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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.2 São Paulo Apr./June 2007

     

     

    DILEMAS DOS ESTUDOS ÉTNICOS NORTE-AMERICANOS: MULTICULTURALISMO IDENTITÁRIO, COLONIZAÇÃO DISCIPLINAR E EPISTEMOLOGIAS DESCOLONIAIS

    Ramón Grosfoguel
    Tradução: Flávia Gouveia

     

    Os estudos étnicos nos Estados Unidos constituem um espaço contraditório que condensa posições rivais divididas, atualmente, entre dois discursos hegemônicos (multiculturalismo identitário e colonização disciplinar) e um contra-hegemônico (epistemologias descoloniais). À diferença de outras partes do mundo, nos Estados Unidos os estudos étnicos surgem como parte do movimento de direitos civis das minorias discriminadas. No final dos anos 1960 e início dos 1970, ocorreram várias greves estudantis e ocupações de universidades, organizadas pelas minorias discriminadas. Esses movimentos conduziram à criação de estudos afro-americanos, portorriquenhos, "chicanos" (estadunidenses de origem mexicana), asiáticos e indígenas através de todo o país. Tal "insurgência epistêmica" foi fundamental para abrir espaços a professores provenientes de grupos etno-raciais discriminados e epistemologias não-ocidentais, no que até aquele momento eram universidades monopolizadas por professores e estudantes brancos e epistemologias eurocentradas que privilegiam a "ego-política do conhecimento" (1) .

    Se a epistemologia eurocêntrica se caracteriza não apenas por privilegiar um padrão de pensamento ocidental mas também por estudar o "outro" como objeto e não como sujeito que produz conhecimentos (encobrindo, ao mesmo tempo, a geopolítica e a corpo-política do conhecimento, a partir das quais pensam os pensadores e intelectuais acadêmicos brancos), a entrada de professores "de cor", com os programas de ação afirmativa e a criação de programas de estudos étnicos dirigidos a estudar os problemas que confrontam as minorias discriminadas, constituiu uma mudança importante na produção de conhecimentos acadêmicos. Muitos dos professores das minorias discriminadas daquela época (final dos anos 1960 e década de 1970) eram intelectuais ativistas que privilegiavam a "geopolítica do conhecimento" e a "corpo-política do conhecimento" sobre a "ego-política do conhecimento". Pela primeira vez em um espaço universitário ocidental se rompe com a dicotomia sujeito-objeto da epistemologia cartesiana. Em vez de um sujeito branco estudando sujeitos não-brancos como objetos do conhecimento, assumindo-se a si mesmo como um observador neutro não situado em nenhum espaço nem corpo ("ego-política do conhecimento"), o que lhe permite portanto reclamar uma falsa objetividade e neutralidade epistêmica, temos a nova situação de sujeitos das minorias discriminadas estudando a si mesmos como sujeitos que pensam e produzem conhecimentos a partir de corpos e espaços subalternizados e inferiorizados ("geopolítica e corpo-política do conhecimento") pela epistemologia racista e o poder ocidental. É exagero dizer que seus trabalhos questionaram a visão hegemônica branca acerca das minorias discriminadas que se concentravam em tornar estes últimos responsáveis pela marginalização e pobreza da sociedade norte-americana (paradigmas da "cultura da pobreza" e a "modernização"), encobrindo o seu racismo (2). Isso não apenas provocou o racismo epistêmico, que atribui e reconhece a produção de teoria aos sujeitos ocidentais brancos enquanto os não-brancos produzem folclore, mitologia ou cultura mas não conhecimento de igual para igual com o ocidente, mas abriu um potencial para a descolonização do conhecimeto ao desafiar a "ego-política do conhecimento" cartesiana das ciências ocidentais, opondo-lhe a "geopolítica e a corpo-política do conhecimento" dos sujeitos subalternos. Digo "potencial" porque tal processo descolonial não está terminado e enfrenta vários obstáculos. Este trabalho busca identificar os obstáculos que ainda se confrontam nos estudos étnicos, mas antes é necessário esclarecer alguns conceitos indispensáveis à discussão.

    RACISMO EPISTÊMICO O racismo epistêmico é um dos racismos mais invisibilizados no "sistema-mundo capitalista/patriarcal/ moderno/ colonial" (1). O racismo em nível social, político e econômico é muito mais reconhecido e visível que o racismo epistemológico. Este último opera privilegiando as políticas identitárias (identity politics) dos brancos ocidentais, ou seja, a tradição de pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres) é considerada como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a única com capacidade de acesso à "universidade" e à "verdade". O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais. Se observarmos o conjunto de pensadores que se valem das disciplinas acadêmicas, vemos que todas as disciplinas, sem exceção, privilegiam os pensadores e teorias ocidentais, sobretudo aquelas dos homens europeus e/ou euro-norte-americanos. Essas identity politics hegemônicas são tão poderosas e tão normalizadas sob o discurso de objetividade e "neutralidade" da "ego-política do conhecimento" das ciências humanas que quando se pensa em identity politics se assume imediatamente como "senso comum" que se trata das minorias discriminadas. De fato, sem negar a existência de identity politics entre setores das minorias discriminadas, as identity politics hegemônicas – do discurso eurocêntrico – utilizam esse discurso identitário racista para descartar toda intervenção crítica proveniente de epistemologias "outras" (3). O mito que entretanto subjaz à academia é o discurso cientificista da "objetividade" e "neutralidade" que esconde o "locus de enuciação", ou seja, quem fala e a partir de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de poder se fala (4) Sob o mito da "ego-política do conhecimento" (que na realidade sempre fala a partir de um corpo masculino branco e uma geopolítica do conhecimento eurocentrada) se desautorizam as vozes críticas provenientes dos pensadores de grupos subalternos inferiorizados pelo racismo epistêmico hegemônico. Se a epistemologia tem cor, como bem destaca o filósofo africano Emmanuel Chukwudi Eze (5),então a epistemologia eurocentrada dominante nas ciências sociais também tem. A construção desta última como superior e as do resto do mundo como inferiores forma parte inerente do racismo epistemológico imperante no sistema-mundo há mais de quinhentos anos.

    O privilégio epistêmico dos brancos foi consagrado e normalizado com a colonização das Américas no final do século XV. Desde renomear o mundo com a cosmologia cristã (Europa, África, Ásia e, mais tarde, América), caracterizando todo conhecimento ou saber não-cristão como produto do demônio, até assumir, a partir de seu provincianismo europeu, que somente pela tradição greco-romana, passando pelo renascimento, o iluminismo e as ciências ocidentais, é que se pode atingir a "verdade" e "universalidade", inferiorizando todas as tradições "outras" (que no século XVI foram caracterizadas como "bárbaras", convertidas no século XIX em "primitivas", no século XX em "subdesenvolvidas" e no início do século XXI em "antidemocráticas"), o privilégio epistêmico das indentity politics brancas eurocentradas foi normalizado ao ponto invisibilizar-se como identity politics hegemônicas. Por isso os estudos étnicos, desde sua formação até fins dos anos sessenta nos Estados Unidos, foram sempre objeto de ataque por parte do racismo epistêmico das disciplinas das ciências humanas ocidentais (ciências sociais e humanidades), argumentando a inferioridade, parcialidade, e falta de objetividade de seus saberes e da produção de conhecimentos.

    IDENTITY POLITICS Frente às identity politics hegemônicas que sempre privilegiaram a beleza, conhecimentos, tradições, espiritualidades e costumes brancos, europeus, cristãos e ocidentais, inferiorizando e subalternizando a beleza, conhecimentos, tradições, espiritualidades e costumes não-europeus, não-cristãos e não-ocidentais, os sujeitos discriminados/ inferiorizados por esses discursos hegemônicos desenvolveram suas próprias identity politics em reação ao racismo inicial. Esse processo foi necessário como parte de um processo de valorização de si mesmos em um mundo racista que os inferioriza e desqualifica de sua humanidade. Contudo, esse processo de afirmação identitária tem seus limites se se converte em propostas fundamentalistas que invertem os termos binários do racismo branco/eurocêntrico hegemônico. Por exemplo, se se assume que os grupos etno/raciais subalternizados (não-brancos) são superiores e que os dominantes (brancos) são inferiores, o que se faz é inverter os termos do racismo branco hegemônico sem superar o problema de fundo: o racismo, isto é, a inferiorização cultural e/ou biológica de alguns seres humanos, elevando outros à categoria de superiores (2). Outro exemplo é se se aceita, como fazem alguns fundamentalismos islâmicos e afrocentristas, o discurso eurocêntrico hegemônico de que somente a tradição européia é natural e inerentemente democrática, enquanto os "outros" não-europeus são natural e inerentemente autoritários, negando discursos democráticos e formas de institucionalidade democrática ao mundo não-ocidental (logicamente, distintas à democracia liberal ocidental) e, por conseguinte, apoiando formas de autoritarismo político. Isso é o que fazem todos os fundamentalismos terceiro-mundistas ao aceitarem a premissa eurocêntrica de que a única tradição democrática é a ocidental e, portanto, ao assumirem que a democracia não se aplica à sua "cultura" e às suas "sociedades", defendendo formas monárquicas ou ditatoriais de autoridade política. Assim se reproduz um eurocentrismo invertido.

     

     

    A "balcanização" que se deriva dessas políticas identitárias acaba reproduzindo invertidamente o mesmo essencialismo e fundamentalismo do discurso hegemônico eurocentrado. Se o fundamentalismo assume sua própria cosmologia e epistemologia como a única verdadeira e superior, inferiorizando e sem reconhecer igualdade a nenhuma outra, então o eurocentrismo é apenas uma forma de fundamentalismo, senão o fundamentalismo hegemônico no mundo atualmente. Os fundamentalismos terceiro-mundistas (afrocentristas, islamistas, indigenistas etc), que surgem em reação ao fundamentalismo eurocêntrico hegemônico, são formas subordinadas de fundamentalismo eurocentristas na medida em que deixam intactas as hierarquias binárias e raciais do fundamentalismo eurocêntrico (1). Nos estudos étnicos norte-americanos, lamentavelmente há uma minoria vociferante de fundamentalistas afro-centristas, indigenistas, asiático-centristas e hispanistas que questionam a validade e legitimidade desses programas. Entretanto, felizmente esses grupos são uma minoria insignificante, ainda que, infelizmente, os supremacistas brancos exagerem sua influência para desprestigiar os departamentos/programas de estudos étnicos nos Estados Unidos devido a suas agendas de crítica ativa anti-racista e anti-eurocentrista.

    IDENTIDADES NA POLÍTICA E TRANSMODERNIDADE As políticas identitárias partem de um reducionismo identitário e culturalista que acaba essencializando e naturalizando as identidades culturais. Nesses projetos identitários não há espaço ou há uma forte reticência para grupos cuja origem etno-racial seja distinta à do grupo. Eles normalmente mantêm fronteiras identitárias ainda entre os próprios grupos subalternos, impossibilitando o diálogo e as alianças políticas. Em alguns casos acabam invertendo o racismo hegemônico e reproduzindo um racismo invertido ao fazer do grupo etno-racial subalterno um grupo cultural e/ou biologicamente superior aos brancos.

    Muito diferentes das identity politics são as "identidades na política". Estas últimas se baseiam em projetos ético-epistêmicos abertos a todos, não importa a origem etno-racial da pessoa. Por exemplo, os zapatistas no sudoeste do México são um movimento insurgente indígena, pensando epistemicamente a partir de epistemologias/cosmologias ameríndias, aberto a todas as pessoas e grupos que apóiem e simpatizem com suas propostas políticas. No interior do movimento zapatista há brancos e mestiços. O movimento liderado por Evo Morales na Bolívia é um movimento indígena que pensa e desenvolve uma descolonização do Estado branco boliviano a partir da cosmologia do Ayllú das comunidades aymaras. Esse movimento possui entre seus líderes e em suas filas militantes brancos e mestiços que assumiram o projeto político ético-epistêmico Aymara. Outro exemplo são as práticas espirituais africanas nas Américas que, mesmo partindo de cosmologias/epistemologias de origem africana (yoruba, bantú etc), estão também abertas à participação de todos. Isso quer dizer que não há correspondência entre a identidade ético-epistêmica do projeto (neste caso de origem indígena ou africana) e a identidade étnica/racial dos indivíduos que militam em tais movimentos. Por conseguinte, de forma muito diferente das identity politics, não se exclui nada que apóie o projeto por razões de origem étnico-racial.

    Se o eurocentrismo busca desqualificar essas epistemologias alternadas para inferiorizá-las, subalternizá-las e desautorizá-las e, desse modo, construir um mundo de "pensamento único" que não permite pensar "outros" mundos possíveis mais para além da mundialização "capitalista neoliberal branca masculina", o projeto que propomos aqui seria um que transcenda o monopólio epistêmico eurocêntrico do sistema-mundo moderno/colonial. Reconhecer que existe diverdidade epistêmica no mundo apresenta um desafio à modernidade/colonialidade do mundo existente. Já não é possível construir a partir de uma só epistemologia um desenho global como "solução única" aos problemas do mundo, seja da esquerda (socialismo, comunismo etc) ou da direita (desenvolvimentismo, neoliberalismo, democracia liberal etc). A partir dessa diversidade epistêmica há propostas anticapitalistas, antipatriarcais e antiimperiais diversas, que aprensentam diferentes maneiras de enfrentar e solucionar os problemas produzidos pelas relações de poder sexuais, raciais, espirituais, lingüísticas, de gênero e de classe no presente "sistema-mundo capitalista/patriarcal moderno/colonial" (1). Essa diversidade de propostas de epistemologias "outras" subalternizadas e silenciadas pela epistemologia eurocêntrica aprensentaria uma maneira de transcender a modernidade eurocentrada para além das propostas de culminar na modernidade (6) ou de desenvolver a pós-modernidade. Essas últimas constituem críticas eurocêntricas ao eurocentrismo (4).

    Trata-se, portanto, de desenvolver o que o filósofo de liberação Enrique Dussel (7) chama "transmodernidade" como projeto para culminar não na modernidade nem na pós-modernidade, mas no projeto incompleto e inacabado da descolonização. "Trans" aqui se usa no sentido de mais além da modernidade. Na transmodernidade há tantas propostas de liberação da mulher e da democracia quantas epistemologias há no mundo. As "feministas da diferença" parisienses não podem impor suas soluções e maneiras de lutar contra o patriarcado às feministas islâmicas no Irã, às feministas indígenas Zapatistas no México ou às feministas negras nos Estados Unidos. Da mesma forma, o mundo ocidental não pode impor seu conceito liberal de democracia às formas de democracia indígena, islâmicas ou africanas. Por exemplo, o zapatismo de cosmologias tojolabales redefine a democracia como "mandar obedecendo" e sua institucionalidade prática constitui os "caracóis". Conceitos muito distintos à democracia ocidental em que "o que manda não obedece e o que obedece não manda" e cuja institucionalidade prática são os parlamentos ou assembléias nacionais.

    A transmodernidade não é um relativismo de everything goes pois se trata do pensamento crítico anticapitalista, antipatriarcal, antieurocêntrico (nunca antieuropeu) e antiimperial que nasce da diversidade espistêmica do mundo. Para o pensamento descolonial não há qualquer epistemologia que possa reclamar o monopólio sobre o pensamento crítico no planeta, como pretendeu o imperialismo da epistemologia acidental no sistema-mundo nos últimos 500 anos. A proposta que faço aqui é redefinir os departamentos/programas de estudos étnicos como "estudos descoloniais transmodernos".

    OS ESTUDOS ÉTNICOS NORTE-AMERICANOS Uma vez esclarecidos os conceitos antes mencionados, passemos agora à discussão pertinente a este trabalho. Os estudos étnicos norte-americanos debatem-se atualmente entre dois problemas da colonialidade do poder global: 1) as identity politics do multiculturalismo liberal norte-americano; e 2) a colonização disciplinar das ciências ocidentais sobre tais espaços.

    Comecemos pelo primeiro ponto. A organização de departamentos e programas de estudos étnicos à base de identidades etno/raciais (afro-americanos, asiático-americanos, latinos, indígenas etc) foi um dos legados mais perniciosos dos estudos étnicos norte-americanos a contribuir para reproduzir o pior das identity politics. Em vez de estudos descoloniais, as identity politics levam a reproduzir estudos coloniais que se manifestam em duas tendências principais: uma baseada no multiculturalismo light liberal britânico-americano e outra baseada na absolutização chauvinista e nacionalista de sua própria identidade etno-racial em detrimento do diálogo e das alianças com outros grupos. O multiculturalismo liberal hegemônico permite que cada grupo discriminado tenha seu espaço e celebre sua identidade/cultura sempre que não questionar as hierarquias etno-raciais do poder da supremacia branca e deixe o status quo intacto. Assim privilegiam-se algumas elites dos grupos discriminados/inferiorizados outorgando-lhes um espaço com recursos como tokens, model minority ou "vitrines simbólicas" que dêem uma maquiagem multicultural ao poder branco, enquanto a maioria dessas populações vítimas do racismo crescente vive a colonialidade do poder quotidianamente. Condoleeza Rice é um dos exemplos mais extremos dessa política. Essa mulher afro-norte-americana é umas das arquitetas da política exterior racista do império euro-norte-americano (elites brancas capitalistas) no Oriente Médio e no Iraque, dando uma aparência anti-racista e multicultural ao império.

    Por outro lado, os estudos étnicos que absolutizam e privilegiam as identity politics de seu próprio grupo etno/racial os levam a suspeitar e ver-se em competência com os outros grupos étnicos/raciais, incluídos aqueles que compartilham uma situação similar de discriminação etno/racial. Assim, os estudos étnicos organizados por meio de identidades étnicas acabam: 1) celebrando sua própria identidade, deixando intactas as hierarquias etno/raciais; ou 2) enfatizando em seu próprio grupo étnico-racial, com foco em seus próprios umbigos e, portanto, concebendo-se em competência constante com os outros grupos igualmente discriminados e contribuindo para reproduzir o "divide e vencerás" que igualmente mantém intacto o status quo das hierarquias etno/raciais. Ambas as posições das identity politics (a "multicultural identitária liberal" e a "identitária militante") terminam em cumplicidade com as hierarquias etno/raciais da supremacia branca ao deixarem de lado o status quo.

    A outra tendência da colonialidade do saber (8) é a colonização disciplinar acadêmica dos estudos étnicos. A colonização disciplinar ocorre quando se dividem os campos do conhecimento dentro dos estudos étnicos baseados em especialidades disciplinares das ciências humanas (ciências sociais e humanidades) e se fazem estudos étnicos "sobre" e não "dos" e "junto aos" grupos étnicos/ raciais. Em vez de produzir conhecimentos a partir do pensamento crítico que os sujeitos discriminados/inferiorizados produzem, as disciplinas impõem o padrão de pensamento e a epistemologia ocidental do "ponto zero" (9)– o ponto de vista que não se assume como ponto de vista próprio, da perspectiva que se assume como o "olho de Deus" da filosofia ocidental moderna desde Descartes até nossos dias nas ciências humanas ocidentais. Isso afetou a produção de conhecimentos nos departamentos/programas de estudos étnicos porque em vez de produzir conhecimentos "dos" e "com os" grupos etno-raciais dirigidos a sua liberação, privilegia-se a produção de conhecimentos "sobre" os "outros" seguindo a tradição epistemológica colonial que vai desde os missionários cristãos do século XVI até os cientistas sociais de nossos dias e que fazem do sujeito discriminado/inferiorizado um "objeto de estudo" para dominar e explorar. Isso engendra as seguintes perguntas: Conhecimento para que e para quem? É possível produzir conhecimentos neutros em uma sociedade dividida em termos raciais, sexuais, espirituais e de classe? Se a epistemologia não apenas tem cor mas também tem sexualidade, gênero, espiritualidade cosmológica, classe etc, não é possível assumir o mito ou a falsa premissa da neutralidade e objetividade epistemológica (o "ponto zero" da "ego-política do conhecimento") como pretendem as ciências ocidentais.

    Por outro lado, a corrente que pretende fazer dos estudos étnicos "estudos interdisciplinares" reproduz os mesmos problemas mencionados antes. A interdisciplinaridade mantém intactas as identidades disciplinares (com seu padrão e epistemologia eurocentrada) e somente se abre ao diálogo interdisciplinar no interior da epistemologia ocidental, fechando-se ao diálogo transmoderno entre diversas epistemologias. Se pensamos não a partir das disciplinas acadêmicas mas a partir da "transdisciplinaridade", no sentido de ultrapassar os saberes disciplinares, então o projeto dos estudos étnicos se abriria à diversidade epistemológica em lugar dos atuais monotopismo e monólogo da epistemologia eurocêntrica ocidental dominante que não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento crítico nem científico. A colonização disciplinar dos estudos étnicos constitui uma colonização epistêmica já que as disciplinas acadêmicas provilegiam o padrão epistêmico eurocentrado.

    Com isso não pretendo descartar trabalhos críticos importantes e úteis produzidos pelos campos disciplinares da academia ocidental. Estou simplesmente questionando a pertinência de fazer departamentos/programas de estudos étnicos se simplesmente restringirem-se a fazer sociologia de raça e etnicidade, antropologia das identidades etno/raciais, história "sobre" (não "dos" e "com os") negros, economia da inserção laboral dos indígenas etc. Colonizar os estudos étnicos pelas disciplinas ocidentais não constitui nada inovador no campo do conhecimento. Pode-se fazê-lo já a partir das respectivas disciplinas acadêmicas e não faltam programas nem departamentos de estudos étnicos para isso. Muito diferente seria se os programas ou departamentos de estudos étnicos se abrissem à transmodernidade, isto é, à diversidade epistêmica do mundo, e se redefinissem como "estudos descoloniais transmodernos", propondo pensar "a partir dos" e "com os" "outros" subalternizados e inferiorizados pela modernidade eurocentrada e oferecendo definir suas perguntas, seus problemas e seus dilemas intelectuais "dos" e "com os" próprios grupos discriminados. Isso introduziria uma metodologia descolonial muito diferente da metodologia das ciências sociais e das humanidades (10). Implicaria também um diálogo transmoderno entre diversos projetos ético-epistêmicos e uma organização temática no interior dos departamentos/programas de estudos étnicos baseados em problemas (racismo, sexismo, xenofobia, cristianocentrismo, epistemologias "outras", eurocentrismo etc) e não com base em identidades etno/raciais (negros, indígenas, asiáticos etc) nem em disciplinas coloniais ocidentais (sociologia, antropologia, história, ciências políticas, economia etc). Os estudos étnicos redefinidos como "estudos descoloniais transmodernos" dariam uma contribuição importantíssima não somente ao saber acadêmico senão à liberação como projeto de descolonização (epistêmica, social, política, econômica e espiritual) dos grupos oprimidos e explorados pelo racismo capitalista/patriarcal ocidental do sistema-mundo moderno/colonial (11).

     

    Ramón Grosfoguel é professor no Departamento de Estudos Étnicos da Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA).

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Grosfoguel, R. "La descolonización de la economía-política y los estudios poscoloniales: transmodernidad, pensamiento fronterizo y colonialidad global", in Tábula Rasa (Bogotá, Colombia), nº. 4 (enero-junio), pp. 17-48. 2006.

    2. Grosfoguel, R., Colonial subjects. Berkeley, California: University of California Press. 2003.

    3. Maldonado-Torres, N., "The topology of being and the geopolitics of knowledge: modernity, empire and coloniality," in City, Vol. 8, nº. 1, pp. 29-56. 2004.

    4. Mignolo, W., Local histories: global designs: coloniality, border thinkingn and subaltern knowledges. Princeton, New Jersey: Princeton University Press. 2000.

    5. Eze, E. C. "The color of reason: the idea of "race" in kant’s anthropology". In Postcolonial african philosophy: a critical reader, editado por E.C. Eze. Cambridge, MA: Blackwell. 1997.

    6. Habermas, J., "La modernidad, un proyecto incompleto". En Hal Foster (editor) La posmodernidad (Barcelona, España: Editorial Kairos). 1985.

    7. Dussel, E., 1492: El encubrimiento del otro. Hacia el origen del mito de la modernidad. La Paz, Bolivia: Plural Editores. 1994.

    8. Lander, E., La colonialidad del saber. Buenos Aires: Clacso. 2000.

    9. Castro-Gomez, S., La hybris del punto cero: ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (1750-1816). Bogotá, Colombia: Editorial Pontífica Universidad Javeriana. 2006.

    10. Smith, Linda T., Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. London: Routledge. 1999.

    11. Maldonado-Torres, N., "Pensamento crítico desde a subalteridade: os estudos étnicos como ciências descoloniais ou para a transformação das humanidades e das ciências sociais no século XXI", in Revista Afro-Asia, nº. 34, pp. 105-130. 2006.