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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.60 no.2 São Paulo 2008
CIÊNCIA EM ANIMAIS DE LABORATÓRIO
Marcel Frajblat
Vera L. Lângaro Amaral
Ekaterina A.B. Rivera
Há séculos o homem utiliza animais em experimentos na busca do conhecimento científico e benefício para a saúde de ambos. Porém, durante muito tempo os animais utilizados foram relegados a um segundo plano dentro do contexto científico. Apenas recentemente, percebeu-se a importância do modelo animal e seu bem-estar para os resultados de um experimento. Desta forma surgiu a ciência em animais de laboratório, onde o tema principal de estudo é o próprio animal que será utilizado na pesquisa e como este deve ser criado e manipulado. A ciência em animais de laboratório engloba uma série de áreas que servem de base para todas as outras ciências que utilizam animais em seus trabalhos. Estas áreas incluem: sanidade, genética, manejo, bem-estar, e educação. O objetivo deste texto e abordar todas as áreas com ênfase no bem-estar.
Em uma excelente revisão, Baker mostrou como os patógenos comumente presentes em animais de laboratório podem afetar os resultados de uma pesquisa (1). Esta situação foi exemplificada da seguinte forma: no início do século passado o pesquisador diria que não pode realizar seu experimento, pois todos os animais estão mortos. No meio do século passado o pesquisador diria que não pode realizar seu experimento, pois os animais estão doentes. Hoje o pesquisador pode dizer que não é possível realizar o experimento porque seus animais são soropositivos. A produção de animais livres de patógenos específicos é uma das metas da ciência em animais de laboratório
A genética tem papel fundamental no futuro do uso de animais de laboratório, pois está diretamente ligada a uma produção cada vez maior de animais geneticamente modificados. Atualmente existem cerca de 10 mil linhagens de camundongos utilizadas como modelo para estudo das mais diversas doenças humanas (2). A importância desta produção foi reconhecida em 2007, pela concessão do Prêmio Nobel de medicina para os autores que desenvolveram a técnica de alteração do genoma murino.
Novas tecnologias em instalações e alojamentos, como barreiras sanitárias, estantes ventiladas e caixas com ventilação individual, são modificações que foram desenvolvidas com o objetivo de melhorar o manejo e criação dos animais. É importante salientar que o bem-estar animal foi considerado para o desenvolvimento dessas inovações.
BEM-ESTAR ANIMAL A evolução da ciência e os constantes questionamentos sobre o uso de animais em experimentação científica alteraram as relações entre o ser humano e os animais, transformando o bem-estar animal em uma importante área de estudo. A ciência de animais de laboratório considera o bem-estar animal como um dos principais fatores que podem influenciar o resultado de um experimento e valoriza o uso ético dos animais retomando o principio dos três R's desenvolvido por Russell e Burch: refinamento, redução e substituição (3).
O termo bem-estar pode ter diversas interpretações em relação à sua definição de acordo com situações e características individuais das espécies. O bem-estar de um indivíduo é o seu estado em relação às suas tentativas de adaptar-se ao seu ambiente (4), porém é importante salientar que este conceito está relacionado a um dado momento ou fase da vida pelo qual aquele ser está passando. O bem-estar deve ser definido de forma que permita relação com outros conceitos, tais como: necessidades, liberdade, adaptação, felicidade, capacidade de previsão, sofrimento, dor, ansiedade, medo, tédio, estresse e saúde (5).
Para mensurar o bem-estar animal é fundamental entender o universo artificial onde este está contido e compreender aspectos da anatomia, fisiologia, etologia e manejo das espécies em questão. A partir desse conhecimento é gerada uma série de obrigações éticas que certamente favorecerão o bem-estar dos animais de laboratório.
FATORES QUE AFETAM O BEM-ESTAR DOS ANIMAIS Uma série de fatores, físicos, químicos ou microbiológicos (figura 1) pode iniciar um desequilíbrio fisiológico nos animais e conseqüentemente aumentar ou diminuir o bem-estar, principalmente pela situação de confinamento e impossibilidade de resolver situações indesejáveis. Um ambiente adequado para manutenção de animais de laboratório é necessário, pois essas espécies são sistemas biológicos sensíveis a fatores internos e externos.
A área destinada ao alojamento é um exemplo, pois deve levar em conta as necessidades básicas do animal. Um dos requisitos principais é o espaço suficiente para a realização de movimentos corporais normais e livre acesso à água e alimento. O estresse causado por excesso de animais confinados ou o isolamento pode causar alterações fisiológicas e comportamentais que certamente influenciarão na resposta ao experimento. Ambientes mais estáveis, livres de odores indesejáveis, limpos, com luminosidade e temperatura ideais e isentos de microorganismos patogênicos, são cientificamente mais aceitos e favorecem o bem-estar animal (6).
O manejo diário, mais que os procedimentos experimentais, pode interferir de forma acentuada no favorecimento ou diminuição do bem-estar dos animais. Portanto, é fundamental que as pessoas que estão diariamente envolvidos nas atividades diárias do manejo dos animais tenham conhecimento e treinamento para suas atividades.
Apesar de décadas de pesquisa nesta área, o conceito de estresse animal ainda continua indefinido. Moberg, observou que a capacidade de definir e medir o estresse imposto aos animais proporcionou uma ferramenta para entender e prevenir as causas que alteram o bem-estar geral (7). O fenômeno é usualmente vinculado a uma profunda alteração fisiológica associada a um processo de doença ou alteração ambiental. Para alguns pesquisadores o estresse é uma situação extrema e indesejável enquanto outros consideram um parâmetro normal, transitório e desejável, já que representa uma reação de adaptação do organismo frente a uma nova situação. Este estresse agudo pode ser considerado bom e necessário para a evolução e aprendizado, sem provocar danos maiores e desencadear um estresse crônico. Assim, é importante salientar que isso dependerá do grau de estresse sofrido para então relacionar com diminuição do bem-estar.
Poole considera um animal de laboratório feliz, aquele que consegue superar o agente estressor, embora, seja aceito que nenhum animal possa viver inteiramente livre de estresse (6). O animal infeliz é aquele que não consegue lidar com situações angustiantes que fogem ao seu controle, resultando em alterações fisiológicas e comportamentais. Animais estressados poderão ter seu sistema imunológico comprometido e serão impróprios para utilização em pesquisas. Esses fatos tornam obrigatório para os pesquisadores, fazer o possível para que os animais possuam condições que favoreçam seu bem-estar.
Um dos principais estressores para os animais é a dor. Poucos pesquisadores ignoram intencionalmente a dor do animal; na verdade não há um reconhecimento do comportamento que sinaliza a dor. É importante saber reconhecer quando os animais estão sofrendo como conseqüência de um procedimento e também qual o grau desse sofrimento (8).
Parece intuitivo e fácil o reconhecimento da dor. Infelizmente, isso não é fácil e nem sempre intuitivo. A dor é uma experiência individual, e o quanto essa experiência se traduz em um comportamento observável e mensurável depende de vários fatores como a espécie, a genética, o sexo, o peso corpóreo, o condicionamento prévio, a dominância social do animal, a saúde em geral e as condições do meio ambiente no momento da observação (9).
As preocupações não se limitam à simples noção de dor, ou seja, não é somente a presença ou ausência de dor que indicará o bem-estar dos animais. Independentemente da dor, o grau de bem-estar está ligado à situação em que se encontra o animal e poderá ser reduzido ou elevado.
COMO CONTRIBUIR COM O BEM-ESTAR? Qualquer alteração nos procedimentos ou protocolos experimentais para minimizar a dor e o estresse deve ser considerada para aumentar o bem-estar animal. O simples uso de analgésicos, por exemplo, deve ser levado em consideração sempre, quando os procedimentos provocarem dor injustificada. A utilização de agulhas hipodérmicas de calibre apropriado ao tamanho do animal e a realização de contenção física adequada reduzem, acentuadamente, o desconforto físico causado pelo procedimento. Basicamente, o aprimoramento das técnicas utilizadas em animais de laboratório reduzirá o estresse associado a ela.
Em estudos no qual o animal necessariamente é exposto a algum fator estressante ou doloroso é muito importante estabelecer o momento de encerrar o experimento e da eutanásia do animal. Somente em situações muito especiais pode se aguardar a deterioração do estado do animal até sua morte.
Outra forma de contribuição para aumento do bem-estar é a utilização de enriquecimento ambiental, pois os animais vivem em ambientes nus e monótonos. Este enriquecimento consiste na exposição de animais a ambientes ricos em estimulação sensorial, gerada por objetos inanimados, como rodas de atividades, canos e brinquedos, e/ou caixas com infra-estruturas mais complexas, contendo tocas, galerias de túneis e/ou plataformas com diferentes níveis de acesso (11, 12, 13).
O objetivo principal do enriquecimento é dar ao animal em cativeiro condições que estimulem seu comportamento natural. Por exemplo, ratos e camundongos têm hábitos noturnos, porém no laboratório eles passam o dia expostos à luz sem condições de proteger-se. Qualquer modificação que altere de forma benéfica o ambiente ou a rotina do animal pode ser considerada um enriquecimento ambiental. Materiais simples como canos de PVC, caixas de papelão, fundo de garrafas de plástico, bolas de papel, caixa de ovos, podem e devem ser utilizados como enriquecimento ambiental. Deve-se levar em consideração que o enriquecimento ambiental não pode interferir com o experimento sendo que alguns podem introduzir patologias indesejáveis ou problemas no manejo.
Em relação aos animais de laboratório, uma série de parâmetros podem ser alterados com o enriquecimento ambiental (14), por exemplo: a) diminuição do nível de excitabilidade dos animais diante dos procedimentos de manipulação no laboratório; b) melhora nas condições gerais de saúde; c) diminuição dos níveis de agressão intra-específica; d) diminuição dos níveis circulantes de hormônios supra-renais associados ao estresse; d) diminuição da freqüência de comportamentos estereotipados; e) menor incidência de perda de filhotes por infanticídio, canibalismo e negligência; f) maior taxa de sucesso de acasalamento; e g) melhora no comportamento social com o grupo.
Valores éticos estão envolvidos em todo o processo experimental, desde a justificativa para a realização do experimento, a escolha do modelo adequado para a pesquisa, o número de animais e como estes serão alojados, a utilização de anestésicos e analgésicos quando necessários, entre outros. Todos estes pontos exigem considerações e postura ética do pesquisador. Estas questões são atualmente avaliadas pelas comissões de ética no uso de animais onde o caráter ético do experimento proposto e da utilização de animais é questionado. Apesar de sua grande contribuição no refinamento dos experimentos realizados com animais estas comissões não têm como fiscalizar se o que foi descrito no projeto está realmente sendo realizado na prática. Enquanto não tivermos um sistema de fiscalização, o bem-estar dos animais dependerá unicamente da conduta ética dos pesquisadores.
O primeiro passo para alcançar um grau elevado de bem-estar para os animais é através da educação e treinamento das pessoas que trabalharão com eles. O conhecimento da biologia, fisiologia, comportamento e necessidades das espécies fazem com que saibamos como tratá-los de forma correta e que tenhamos atitudes de respeito para com os animais, diminuindo o estresse causado por um manejo inadequado e proporcionando-lhes maior bem-estar (15). A conscientização da necessidade de tratar os animais com dignidade e respeito deve ser realizada através de palestras e cursos que discutam temas como, ética, bem-estar, métodos alternativos, aprimoramento de técnicas.
O desenvolvimento da ciência a favor do homem não pode nem deve servir de alicerce para o uso indiscriminado e o desrespeito com os animais. É necessária uma postura ética frente à necessidade do desenvolvimento da ciência e a adoção de medidas que diminuam o sofrimento dos animais e favoreçam seu bem-estar. É importante lembrar sempre que a credibilidade do resultado da pesquisa depende do bem-estar vivenciado pelo animal durante sua realização, da sensibilidade do pesquisador para o entendimento de seus sofrimentos e necessidades e do bom senso nas tomadas de decisão e atitudes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Baker, D.G. "Natural pathogens of laboratory mice, rats, and rabbits and their effects on research". Clin Microbiol Rev. Apr;11(2):231-66. 1998.
2. Davisson, M.T. and Taft, R.A. "Strategies for managing an ever increasing mutant mouse repository". Brain Res. May 26;1091(1):255-7. 2006.
3. Russell, W.M.S. and Burch, R.L. The principles of humane experimental technique. Methuen, London, 1959.
4. Broom, D.M. "Indicators of poor welfare". British Veterinary Journal, London, v.142, p.524-526, 1986.
5. Broom, D. M. e Molento, C.F.M. "Bem-estar animal: conceitos e questões relacionadas Revisão". Archives of Veterinary Science, v. 9, n. 2, p. 1-11, 2004.
6. Poole, T. "Happy animals make good science". Laboratory Animals, v.31, 116-124, 1997.
7. Moberg, G.P. "A model for assessing the impact of behavior stress on domestic animals". J. Anim.Sci.,v.65,p.1228-1235, 1987.
8. Mezadri, T.J.; Tomáz, V.A.; Amaral,V.L.L. Animais de laboratório: cuidados na iniciação experimental. Florianópolis: Ed.UFSC,2004.
9. Hardie, E.M. "Reconhecimento do comportamento doloroso em animais". In: Hellebrekers J.L. Dor em Animais.1ª Ed., Barueri, SP:Manoele, 2002.
10. Hessler, J.R. and Leary, L.L. "Design and management of animal facilities". In: Fox, J.G.; Anderson, L.C.; Loew, F.M.; Quimby, F.W. Laboratory Animal Medicine. 2°Edition. Academic Press. 2002.
11. Chamove, A. S. "Cage design reduces emotionality in mice". Laboratory Animals, v. 23, p. 215-219, 1989.
12. Zimmermann, A.; Stauffacher, M.; Langhans, W.; Würbel, H. "Enrichment-dependent differences in novelty exploration in rats can be explained by habituation". Behavioural Brain Research, v. 121, p. 11-20, 2001.
13. Mellen, J. and Macphee, M.S. "Philosophy of environmental enrichment: past, present, and future". Zoo Biology, v. 20, p. 211-226, 2001.
14. Reinhardt, V. and Reinhardt, A. Variables, refinement and environmental enrichment for rodents and rabbits kept in research institutions making life easier for animals in laboratories. Animal Welfare Institute: Washington, DC. 2006.
15. Rivera, E.A.B. "Ética na experimentação animal e alternativas ao uso de animais". In: Rivera, E. A.B.; Amaral, M.H.; Pinheiro, V.(Org.). Ética e Bioética Aplicadas à Medicina Veterinária.1 Ed. Goiânia: Ed/orgs.v.1, p.159-186, 2006.