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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.62 no.2 São Paulo 2010
NOTAS SOBRE MODA, JUVENTUDE E PARADIGMAS TEÓRICOS
Maria do Carmo Teixeira Rainho
Aprodução, a difusão e o consumo da moda sofreram transformações radicais a partir da década de 1960. Entre outros aspectos deve ser destacado, primeiramente, o surgimento do prêt-à-porter, que racionalizou a produção de roupas, normatizou a modelagem dos manequins e possibilitou às camadas médias dos Estados Unidos e, em seguida, da França além de países como o Brasil , vestirem roupas inovadoras e de baixo custo, utilizando prioritariamente fibras sintéticas. Essas novas roupas vão ao encontro daqueles que não podiam pagar os preços da alta costura, mas desejavam vestimentas adequadas ao seu estilo de vida, que fossem também criativas e bem cortadas. Tem início aí uma rejeição à roupa sob medida, confeccionada por alfaiates e costureiras. A alta costura, por sua vez, entra em decadência e já não é mais "o farol que ilumina o mundo" (1).
Para essa nova configuração no processo de criação e disseminação da moda foi fundamental o aumento do poder de compra de boa parte dos consumidores dos países europeus no contexto do pós-guerra; a expansão dos meios de comunicação de massa; o incremento do comércio de roupas prontas, com a criação e a expansão das butiques; e, sobretudo, a emergência da juventude como força criativa e da juventude mesma como valor.
Exemplares da sociedade de consumo, da alta produção, da obsolescência programada, do descartável, a roupa e a moda da década de 1960 são o domínio da juventude que, em Londres, Paris, Nova Iorque ou Rio de Janeiro, faz da sua aparência uma forma de resistência ao autoritarismo. Mas, se podemos falar de uma verdadeira revolução nas vestimentas empreendida pelos jovens segundo alguns historiadores da indumentária a última a que assistimos nesse âmbito essa revolução não se fez sentir de imediato nos estudos dedicados ao consumo e, mais especificamente, nos teóricos da moda.
A partir do final do século XIX quando a moda se torna um tema das ciências sociais, sobretudo da sociologia, o paradigma da imitação-distinção como motor de suas mudanças virou uma espécie de âncora à qual se agarraram inúmeros pensadores tributários da obra de Gabriel Tarde, Herbert Spencer, Georg Simmel e Thorstein Veblen (2).
Gilles Lipovetsky, no já clássico livro O império do efêmero, publicado em 1987, observa que, durante boa parte do século XX, a teoria da moda sofreu de uma espécie de acomodação dos intelectuais que adotaram sobre o assunto um credo comum a explicação simplista de que a lógica inconstante da moda deve ser entendida a partir dos fenômenos de estratificação social e das estratégias mundanas de distinção honorífica (3).
Entre os autores que se dedicaram a pensar o consumo e seus mecanismos de diferenciação ou de afirmação da distância nos grupos sociais dominantes, que influenciaram, sobremaneira, as reflexões sobre o consumo da moda, estão Mary Douglas e Baron Isherwood (4) e Pierre Bourdieu com trabalhos produzidos nos anos de 1970 (5). Os dois primeiros, economistas, propõem, em O mundo dos bens, uma teoria sobre o consumidor que chama a atenção para a forma pela qual as mercadorias são usadas para estabelecer as fronteiras das relações sociais: "os bens são neutros, seu uso é social; podem ser usados como cercas ou pontes". Quanto à Bourdieu, em obras como A distinção e O poder simbólico dedicou-se, através da sociologia do gosto que se revela nas opiniões emitidas espontaneamente, nas apreciações estéticas ou no consumo de objetos culturais a fundamentar a ideia de que as representações do mundo social, ou seja, a representação que o indivíduo ou o grupo tem de si mesmo e a representação que tem dos outros, se traduzem através dos estilos de vida. Nesse sentido, conforme o autor, a dinâmica da distinção social não se esgota no conflito simbólico pela imposição de uma determinada representação da sociedade, mas se estende na produção de novos gostos socialmente diferenciadores e no abandono progressivo das práticas culturais quando estas são apropriadas pelas camadas inferiores.
A questão do gosto bom ou mau e o estilo pessoal são mecanismos claramente poderosos de diferenciação, inclusão e exclusão social com a moda e a indumentária funcionando como cenário de batalhas em movimento em que as posições sociais estão em jogo. No entanto, estilo de vida, identidade e coesão dos grupos não se constrói, sobretudo a partir dos anos 1960, tendo em vista exclusivamente hierarquias ou posições sociais. O consumo de moda se revela, então, mais como indicador de um estilo de vida que pode ser o tempo todo construído e desconstruído do que como uma prática determinada por um grupo de status que admiro, emulo ou ao qual busco me vincular.
Assim, no nosso entendimento, o modelo explicativo qualificado de trickle-down (6), amplamente empregado durante décadas, deve ser, assim, matizado: este modelo "de cima para baixo", no qual são as grandes maisons e seus costureiros que vão definir as formas da indumentária e suas mudanças as quais se difundem das camadas mais altas da sociedade até as mais baixas, de Paris para o resto do mundo convive, desde os anos de 1960, com o processo qualificado de trickle-up. Nele, a moda surge de baixo para cima, ou seja, a partir da rua, das camadas mais baixas, de grupos etários que, até então, não influíam nos gostos dominantes e não necessariamente em Paris, mas em Londres, Tóquio, Barcelona ou até mesmo no Rio de Janeiro.
Conforme Fred Davis, a teoria trickle-down é insuficiente quando se trata de explicar o "pluralismo do policentrismo da moda, que cada vez mais caracteriza a vestimenta contemporânea" (7), sinalizando que para os partidários daquele modelo os consumidores de moda seriam essencialmente passivos (8). Assinala, ainda, que na teoria trickle-down é como se a moda só se preocupasse em simbolizar a classe social, enquanto ela, em realidade, diz respeito a vários outros tipos de identidades: sexual, de gênero, de faixa etária, étnica, religiosa, entre outros.
Uma chave importante para se pensar sobre o consumo na contemporaneidade encontra-se em A ética romântica e o espírito do consumismo moderno, de Colin Campbell. Segundo o autor, o romantismo serviu para proporcionar o apoio ético para um padrão inquieto e contínuo de consumo que caracteriza o comportamento do homem moderno. Para Campbell, o espírito do romantismo estaria presente na década de 1960 operando no sentido de suplantar as forças do tradicionalismo e proporcionar um impulso renovado à dinâmica do consumismo. Haveria, assim, uma estreita correspondência entre as explosões do boemismo e os períodos de arrancada criativa do consumidor como ocorrido nos anos de 1960. Ali se poderia perceber "uma "revolução moral"
"em que um novo espírito de prazer surgia para desafiar o que era identificado com um restritivo puritanismo, um espírito mais patente entre os jovens instruídos que procuraram prazer e auto-expressão por meio do álcool, das drogas, do sexo e das artes, enquanto um intenso idealismo moral andava de mãos dadas com um irrestrito comercialismo" (9).
Uma outra vertente interessante para pensar a roupa do ponto de vista da constituição de um grupo é a dos autores vinculados aos estudos culturais, entre eles, Dick Hebdige que se apoia em Gramsci, Althusser e, sobretudo, na semiótica para analisar as subculturas britânicas: teds, skinheads, punks, hippies, dreads, entre outros. Dois conceitos de Gramsci são fundamentais para a sua abordagem: conjuntura e especificidade. Operando com eles, Hebdige assinala que as subculturas são determinadas pela idade e classe social e se expressam por intermédio da criação de estilos. Esses estilos são produzidos conforme conjunturas históricas e culturais específicas e não podem ser lidos simplesmente como uma resistência frente às tensões sociais. Mais do que isso, as subculturas reúnem ou hibridizam estilos para construir identidades que vão conferir a elas uma relativa autonomia e, ao mesmo tempo, fazer frente às diferenças de classe, geração, oportunidades de trabalho, etc (10).
A partir das proposições de Campbell e Hebdige devemos pensar no consumidor como sujeito que faz uso da moda para construir ativamente identidades de classe e gênero. A noção de consumo ativo nos ajuda a perceber, assim, como as roupas podem ser usadas para opor resistência a essas identidades dominantes de classe e gênero, bem como às posições de poder e status que as acompanham.
Dialogando com esses e outros autores (11), devemos refletir também sobre o uso generalizado da categoria juventude. Articular e conectar classe social e cultura jovem é fundamental, embora muitos pensadores tendam a tratar da juventude como uma nova classe, formada por uma indiferenciada comunidade de consumidores adolescentes, em função da quantidade de estilos que emergiram a partir dos jovens. Os anos de 1960 são um divisor de águas nesse sentido obrigando-nos a repensar uma espécie de mito de uma cultura jovem sem classe social definida.
Delimitar categorias como juventude, geração, cultura jovem, subcultura e a própria moda é, por isso, fundamental. No caso da moda, especificamente, constitui uma maneira de fugir de descrições reducionistas que explicam os seus significados em termos puramente econômicos, como nas abordagens marxistas, ou em termos de gênero, no caso do feminismo, entre outras.
Acreditamos que a roupa e a moda são produzidas em face de circunstâncias sociais e históricas, e constituem um observatório privilegiado do ambiente político, econômico e cultural de uma época. Mais do que isso, acreditamos que seus significados são produzidos conforme as diferentes circunstâncias sociais e históricas. Dada à complexidade da moda como objeto, cabe, assim, ultrapassar paradigmas consolidados, romper com as abordagens historicistas ou descritivas e recolocar a roupa e a moda no centro de uma discussão histórica, filosófica, estética e sociológica, que as afaste das perspectivas esvaziadoras a que elas muitas vezes acabam relegadas.
Maria do Carmo Teixeira Rainho é pesquisadora do Arquivo Nacional e professora de história da indumentária da Faculdade Senai-Cetiqt. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora, entre outros, do livro A cidade e a moda, Ed. UnB, 2002. Email: mcrainho@ig.com.br
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Monneyron, F. La frivolité essentielle, Paris, PUF. 2001, p. 40.
2. Conferir de Spencer, H. "Les manières et la mode", em: ___ Essais de morale, de science et d'esthetique. Idem. Principes de sociologie, Vol. 3; Tarde, G. Les lois de l'imitation; Veblen, T. A teoria da classe ociosa; Simmel, G. "La mode", em: ___ La tragédie de la culture et autres essais.
3. Lipovetsky, G. O império do efêmero, São Paulo, Cia. das Letras. 1987.
4. Douglas, M., Isherwood, B. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo, Rio de Janeiro, Editora UFRJ. 2006.
5. Ver, entre outros, A distinção: crítica social do julgamento, Porto Alegre, Zouk, 2008 e O poder simbólico, Lisboa: Difel. 1989.
6. Expressão tomada de empréstimo da economia, empregada nos estudos referentes à moda, no sentido de uma difusão de "cima para baixo", ou seja, a moda é determinada pelas camadas mais altas e, tão logo adotada pelas inferiores, gera um novo e infindável ciclo de imitação-distinção.
7. Davis, F. Fashion, culture and identity. Chicago e Londres, The University of Chicago Press. 1992, p. 112.
8. Idem, p. 187.
9. Campbell, C. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno, Rio de Janeiro, Rocco. 2001, p. 289.
10. Hebdige, D. Subculture: the meaning of style, Londres e Nova Iorque, Routledge. 2007.
11. Ver, entre outros, Levi, Giovanni e Schmitt, Jean-Claude. História dos jovens, São Paulo: Cia. das Letras, 1996 e ainda de Pierre Bourdieu, "A juventude é apenas uma palavra" In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Editora Marco Zero. 1983.