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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.59 no.3 São Paulo July/Sept. 2007
O plágio na comunidade científica:questões culturais e linguístcas
Sonia M. R. Vasconcelos
Na visão da maioria dos países de língua inglesa, o plágio é definido como a "apropriação ou imitação da linguagem, idéias ou pensamentos de outro autor e a representação das mesmas como se fossem daquele que as utiliza", conforme o Random House Unabridged Dictionary. Essa definição é compartilhada por inúmeros dicionários da língua inglesa, assim como por universidades britânicas e americanas. De acordo com a University of Hertfordshire Hatfield no Reino Unido, o plágio se caracteriza pela apropriação de idéias ou palavras de outrem sem o devido crédito, mesmo que acidental. Segundo a universidade, "o plágio é considerado uma prática muito séria na educação superior no Reino Unido. Mesmo que uma pequena seção de seu trabalho contenha plágio, é possível que a nota zero seja atribuída a ele... Em casos mais extremos, você pode ser expulso da universidade".
Nos Estados Unidos, a prática do plágio também é vista com bastante seriedade e está sujeita a punições acadêmicas. De acordo com John Edlund, da Califórnia State University, "o plágio é uma violação direta da honestidade acadêmica e intelectual. Muito embora ele possa existir sob várias formas, todos os tipos de plágio se resumem na mesma prática: representar as idéias ou palavras de outrem como se fossem suas... mesmo a utilização das idéias do outro nas suas próprias palavras sem citação também pode ser qualificado como tal".
Como a prática do plágio aponta para desonestidade acadêmica, ele também é investigado pelas agências de fomento à pesquisa em tais países. Em 2006, o Swedish Research Council recebeu uma denúncia de fraude relacionada ao plágio de um projeto de pesquisa. Um pesquisador de biologia submeteu uma versão plagiada de um projeto já entregue por sua orientadora ao National Institutes of Health (NIH), nos EUA. O financiamento para o biólogo foi automaticamente cancelado após a denúncia de fraude.
TOLERÂNCIA ZERO De certa forma, o mesmo rigor tem sido aplicado a denúncias de plágio em publicações acadêmicas. Atualmente, há uma política de "tolerância zero" ao plágio, que vem se estabelecendo através de periódicos internacionais. Recentemente, a Elsevier estabeleceu orientações bastante detalhadas sobre questões éticas relacionadas ao artigo científico. Na definição sobre o plágio, até mesmo algumas nuances foram abordadas: "a cópia pode ocorrer mesmo sem a reprodução exata das palavras do texto original. Este tipo de cópia é conhecido como paráfrase e pode ser o tipo de plágio mais difícil de ser detectado." Para autores acusados de plagiar idéias ou trechos de publicações anteriores, a punição é, muitas vezes, o bloqueio de nova submissão de manuscritos pelos envolvidos nesse tipo de "fraude". Em 2004, O The Scientist divulgou uma dessas. O pesquisador egípcio, Mostafa Imam, publicou, em cerca de 20 anos, vários papers sobre fósseis de algas, auto-plagiando várias imagens. Figuras de algas vermelhas, por exemplo, típicas de um determinado período geológico, apareciam como típicas do Egito, enquanto eram da Espanha. Ele não só teve sua reputação destruída na academia, como também comprometeu, através de seus plágios, o estado da arte na área de micropaleontologia. Imam ficou impedido de re-submeter trabalhos para o periódico.
No entanto, o conceito de plágio ainda é bastante difuso para pesquisadores de vários países. Na verdade, não só o conceito como também as relações que se estabelecem com tal prática decorrem de um viés cultural importante. A abordagem do plágio é permeada pelo conceito de autoria e propriedade intelectual. Sendo assim, não se pode negar que culturas que legitimam a condenação da cópia de textos e idéias de outrem sem a devida citação, legitimam a propriedade intelectual do autor, ou seja, a originalidade. De acordo com Edlund, "...em países de língua inglesa, as pessoas acreditam que idéias e expressões escritas podem ser possuídas. Quando um autor escreve uma determinada seqüência de palavras ou frases expressando uma determinada idéia, esse autor, de fato, é dono de tais construções e idéias. Portanto, a utilização de tais palavras sem a devida atribuição ao autor se configura roubo. Essa questão é bem diferente, por exemplo, da idéia chinesa de que palavras e idéias pertencem à cultura e à sociedade e devem ser compartilhadas entre os indivíduos..." O pesquisador Marcel Laffollette, no artigo "The evolution of the scientific misconduct issue: a historical overview" (2000), reporta que para um cientista americano, "o roubo de suas palavras é roubo de autoria. O roubo de sua idéia é roubo de sua própria identidade como cientista". A importância dada ao plágio nas universidades e órgãos de financiamento americanos acaba se introduzindo em outras culturas que não compartilham dessa mesma visão de propriedade. Para culturas confucianas como, por exemplo, Singapura, China e Coréia a autoria e a originalidade não são valorizadas como no Ocidente. A noção de propriedade intelectual, tradicionalmente, é bem mais coletiva do que individual. Portanto, num contexto acadêmico extremamente multicultural, não são poucos os conflitos e dilemas que decorrem dessa visão diversa de autoria e produção textual. Há uma preocupação considerável por parte de autores dessas culturas confucianas em desenvolver mecanismos educacionais para diminuir as diferenças, por exemplo, na visão do texto do artigo científico.
Em 1996, a Science divulgou que três casos de plágio envolvendo cientistas chineses levaram a uma discussão nacional sobre esse tipo de má conduta. A Academia Chinesa de Ciências, engajada na discussão, introduziu o On being a scientist, lançado em 1989 pela Academia Nacional de Ciências dos EUA, entre os pesquisadores chineses. O objetivo seria reduzir a incidência de fraudes, incluindo o plágio, entre os pesquisadores. Hoje, medidas educacionais contra o plágio e outras formas de má conduta se tornaram uma das prioridades no ambiente acadêmico daquele país.
Num editorial sobre o plágio (1996), Carlos Coimbra, editor de Cadernos de Saúde Pública, declara que "no Brasil pouco se fala sobre plágio em ciência. Isto certamente decorre menos da ausência do problema no país do que da falta de iniciativas para aprofundar essa discussão." É necessário considerarmos o cenário atual da pesquisa científica. Hoje, diferente do que acontecia até pelo menos a década de 1980, ciência em inglês é um imperativo. Se considerarmos que mais de 95% dos artigos na base de dados do Science Citation Index está em língua inglesa, qual a razão para que resultados originais de pesquisa não tenham pelo menos uma versão no idioma? Porém, quantos cientistas não-nativos, incluindo os brasileiros, são proficientes em inglês? Mais do que isso: quantos desses cientistas conseguem produzir sua própria voz em todas as seções do artigo científico? Para o Brasil, um país cuja língua materna é o português e onde o inglês não é falado nem mesmo como terceira língua, poderíamos dizer que bem poucos.
PERIÓDICOS ESTRANGEIROS No entanto, a produção do país em periódicos internacionais é crescente e hoje contamos com cerca de 1.6% das publicações em periódicos indexados no Thomson Scientific. Não se sabe se há trechos plagiados nessas publicações nem mesmo o quanto de auto-plágio existe nessa fração, já que isso não foi investigado. Porém, se considerarmos a realidade linguística da pesquisa brasileira e a de uma educação voltada para a produção do texto não como instrumento formador de senso-crítico e opinião, nos vemos numa situação favorável ao plágio. De acordo com Obdália Silva, em seu Entre o plágio e a autoria? qual o papel da universidade? (2006) [no Brasil]... "historicamente, desde o ensino fundamental à universidade, tem-se convivido com a prática de cópias de produções textuais de outrem, seja de forma parcial ou total, omitindo-se a fonte...". De volta à pergunta (1), será que por compartilharmos uma visão mais ocidental da autoria e propriedade intelectual, cometemos menos plágio do que, por exemplo, os chineses? Não necessariamente; a questão é que a produção científica chinesa é bem maior que a brasileira e talvez a exposição seja maior. Quanto à pergunta (2), será que os poucos casos de plágio (publicizados) envolvendo cientistas brasileiros indicam que a prática aqui é rara? Não necessariamente, pois se a tolerância à prática do plágio de textos em inglês, por exemplo, for a mesma para quem comete e quem detecta, não haveria interesse em investigar a questão. Seria quase como se pensar em abrir uma caixa de Pandora.
O fato é que a discussão da dimensão da prática do plágio na academia é de extrema importância para a atividade científica. Diante da relevância do tema e do foco internacional que ele vem recebendo é, no mínimo, ingênuo ou imaturo não se pensar de forma bem pragmática em abordar o plágio nas universidades e outras instituições de pesquisa. Isto poderia ser discutido nos programas de pós-graduação.
Vale lembrar, porém, que a definição de plágio aceita pelas agências de fomento americanas e européias é bastante rigorosa e demanda originalidade na produção textual. É difícil pensar que apenas informação resolva o problema de autores que, por não dominarem a língua inglesa, se vêem "tentados" a um empréstimo lingüístico subversivo de pequenos trechos de artigos em inglês. Segundo a definição internacional do plágio, mudar algumas palavras de uma frase de outrem e incorporá-las no texto em construção configura plágio. Sendo assim, também é extremamente importante que, paralelamente à orientação sobre tal prática, também estejam políticas educacionais que fomentem o ensino de redação científica em inglês nos programas de pós-graduação em ciências. Se as ações não forem conjuntas, pouco se avançará sobre essa questão e perderemos a oportunidade de, inclusive, questionarmos, se for o caso, o quanto dessas definições internacionais dialogam com a realidade cultural e linguística em que se dá a pesquisa científica brasileira.
Sonia M.R.Vasconcelos é mestre em literatura de língua inglesa e doutoranda do Programa de Educação, Gestão e Difusão em Biociências, da Universidade Federa do Rio de Janeiro (UFRJ).