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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo  2010

     

     

    MODA SOB A ÓTICA DA DISCIPLINA E DO CONTROLE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

     

    Rosane Preciosa
    Suzana Avelar

     

     

    Em 1990, Gilles Deleuze escreveu um texto intitulado Post-Scriptum sobre as sociedades de controle, fundamental, a nosso ver, para se entender como se opera a passagem de uma sociedade moderna, predominantemente gerida pelas formas disciplinares, e cuja palavra-chave é modelização, para uma outra, a que denominou de controle. Esta, por sua vez, ao invés de simplesmente proceder a modelizações, modula, ou seja, dissemina modelos, e os faz variar, espalhando-os por toda parte.

    Imprescindível dizer que, sob essa outra lógica, a de controle, esses modelos não serão mais vivenciados por aqueles que os incorporam como uma imposição, mas, ao contrário, como uma sugestão. Exerce-se aí um tipo de poder bem mais sutil e, talvez, por isso mesmo, bem mais eficaz, convincente, merecendo, então, de nossa parte uma enorme atenção.

    Ao longo de seu texto, Deleuze vai diagnosticando essa passagem e nos introduzindo nesse outro modo de funcionamento, que caracterizaria a sociedade contemporânea. Com ele, podemos pensar o que fomos, o que somos e no que estamos nos tornando. A partir daí, então, ocorreu-nos a ideia de nos apropriarmos dessa valiosa ferramenta teórica, deslocá-la para a indústria da moda, buscando compreender suas engrenagens. Mas, para tanto, é necessário que sua formação inicial seja revisitada.

    Voltemos assim à consolidação de tal indústria, em sua autonomizacão, que data de meados do século XIX, num cenário burguês-industrial, quando a perda da importância da história pregressa começa a ser fato consumado, inaugurada por aquilo que conhecemos como a ideologia moderna. Nessa nova dinâmica, como apontam Gilda de Melo e Souza (1987), Thorstein Veblen (1969) e Eric J. Hobsbawm (1977), a roupa passa a exercer um poder jamais ocorrido, ganha um novo estatuto: "a roupa faz o homem" (1).

    Em sua relevância moderna, tão bem descrita por Charles Baudelaire, a roupa, ou o corpo vestido, é de suma importância nas relações político-sociais, pois apresenta o homem em sua leitura mais imediata e circunstancial. A alta costura, a nova ordem da indústria burocrática (2) liberal e legitimada por essa sociedade burguesa-industrial, passa a funcionar como uma gerenciadora das relações humanas, atuando de forma tão importante quanto o que representava, outrora, a hereditariedade: a moda, essa indústria que se coloca nos meandros sociais, passa então a sancionar normas e estabelecer padrões, encarrega-se da apresentação individual, numa verdadeira demonstração de exercício de um biopoder (ainda que simplificando o conceito, entendemos por biopoder o controle que se exerce sobre "a vida", sobre as populações, sobre as subjetividades). A "instituição moda" passa a funcionar como elemento regulador de condutas e hierarquias dentro desse ambiente.

    Até aproximadamente a década de 1960, a alta costura propõe formas de modelar o corpo comprovando sua intervenção nas dinâmicas sociais e no sucesso burguês. A partir daí, essa se vê abalada por aquilo que chamamos da consolidação do prêt-à-porter. Mas, na verdade, qual o significado dessa nova bipolaridade?

    A falência da alta costura se dá em nome do sucesso do prêt-à-porter. Isso é fato. Para Baudot (3), a alta costura e a confecção deixam de formar um elo contínuo, e se vêem distanciadas. Assim, o monopólio da moda de cem anos (termo utilizado por Gilles Lipovetsky em seu livro O império do efêmero para designar a centralização da alta costura durante um século que se inicia aproximadamente em 1860, com Charles F. Worth, e termina com a consolidação do prêt-à-porter em 1960) se enfraquece a partir dos novos criadores e de uma sociedade que não depende totalmente (ou apenas) de uma referência hierarquizante. Os jovens então passam a inovar o sistema da moda, sendo vistos simultaneamente como consumidores e criadores.

    "Para satisfazer à demanda de novidades, ela [a confecção] deve dotar-se de células criativas que vão assegurar a notoriedade daqueles que serão chamados daqui por diante de estilistas." (4)

    Os primeiros escritórios de estilo passam a ser criados, tendo como principais nomes Françoise Vincent-Ricard e Madame Arnodin, que abre o seu escritório de estilo em 1961 contribuindo assim para a organização de um sistema que vai da fabricação à distribuição, consolidando uma "cadeia de produção coerente"(5) . As butiques se difundem tendo como marco a de Elie Jacobson, no início da década de 1960, mais conhecida como Dorothée Bis.

    Nesse sentido, Lipovetsky (2) afirma que "a configuração hierarquizada e unitária precedente rompeu-se". Vemos então a gradativa transição da sociedade disciplinar para o que Deleuze identificou como sociedade de controle, cujo contorno fica mais nítido a partir de meados da década de 1980, se pensarmos sobretudo na manifestação das "tribos urbanas", que irrompem nessa ocasião, e em que prevalece uma proposição múltipla de "estilos". O que era, então, concebido como uma determinação feita de forma fechada nos ateliês de alta costura, onde o criador se colocava como o olho determinador das hierarquias, tomando como referência a alta sociedade, passa a escapar desse lugar, desse centro de controle, como vimos, a partir da consolidação do prêt-à-porter. Importante frisar que jovens consumidores e criadores ao mesmo tempo, criam linhas de fuga em relação a essa dinâmica anterior, minando o poderio monopolizado pela alta costura, e, de alguma forma, também passam a expressar uma nova composição do capitalismo, agora mais flexível, que investirá cada vez mais na potência de criação dos indivíduos para se expandir. Com a nova organização da indústria da moda, localizada em meados da década de 1960, isto é, com novos polos criadores e com a concatenação da cadeia têxtil e da criação, seguimos em direção à dispersão da criação.

    Com o advento das tecnologias digitais, um novo paradigma se coloca: o rompimento do espaço e do tempo se superpõe à lógica geográfica dos continentes, imediatizando as criações, que passam a ser lançadas em tempo real. Parece que, a partir desse momento, a criação deixa de seguir uma ordem de presente-passado-futuro para quase se tornar apenas presente. Quase, porque a herança da disciplina parece insistir em vigorar, pois a cultura de querer saber o que será o "novo", agora sondado por escritórios de estilo, para melhor prescrevê-lo, continua a existir. Estes passam a executar as suas pesquisas em tempo real, e os dados coletados nas ruas hoje, amanhã já são vendidos como tendência. O dado da cópia também é curioso, pois se pode dizer que essa indústria se aprimora em relação ao seu maquinário (que também funciona em tempo real) e passa a reproduzir o que os desfiles internacionais lançam e são vistos pela internet (novamente, o tempo real da novidade disseminada).

    Talvez caiba dizer que a moda ao se vir conectada à web, o que lhe permitiu expandir sua informação de forma imediata e fulminante, pode escamotear melhor seu jogo duplo: a sua face disciplinadora, "verticalizada", que ainda persiste, e uma outra, mais complexa, que faz desaparecer no seu próprio funcionamento, caracteristicamente "horizontalizado", logo descentralizado, seu iminente controle.

    Sabemos que a indústria da moda agora não mais atua apenas de forma panóptica, restritiva, mas, "liberta" os corpos de um controle rígido e fisicamente posicionado ("os olhos da instituição") e espera, realmente deseja e acalenta a ideia de liberdade fluida, de um corpo líquido que se transforma de maneira mais frequente, e não só se renova a cada estação.

    A pele satelítica, assim como a enuncia Derrick Kerckhove em seu livro A pele da cultura (1995)uma pele conectada na rede, uma rede de fluxos onde tudo é informação digitalé de fato, o objeto de desejo da indústria e do próprio usuário, a fim de vivenciar cada momento possível de gozo narcísico, ainda que reconheçamos que não podemos atribuir às tecnologias digitais apenas um uso narcisista, o que seria uma avaliação reducionista de nossa parte.

    Dentro dessa nova concepção de fluidez mutante do corpo, a indústria da moda continua funcionando como um "estranho", paradoxal mesmo, dicionário de costumes, para usar as palavras de Baudelaire, e ao mesmo tempo atualizando-o, só que em um tempo presente, imediato, real, desordenado e/ ou (des)hierarquizado. Desordenado quando rompe com a lógica da ordem conhecida, ainda que a hierarquia, de uma certa forma, permaneça ainda a mesma.

    Assim, os escritórios de estilo, que puseram em crise a disciplina dos ateliês dos grandes costureiros em meados de 1960, hoje estão munidos de aparatos digitais que apreendem as transformações percebidas a cada instante. O controle estabelece-se nas redes de fluxo, onde o corpo é, ao mesmo tempo, objeto de captura e também capturado.

    No entanto, as tecnologias digitais favorecem a um pleno deslizamento de sentido (leia-se como conexões inumeramente possíveis), ou seja, proporcionam maneiras diversas de percepção desse corpo que a indústria da moda sabe, e muito bem, elaborar e se apropriar. A moda atual, por um lado, nos oferece uma leitura majoritária, hegemônica, e, por outro lado, está povoada de "vozes minoritárias" que se conectam e se desconectam formando esse todo indiscernível: "as duas coisas podem coexistir porque não são vividas no mesmo plano"(6). São potencialidades que estão aí, mesmo emaranhadas.

    "O capitalismo não se expande – multiplicando os canais, penetrando nos níveis mais moleculares, dilatando-se complacente para admitir o que quer neutralizar, inventando, reutilizando – sem oferecer perigo para si mesmo" (7).

    Podemos pensar a partir daí que, a despeito dos controles todos, haverá sempre no ar uma vitalidade criativa, um vetor de invenção, que pode desmanchar territórios que confinem sujeitos a modos padronizados de pensar, de viver, de vestir. Acreditamos mesmo que o próprio ambiente das novas tecnologias agenciado à vida e sua exuberante variação de formas, cria dispositivos de alargamento da sensibilidade, que podem engendrar transformações e realizar novos paradigmas ético-estéticos.

    Hoje, contamos, aqui e ali, com designers de moda que se posicionam de forma a romper com a ideia de novidade sazonal, preferindo afirmar territórios de criação singulares, que escapam das pesquisas dos escritórios de estilos. Para estes, os projetos de criação constituem-se como práticas de intervenção na existência: novos arranjos funcionais e estéticos que acabam por desencadear mutações na subjetividade.

    Nesse contexto, podemos citar o belga Walter van Beirendonck, um dos precursores do que se tornará recorrente a partir da década de 1990 e ainda permanece. Esse criador, além de participar do grupo conhecido como "Os seis de Antuérpia", também realiza coleções fora do grande circuito internacional da indústria da moda (as Fashion Weeks) com uma repercussão internacional. Suas coleções são divulgadas via web, tanto em seu site quanto no YouTube. O mais curioso aqui é que mesmo estando fora dessa instituição, suas criações influenciam criadores e tendências por todo o globo. E mais: ele lida com paradigmas fundamentais em nossa atualidade colocando em questão o corpo biológico, as discussões sobre gênero, lançando mão de referências das mais diversas possíveis.

    Nessa mesma concepção, seguem-se Courtney Smith e Sean Tophham, idealizadores da publicação Extreme Fashion, de 2005. Mais do que uma catalogação de criações, trata-se de um manifesto contra a rigidez da indústria da moda e seus escritórios de estilo. Tal manifesto coloca em questão a cultura da indústria da moda em sua sazonalidade, seu calendário fixo, seus desfiles de difícil acesso (tanto para o observador quanto para o criador) e sua exigência de uma quase comercialização.

    Já Yohji Yamamoto, um criador que passou a integrar a indústria da moda na década de 1980, de alguma maneira também contribui para subverter tal sistema, ao reproduzir uma criação sua no site do Show Studio. Ele coloca à disposição essa criação não apenas no desenho técnico, mas também no passo-a-passo da modelagem com todas as etapas do processo. Passa a ser possível, então, que qualquer pessoa baixe tais arquivos, reproduza a peça no tecido desejado e envie uma foto de sua leitura daquele molde. O resultado são diversas peças, cada uma podendo pertencer a uma coleção completamente diferente.

    Ainda que sobre a moda recaiam formas sutis de controle, hoje, e cada vez mais, é possível pensar no designer de moda como um agente ressignificador da cultura, na medida em que ele passa a funcionar como um catalisador de outros universos de referência. Tentar entender a moda apenas sob a ótica da disciplina é não estar suficientemente atento a algumas práticas surpreendentes que, em seu exercício, a moda vem nos apresentando. E disso resultam experimentos tanto no plano social quanto subjetivo, que consolidam outros modos do fazer-pensar moda no contemporâneo.

     

    Rosane Preciosa é doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), professora adjunta do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Email: rosane_preciosa@yahoo.com.br
    Suzana Avelar é doutora em comunicação e semiótica pela PUC/SP, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Email: suavelar@uol.com.br

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Hobsbawn, E. J. A era do capital. Rio de Janeiro: Editora paz e Terra, 1977, p.241.

    2. Lipovetsky, G. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.107.

    3. Baudot, F. A moda do século. São Paulo: Cosac&Naify, 2002, p.172.

    4. Idem, p.212.

    5. Ibidem.

    6. Deleuze, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992, p.214.

    7. Caiafa, J. Nosso século XXI – Notas sobre arte, técnicas e poderes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 61.