço cooperativo.
A literatura jurídica especializada do cooperativismo, ainda não estabeleceu distinções necessárias a essa regulação das cooperativas de trabalho que, de modo geral, podem ser divididas em cooperativas de produção e cooperativas de serviço. As primeiras são aquelas em que os trabalhadores detêm os meios de produção e, de forma autogestionária, entregam ao mercado o produto acabado; as segundas aproximam trabalhadores autônomos para potencializar a captação de clientes e de recursos para a prestação de serviço. As cooperativas de intermediação de mão-de-obra, conforme exposto, não são condizentes com os ideais do cooperativismo e tampouco são tuteladas pela CLT.
O trabalho em cooperação é, inegavelmente, de difícil apreensão pelo direito do trabalho, originalmente demarcado pela divisão capital-trabalho, pelo individualismo, pelo controle da empresa sobre o trabalhador, por seus vínculos tradicionais com o Estado. Esse tipo de trabalho rompe, por isso, com os paradigmas tradicionais do liberalismo jurídico, uma vez que os movimentos cooperativos surgiram como reação às injustiças sociais, na mesma época em que surge o direito do trabalho. O direito cooperativo, nesta perspectiva, destina-se a estimular a função social da produção, a democratizá-la transferindo, sob a forma de apropriação coletiva dos bens de produção, a capacidade empresarial aos trabalhadores, antes restrita aos detentores do capital.
Trata-se, portanto, de delicada tarefa legislativa, pois é necessário suprir as lacunas da Lei 5.764/71 e estabelecer distinções, sem abrir espaços para violações à legislação trabalhista, tomando como parâmetro os princípios e regras da Constituição Federal de 1988.
Urge aprimorar o conceito de trabalho autônomo, coletivamente organizado em cooperativas, distinguindo-o do trabalho subordinado e do trabalho autônomo individual. Em seguida, é necessário objetivar esse conceito nos instrumentos jurídicos para assegurar sua efetividade. É necessário definir em quais gêneros da espécie "cooperativas de trabalho" poderá ocorrer o trabalho autônomo coletivo. Caberá, ainda, repactuar as relações entre o Estado brasileiro e as sociedades cooperativas, para implementar políticas públicas, em todas as suas esferas (federal, estadual e municipal), para apoiar, fomentar e consolidar o cooperativismo que não se reconhece, nem no cooperativismo empresarial, nem no fraudulento.
O envio do Projeto de Lei nº 7.009/2006, de autoria do poder executivo, em maio deste ano, que "dispõe sobre a organização e o funcionamento das cooperativas de trabalho, institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho (Pronacoop) e dá outras providências", não aponta soluções satisfatórias, mas altera, significativamente, o processo de discussão dessa matéria em vários fóruns da sociedade. A esse projeto foram apensados o Projeto de Lei nº 4.622/2004 de autoria do deputado Pompeu de Matos (PDT-RS), e o Projeto de Lei nº 6.449/2005 de autoria do deputado Walter Barelli e outros (PSDB-SP), o que tornará complexa a discussão da matéria no Congresso Nacional, uma vez que seguem orientações políticas distintas no que se refere às cooperativas de trabalho. Após o envio do PL 7.009/2006 não houve qualquer avanço na discussão em qualquer comissão do Congresso e a questão do Projeto de Lei 171 de autoria do senador Osmar Dias (PDT-PR), versando sobre a lei geral do cooperativismo, também não avançou e deixou de tratar das cooperativas de trabalho.
A afirmação de Boaventura de Sousa Santos (6) de que "a redescoberta democrática do trabalho é a condição sine qua non da reconstrução da economia como forma de sociabilidade democrática" soa, ao mesmo tempo, desafiante e promissora. Isto porque conclui pela existência de condições de trabalho no mundo contemporâneo, que dificultam ou impedem a realização da atividade humana produtiva, de acordo com as necessidades da sociedade onde ela se realiza e do sujeito que a exerce. Promissora, porque divisa possibilidades de reconstrução desse universo fragmentado.
José Antônio Peres Gediel é doutor em direito das relações sociais, professor de direito civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e coordenador do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-graduação em direito da mesma universidade.
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
1. Brasil. Leis, etc. Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943 (CLT).
2. Brasil. Leis, etc. Lei 5.764, 1971.
3. Convênios Dieese/Seade; FEE-FGTAS-Sine/RS; SEI/Setras/Ufba; Seplan/PE; STH/GDF; CEI/FJP/Setas/Sine-MG. In: Dieese/CUT. Programas coletivos de trabalho. São Paulo: PUC/SP, 2004.
4. Brasil. Lei 8.949, 09 de dezembro de 1994.
5. Conferência Internacional do Trabalho. Recomendação 193. Genebra, OIT, 2002. Disponível em: <http://www.ilo.org/images/empent/static/coop/pdf/Portuguese-Brazilian%20version.pdf> Acesso em: 15 mar 2005.
6. Santos, B. de S.. Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva, 1998.