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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo 2010
Nutrigenônica: revolução genômica na nutrição
Aline de Conti, Fernando Salvador Moreno
Thomas Prates Ong
Alimentar-se adequadamente é uma das principais formas de se ter boa qualidade de vida. Em uma sociedade cada vez mais preocupada com a saúde, a nutrição tem sido assun-to recorrente na mídia. Dietas para emagrecer ou prevenir doenças, como as do coração, diabetes e câncer, são temas frequentes. Isso reflete o interesse das pessoas em saber que alimentos consumir e quais evitar.
À semelhança do que se observou em áreas como medicina e farmácia, também se verificou o impacto da conclusão do Projeto Genoma Humano na nutrição. A partir do sequenciamento do DNA humano, descobriu-se que nosso genoma contém aproximadamente 25 mil genes. Atualmente, o foco é entender o que fazem esses genes e como são afetados por fatores ambientais, como tabagismo, poluição, atividade física, estresse, medicamentos e a própria dieta. Pelo fato de estarmos expostos à alimentação ao longo de toda nossa vida, desde a fase intra-uterina, há particular interesse em como se dá a interação entre nutrientes e compostos bioativos de alimentos (CBA) com o genoma e qual o impacto na saúde.
A nutrigenômica introduziu uma perspectiva inovadora na maneira de se propor recomendações nutricionais, que passam a ser individualizadas, de acordo com as necessidades específicas de cada pessoa, influenciadas pelas características genéticas. A partir de dados do sequenciamento do DNA humano, constatou-se que, apesar das profundas diferenças existentes entre os indivíduos quanto a seus fenótipos, como cor da pele, tipo de cabelo, peso e altura, seus genomas apresentam similaridade de cerca de 99,9%. A pequena variação interindividual de 0,1% se dá, principalmente, por meio de alterações discretas na sequência do DNA conhecidas como polimorfismos de nucleotídeo único (SNP, pronunciam-se "snips"), que existem aos milhões no genoma humano. Muitas vezes, os SNPs podem levar a mudanças na estrutura, função, quantidade ou localização das proteí-nas codificadas, alterando inúmeros processos fisiológicos. Além de interferirem em características físicas, os SNPs também podem influenciar o risco para doenças crônicas não-transmissíveis (DCNT), necessidades de nutrientes e resposta aos alimentos.
Um importante objetivo da nutrigenômica é, assim, o de estabelecer nutrição personalizada com base no genótipo para promover a saúde e reduzir o risco de DCNT. O uso de dietas restritas em fenilalanina por indivíduos fenilcetonúricos ilustra o princípio básico de aplicação do conceito nutrigenômico de individualização alimentar. Indivíduos com essa doença monogênica apresentam mutação (tipo de variação genética rara) que compromete o funcionamento de um gene responsável pela metabolização da fenilalanina. O consequente aumento das concentrações sanguíneas desse aminoácido frente a uma alimentação normal tem repercussões graves, que incluem deficiência mental. O teste do pezinho, obrigatório no Brasil, possibilita identificar os recém-nascidos que apresentam essa mutação e, assim, indicar a dieta específica necessária.
A aplicação da abordagem nutrigenômica no contexto das DCNT é, entretanto, mais complexa visto que sua origem é poligênica. Do ponto de vista genético, para se estimar o risco para essas diferentes doenças será necessário conhecer o impacto da combinação de milhões de polimorfismos distribuídos no genoma. Além disso, também deverão ser previstas interações dessas variações genéticas com fatores ambientais, sobretudo a alimentação.
A capacidade de nutrientes e CBA modular a expressão gênica deverá ser considerada na escolha de alimentos específicos com a finalidade de se evitar a ocorrência de DCNT. Diferentemente de fármacos, que foram desenhados para atuar em vias específicas, os componentes dos alimentos apresentam múltiplos alvos moleculares. Apesar de sua menor potência quando comparados a moléculas sintéticas, nutrientes e CBA podem atuar de forma sinérgica por se encontrarem em diferentes combinações nos alimentos.
O sulforafano, presente no brócolis, foi capaz de induzir a expressão de genes importantes para o mecanismo de defesa celular contra compostos químicos estranhos ao organismo, sendo considerado um CBA com potencial efeito anti-carcinogênico.
Pesquisadores que atuam na área de nutrigenômica estimam que nas próximas décadas poderemos encontrar o seguinte cenário: uma mulher de 20 anos preocupada com sua saúde procura orientação com equipe multidisciplinar, que, por sua vez, solicita o sequenciamento de seu genoma. Os dados são analisados com auxílio de um software específico e apontam alta probabilidade da paciente desenvolver diabetes por volta de seus 45 anos. Orientações são fornecidas quanto a mudanças de hábitos de vida, inclusive os alimentares. Uma dieta personalizada com base no DNA é prescrita para se reduzir o risco de desenvolvimento da doença. Essa mulher adquire no setor de alimentos personalizados do supermercado produtos específicos para seu genótipo. A efetividade da adoção dessas medidas é avaliada periodicamente por meio da análise de seu perfil global de expressão gênica e de metabólitos...
Apesar de parecer uma realidade distante, atualmente já existem empresas que realizam testes genéticos e os vendem diretamente ao consumidor via internet. Esses testes informam sobre o risco de desenvolver determinadas doenças, como por exemplo, doenças do coração, câncer, diabetes, Alzheimer, osteoporose, entre outras. Hoje em dia já é possível mapear 42 genes por US$400 e com os avanços crescentes da tecnologia envolvida com esse diagnóstico estima-se que esse preço irá diminuir tornando-se cada vez mais acessível à população. Da mesma maneira, a nutrigômica já está sendo comercializada por algumas companhias que vendem esses testes genéticos e ainda realizam aconselhamento nutricional e comercializam produtos como, por exemplo, suplementos vitamínicos.
Atualmente, diversas pesquisas em nutrigenômica estão sendo realizadas em diferentes países, envolvendo redes de pesquisadores. Um exemplo importante é a Organização de Nutrigenômica da União Europeia (Nugo), que engloba 22 organizações de 10 países europeus. Em 2007, foi criada a Rede Brasileira de Nutrigenômica que se propõe a estimular o desenvolvimento dessa disciplina científica em nosso país. O foco primário da rede consiste na promoção e coordenação de projetos integrados, realizados em nossa população, considerada como a mais miscigenada do mundo. Assim, os coordenadores da rede acreditam que além de incentivar a pesquisa com alimentos direcionados à variabilidade genética da população brasileira faz-se necessário a criação um banco de dados sobre estudos em nutrigenômica, originados de pesquisas realizadas com brasileiros. Pesquisadores interessados em atuar nessa área podem se cadastrar no site da rede (www.nutrigenomicabrasil.org).
Como informações contidas no genoma serão fundamentais para se estimar risco de DCNT e estabelecer dietas personalizadas, surgem, do ponto de vista genômico, implicações sociais e éticas. Como garantir a confidencialidade da informação genética? Como proteger o cidadão de eventuais ações discriminatórias? Indivíduos que apresentem maior risco para desenvolver determinado tipo de doença poderiam ser preteridos em processos de contratação ou aquisição de seguros? Aspectos relacionados ao custo e acessibilidade a futuros serviços nutrigenômicos também devem ser levados em consideração. Serão limitados apenas ao setor privado ou o sistema público de saúde terá condições de oferecê-los para a população em geral? Além disso, paralelamente ao desenvolvimento de investigações científicas em nutrigenômica, devem-se formar profissionais qualificados, aptos a atuar na interface entre nutrição e genômica no contexto de pesquisa, ensino e clínica.
Aline de Conti é farmacêutica industrial e pós-doutoranda no Laboratório de Dieta, Nutrição e Câncer da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo (USP). Email: deconti@usp.br
Fernando Salvador Moreno é médico, doutor em clínica medicina e professor titular do Laboratório de Dieta, Nutrição e Câncer, da FCF/USP. Email: rmoreno@usp.br
Thomas Prates Ong é farmacêutico-bioquímico, professor doutor do Laboratório de Dieta, Nutrição e Câncer, da FCF/USP, e integra a comissão organizadora da Rede Brasileira de Nutrigenômica. Email: tong@usp.br