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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.59 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2007
CRÍTICA GENÉTICA EM EXPANSÃO
Cecilia Almeida Salles; Daniel Ribeiro Cardoso
A crítica genética, em seu surgimento, propunha o acompanhamento teórico-crítico do processo de criação na literatura; no entanto, já trazia consigo a possibilidade de explorar um novo campo transdisciplinar, que nos levaria a poder discutir o processo criador em outras manifestações artísticas. Essa ampliação dos estudos genéticos parecia já estar inscrita na própria definição de seu propósito e de seu objeto de estudo. Se os estudos genéticos tinham como objetivo compreender o processo de constituição de uma obra literária e seu objeto de estudo eram os registros do escritor encontradas nos manuscritos, esse campo de pesquisa deveria quase que necessariamente romper a barreira da literatura e ampliar seus limites para além da palavra, pois processo e registros são independentes da materialidade na qual a obra se manifesta e independentes, também, das linguagens nas quais essas pegadas se apresentam. Seria possível, portanto, conhecer alguns dos procedimentos da criação, em qualquer manifestação artística, a partir desses registros deixados pelos artistas.
Em 1992, quando a primeira edição do livro Introdução aos estudos genéticos foi publicada, esses novos rumos já estavam, de certo modo, sendo delineados. Tinha-se discutido, ali, os estudos em crítica genética limitados ao manuscrito literário. "Foi assim que nasceram e assim estão sendo desenvolvidas as pesquisas até o momento. No entanto, sabemos ser inevitável a necessidade de ampliar seus limites. Certamente, ouviremos falar, em muito pouco tempo, sobre estudos de manuscritos em artes plásticas, música, teatro, arquitetura até manuscritos científicos. Isto oferece novas perspectivas para pesquisas sobre as especificidades e as generalidades dos processos criativos artísticos, para não mencionar a possibilidade de se adentrar o interessante campo de pesquisa dedicado à relação ciência/arte agora sob a ótica genética"(1).
Hoje, os estudos genéticos abarcam os processos comunicativos em sentido mais amplo, a saber, literatura, artes plásticas, dança, teatro, fotografia, música, arquitetura, jornalismo, publicidade etc. Essa ampliação deve-se, inicialmente, às contribuições teóricas e metodológicas trazidas na tese "Criação em processo: Ignácio de Loyola Brandão e Não verás país nenhum" (2), defendida em 1990 por Cecilia Salles, assim como às pesquisas desenvolvidas pelo Centro de Estudos de Crítica Genética do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CECG-PUC/SP). Pierre-Marc de Biasi, de modo semelhante, prevê esses novos direcionamentos da crítica genética, em seu artigo "Lhorizon génétique" (3).
Trata-se de uma abordagem para a obra de arte a partir do acompanhamento dos documentos desses processos, tais como, anotações, diários, esboços, maquetes, vídeos, contatos, projetos, roteiros, copiões etc. Na relação entre esses registros e a obra entregue ao público, encontramos um pensamento em processo. E é exatamente como se dá essa construção o que nos interessa. Uma abordagem crítica que procura discernir algumas características específicas da produção criativa, ou seja, entender os procedimentos que tornam essa construção possível. Tendo em mãos os diferentes documentos deixados pelos artistas, ao longo do processo, o crítico estabelece nexos entre os dados neles contidos e busca, assim, refazer e compreender a rede do pensamento do artista. A metodologia dessas pesquisas se assenta naquilo que Morin (4), ao discutir a reforma do pensamento em direção ao desenvolvimento de uma inteligência mais geral, descreve como "arte de transformar detalhes aparentemente insignificantes em indícios que permitam reconstituir toda uma história". Uma abordagem cultural em diálogo com interrogações contemporâneas, que encontra eco nas ciências que discutem verdades inseridas em seus processos de busca e, portanto, não absolutas e finais.
É interessante observar que, de modo especular, a crítica genética passa por ajustes, a medida em que vai se desenvolvendo. Em nome de sua inevitável expansão, sofre rasuras transformadoras que exigem ajustes conceituais, teóricos e metodológicos. Uma dessas adequações diz respeito a seu objeto de estudo o manuscrito. Nos estudos de crítica genética de literatura, o termo manuscrito já não era usado limitando-se a seu significado de "escrito à mão". Dependendo do escritor, podíamos nos deparar com documentos escritos à máquina, à mão, digitados no computador ou provas de impressão, que receberam alterações por parte do próprio autor.
Lidando com as outras manifestações artísticas, as dificuldades de se adotar o termo manuscrito aumentaram. Seria difícil continuar falando de esboços, ensaios, partituras, copiões, contatos e maquetes como manuscritos, que estavam estreitamente ligados à linguagem verbal. Buscou-se um outro termo que desse conta da diversidade das linguagens. Documentos de processo pareceu cumprir essa tarefa (5). Acredito que este termo nos dá mais amplitude de ação. Fica claro que os manuscritos dos escritores são documentos (ou registros) dos processos de criação literária.
Pode-se dizer que esses documentos, independente de sua materialidade, contêm sempre a idéia de registro. Há, por parte do artista, uma necessidade de reter alguns elementos, que podem ser possíveis concretizações da obra ou auxiliares dessa concretização. Cada tipo de documento oferece ao crítico informações diversas sobre a criação e lança luzes sobre momentos diferentes desse percurso.
Pretendemos, com as reflexões que esses documentos proporcionam, oferecer uma outra maneira de se aproximar da arte, que incorpora seu movimento construtivo. Trata-se de uma discussão das obras como objetos móveis e inacabados, que difere significativamente dos estudos sobre os fenômenos artísticos, em suas diversas manifestações, que discutem os produtos assim como são mostrados publicamente.
É sempre interessante lembrar que o histórico desses estudos tem datas bem delimitadas se levarmos em conta a natureza oficial, no campo científico, do nome crítica genética:1968, França, com a criação do Institut de Textes et Manuscrits Modernes (ITEM/CNRS). Muitos outros críticos fizeram estudos genéticos sem receber o nome de crítica genética. Rudolf Arnheim (6), por exemplo, que publicou em 1962, The genesis of a painting. Picassos Guernica, onde são esmiuçados os esboços da Guernica para conhecer o nascimento, movimentos e relações das personagens de Picasso. Italo Calvino (7), em seu livro Seis propostas para o próximo milênio, vê os manuscritos de Leonardo da Vinci abrindo uma fresta para o funcionamento de sua imaginação. Não se pode esquecer, também, do texto de Roman Jakobson (8), Yeats "Sorrow of Love" através dos anos, publicado em 1977 .
As artes visuais são, e sempre foram, no Brasil e no exterior, alvo de inúmeras exposições de esboços, rascunhos ou cadernos de artistas; porém, não são todas que deixam o processo aparente. Desenhos isolados não são documentos processuais, pois não têm o poder de indiciar o desenvolvimento de um pensamento em criação. O Museu Rodin, em Paris, muitas vezes, oferece esse tipo de exposição que apresenta desenhos e moldes de uma obra específica. A exposição Paraíso, de Arthur Luiz Piza, no Instituto Moreira Salles (9), para citar outro exemplo, onde foram expostos os cadernos de anotações do artista. Segundo Piza (10), ele nunca volta atrás, não tem julgamentos em relação a esses cadernos, "não passam por processos de obras". Essas "confissões pessoais" (como ele chama) ganharam reproduções: as imagens foram escaneadas e emolduradas.
A exposição Gaudí - A procura da forma (11) centrou-se, particularmente, na lógica das operações e transformações empregadas no processo de criação das formas para constituição dos espaços arquitetônicos inusitados, característica própria do artista catalão. Fotos de obras, esboços e maquetes são colocadas lado a lado com instigantes simulações que jogam luz sobre seu processo criativo. Observa-se que Gaudí parte de elementos básicos volumes e superfícies para em seguida, aplicar operações geométricas e transformações topológicas em busca das superfícies e efeitos desejados. Tem-se a certeza, ao sair da exposição, de ter conhecido, acima de tudo, um Gaudí geômetra.
É importante ressaltar duas questões que sempre surgem quando se apresenta essa abordagem para a obra artística. Por um lado, embora se tenha a consciência de que o crítico genético não tem acesso a todo o processo de criação não há a ilusão da totalidade mas apenas a alguns de seus índices. Pode-se, no entanto, afirmar, com certa segurança, que convivendo, observando e estabelecendo relações entre os documentos do processo que se teve acesso, pode-se conhecer melhor o percurso da formação da obra, em pesquisas de natureza indutiva. Sob esse ponto de vista, não há a pretensão de encontrar fórmulas explicativas para esse fenômeno de grande complexidade mas a tentativa de se aproximar, por diferentes ângulos, desse processo responsável pela geração de uma obra.
Por outro lado, enfatiza-se que se trata de uma outra possível abordagem para a arte, que caminha lado a lado com as críticas das obras, assim como foram entregues ao público. Trata-se, portanto, de um encontro bastante fértil com as críticas de obras.
Quanto à abordagem teórica dada aos documentos dos processos criativos, pode-se afirmar que os pesquisadores devem procurar, antes de mais nada, por teorias adequadas a objetos em movimento, na medida em que o propósito é a compreensão de processos. Já em outro nível, cada investigador direciona sua pesquisa para metas mais específicas, de acordo com o que seu material fornece, isto é, as especificidades dos documentos com os quais ele está trabalhando e, também, de acordo com as explicações por ele buscadas.
As diferentes abordagens, mantendo suas singularidades, têm contribuído para uma ampliação de nosso conhecimento sobre o objeto estudado. Os pesquisadores passam a saber cada vez mais sobre o processo criativo graças aos diferentes resultados das diversas pesquisas dedicadas a esse assunto. É aqui que apontamos para a importância do diálogo entre os pesquisadores, essência de uma prática científica, onde se chega a resultados de natureza geral pontos comuns a partir de diferentes abordagens e, ao mesmo tempo, chega-se a resultados de caráter singular. São as especificidades relativas ao poder de cada instrumental teórico. A reunião desses resultados leva ao enriquecimento da explicação que se pode dar ao fenômeno processo de criação.
A crítica genética vinha se dedicando a estudos de casos: análise e interpretação do processo criador de determinados artistas. Pesquisas com o propósito de entrar na singularidade de um processo criativo. Neste contexto, foram produzidos muitos artigos, teses, dissertações que se dedicam ao acompanhamento da produção de obras de Daniel Senise, Ignácio de Loyola Brandão, Evandro Carlos Jardim, Regina Silveira, Graciliano Ramos, Carlos V. Fadon, Lucas Bambozzi, Eugène Delacroix, Paul Gauguin, Joan Miró, Luis Paulo Baravelli, Roberto Santos, Elizabeth Bishop, Cildo Meireles, Caio Reisewitz, para citarmos somente alguns.
Por necessidade científica, mais recentemente, alguns pesquisadores vêm avançando em direção a uma generalização sobre o processo de criação, levando a princípios que norteiam uma possível teoria da criação. É o estudo das singularidades buscando generalizações.
A análise de documentos de diferentes meios de expressão possibilitou-nos chegar a algumas caracterizações, de natureza geral, sobre o ato criador. As comparações e contrastes entre as singularidades, mais a adição de informações advindas das mais diversas fontes como depoimentos, entrevistas, diários, making offs apontam para o encontro desses instrumentos analíticos de caráter mais geral.
A diversidade de estudos de documentos de artistas específicos nos permite encontrar assim alguns procedimentos de natureza geral, que ganham nuances em processos específicos. São essas variações que nos levam às singularidades dos procedimentos de um artista determinado. O percurso da criação mostra-se como um emaranhado de ações que, em um olhar ao longo do tempo, deixam transparecer repetições significativas. É a partir dessas aparentes redundâncias que se pôde estabelecer algumas generalizações sobre o fazer criativo, a caminho de uma teorização. Não seriam modelos rígidos e fixos que, normalmente, mais funcionam como fôrmas teóricas que rejeitam aquilo que nelas não cabem. São, na verdade, instrumentos que permitem a ativação da complexidade do processo. Não guardam verdades absolutas, pretendem, porém, ampliar as possibilidades de discussão sobre o processo criativo.
É nesse ambiente que os livros Gesto inacabado: processo de criação artística (12) e Redes da criação: construção da obra de arte (13) se inserem: apresentação e discussão dessa morfologia do processo criador. Uma possível teoria da criação com base na semiótica de Charles S. Peirce, que teve como ponto de partida os estudos singulares de documentos de processos e, ao mesmo tempo, alimenta-se dessas mesmas pesquisas. São guias condutores flexíveis e gerais o suficiente para retornarem depois aos processos específicos. Semelhante à busca de Eisenstein (14), procuramos por uma morfologia "volátil e não um cânone inflexível".
Para alcançar esse objetivo, recorremos a documentos de áreas diversas: registros de escultores, cineastas, videomakers, escritores, pintores, coreógrafos, arquitetos etc. As diferentes manifestações artísticas se cruzam em reflexões sobre modos de criação, abrindo assim diálogo com todos aqueles que, por motivos os mais diversos, se interessam pela criação artística.
Para desenvolver tais discussões, são estabelecidos diálogos entre pensadores da filosofia e da arte e os próprios artistas. Reflexões gerais que mantêm diálogo permanente com os documentos dos artistas. Seus relatos, desse modo, trazem de volta a experiência múltipla e vívida que alimenta toda a reflexão teórica. Esses exemplos devem ser vistos como seleções feitas daqueles considerados mais significativos para ampliar a compreensão sobre os aspectos do processo criativo, que está sendo enfocado.
O Gesto inacabado se propunha a pensar o processo de criação artística, mas estava, provavelmente, indo além dos limites desse objeto específico. Pretendia-se, naquele momento, "oferecer mais do que um simples relato de uma pesquisa, mas uma possibilidade de se olhar para os fenômenos em uma perspectiva de processo". Estávamos, de certo modo, oferecendo alguns instrumentos para uma teorização que se ocupa dos fenômenos em sua mobilidade.
Acreditamos que essas discussões tornaram-se fundamentais para se pensar certas questões contemporâneas, que envolvem, por exemplo, a autoria e a intrincada relação obra & processo. As reflexões teóricas que trazem essa perspectiva processual para a arte ultrapassam, portanto, os ditos bastidores da criação. Daí percebermos que estávamos diante de recursos teóricos para desenvolver uma crítica de processo, que parecia abranger mais do que a crítica genética. Muitas questões de extrema importância para se discutir a arte em geral e aquela produzida nas últimas décadas, de modo especial, necessitam de um olhar que seja capaz de abarcar o movimento.
Algumas obras, incluindo todo o potencial que as mídias digitais oferecem, parecem exigir novas abordagens. Ao mesmo tempo, muitas dessas obras exigem novas metodologias de acompanhamento de seus processos construtivos e não somente a tradicional coleta de documentos, no momento posterior à apresentação da obra publicamente, isto é, a abertura das gavetas dos artistas para conhecer os registros das histórias das obras. Muitos críticos de processos passaram a conviver com o percurso construtivo em ato. Algumas obras contemporâneas mas não só incitam, ou mesmo forçam, a constituição de novas metodologias para abordar seus processos de criação. Ao mesmo tempo, os resultados desses estudos mudam, de alguma maneira, os modos de abordá-las sob o ponto de vista crítico.
Essas novas questões, que pareciam merecer maior atenção, exigiam novas formas de desenvolvimento do pensamento que dessem conta de múltiplas conexões em permanente mobilidade. Chega-se, assim, às redes.
A perspectiva processual, se levada às ultimas conseqüências, não se limita, portanto, a documentos já produzidos, que, portanto, pertencem ao passado das obras. Ficou claro que estavam sendo construídos instrumentos teóricos, que se ocupam de redes móveis de conexões. Ao olhar retrospectivo da crítica genética, estávamos adicionando uma dimensão prospectiva, oferecendo em abordagem processual. Surge, assim, a crítica de processo.
Cecilia Almeida Salles é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Coordena o Centro de Estudos de Crítica Genética da PUC/SP e é pesquisadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética da USP.
Daniel Ribeiro Cardoso é doutorando em comunicação e semiótica pela PUC/SP. Pesquisador do Centro de Estudos de Crítica Genética da PUC/SP e do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética da USP.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Salles, Cecília A. Crítica genética: uma introdução. São Paulo: Educ, p 106. 1992.
2. Salles, Cecilia A."Criação em processo: Ignácio de Loyola Brandão e Não verás país nenhum". Tese de doutorado. PUC/ SP, 1990.
3. Biasi, Pierre-Marc. "Lhorizon génétique". In L. HAY (org.), Les manuscrits des écrivains Paris: Hachette/CNRS Editions, 1993.
4. Morin, Edgar. A inteligência da complexidade. São Paulo: Peirópolis, p 23. 2000.
5. Salles, Cecília A. crítica genética: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 2000.
6. Arnheim, Rudolf. El "Guernica" de Picasso - Génesis de una pintura. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 1976.
7. Calvino, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
8. Jakobson, Roman. Poéticas em ação. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1990.
9. Piza, Arthur L. Paraíso. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005.
10. Piza, Arthur L. op cit. pp 04 e 08. 2005.
11. Gaudí, Antoni. Gaudí: A procura da forma. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2004.
12. Salles, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998.
13. Salles, Cecília A. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Ed. Horizonte, 2006.
14. Eisenstein, Serguei. Memórias imorais. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.