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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.3 São Paulo  2010

     

     

    BIODIVERSIDADE MARINHA: UMA HERANÇA AMEAÇADA?

    José Angel Alvarez Perez

     

     

    Os oceanos recobrem 70% da superfície do planeta Terra, um território duas vezes mais extenso que a superfície da Lua e de Marte juntas. Com profundidade média de 3,9 quilômetros constituem um ambiente tridimensional contínuo, com cerca de 1.370 milhões de quilômetros cúbicos, que abriga 95% da biosfera da Terra e, em termos genéticos, a maior parte de sua biodiversidade (1). Foi nesse vasto ambiente que a vida surgiu há bilhões de anos e onde, desde então, se diversificou sofrendo incontáveis episódios de expansão e retração. Apesar desse histórico de constante mudança, alterações recentes nos padrões de biodiversidade marinha, em escalas temporais muito menores, têm constituído um foco de inquietude para a humanidade. Isso porque a espécie humana encontra-se submetida às condições ambientais globais fortemente influenciadas pela "saúde" física e biológica dos oceanos (clima, disponibilidade de oxigênio, reserva de carbono etc). Mais do que isso, superpopulosa, nossa espécie também depende diretamente da diversidade marinha como fonte de alimento, além de outros recursos que, apenas recentemente, consegue reconhecer (por exemplo, a diversidade genética). Acredita-se que, no futuro, essa será uma "herança" crucial para a persistência do homem no planeta, herança que hoje, se teme, poderia estar ameaçada.

    Possivelmente as evidências mais claras de modificações nos padrões de biodiversidade dos oceanos sejam decorrentes do efeito da atividade pesqueira. Esses efeitos incluem não apenas o frequente esgotamento de estoques locais de espécies economicamente importantes, como também alterações na estrutura das comunidades marinhas devido às lacunas deixadas por essas espécies nas complexas tramas de interações ecológicas de seus ecossistemas (2). Em áreas costeiras, evidências desses impactos remontam mais de 100 mil anos, por exemplo, em associação ao extermínio de grandes vertebrados marinhos (tartarugas, peixes-boi, lontras marinhas, leões marinhos e outros) cuja "ausência" resultou na proliferação de suas presas e profundas reduções de habitats como florestas de macrófitas, recifes de coral e bancos de gramíneas marinhas em áreas tropicais e subtropicais (3).

    Quando o homem se aventurou à pesca em mar aberto, cerca de 500 anos atrás, a noção de um potencial ilimitado de produção pesqueira disseminou-se, fundamentalmente associada à vastidão desses ambientes, à descoberta de bancos pesqueiros inexplorados e às dificuldades e perigos da pesca distante dos portos seguros. A escalada tecnológica e de esforço pesqueiro que se seguiu fez com que a produção pesqueira, em nível global, atingisse, ao longo do século XX, patamares sem precedentes, atendendo para muitos as premissas de um oceano "inesgotável". Mas essa noção começaria a mudar a partir da segunda metade desse século quando colapsos de pescarias de diversas escalas passaram a ser finalmente bem documentados e analisados, bem como suas consequências sociais, econômicas e ambientais. De fato, já no final da década de 1990, estimava-se que não mais de 20% dos estoques mundiais estariam sendo explotados (4) abaixo dos limites naturais de sustentabilidade; todos os demais teriam atingido ou ultrapassado esses limites (5).

    IMPACTO DAS FROTAS PESQUEIRAS A análise dos padrões dinâmicos de operação das frotas pesqueiras no mundo todo mostrava impactos adicionais ainda mais significativos sobre a vida marinha. Inicialmente, ficou caracterizado um processo de expansão da atividade pesqueira para áreas cada vez mais profundas e o direcionamento para espécies cada vez menores e mais próximas da base das cadeias tróficas, como uma resposta ao esgotamento dos recursos costeiros e do desaparecimento na natureza de organismos predadores de maior tamanho e longevidade (6;7). Adicionalmente, o potencial de captura não intencional e de degradação de habitats das pescarias de grande escala começou a ser revelado demonstrando perspectivas alarmantes de geração de mortalidade de um elevado número de espécies não importantes economicamente, incluindo aquelas demograficamente sensíveis como aves, tartarugas, tubarões, mamíferos marinhos e corais de profundidade (8). Combinados, esses impactos demonstraram o potencial da pesca como agente modificador dos ecossistemas marinhos, tanto em domínios costeiros como oceânicos, capaz de: a) reduzir a abundância de organismos a níveis não produtivos ou até mesmo a extinções regionais ou globais; b) promover a redistribuição da biomassa marinha no sentido dos componentes de menor tamanho; c) modificar habitats essenciais para a sustentação de espécies com e sem importância econômica (6). Aos indícios pesqueiros podem se somar outros tantos associados a impactos talvez não menos importantes causados pelas tendências presentes e futuras da exploração mineral no leito marinho, poluição, ocupação das áreas costeiras e as mudanças climáticas globais.

    Mas se, por um lado, sobram indícios de ameaças à estabilidade dos padrões atuais de diversidade marinha, por outro é frágil e particularmente inquietante nossa capacidade de dimensionar essa ameaça. Qual parcela da diversidade marinha de fato está sob ameaça? Quais as reais consequências de alterações nessa diversidade? Além de uma previsível diminuição nas fontes de alimento para o futuro, o que mais está em jogo?

    No centro dos questionamentos acima está o fato de que nosso real conhecimento da biodiversidade marinha é reconhecidamente insuficiente. Até o ano 2000, estimava-se que cerca de 230 mil espécies marinhas haviam sido descritas pela ciência em contraste com cerca de 1,5 milhão de espécies de plantas e animais terrestres conhecidos. Apenas levando-se em conta a dimensão dos habitats marinhos, tanto os efetivamente estudados e aqueles por estudar, essa aparente desvantagem da diversidade marinha demonstra-se claramente ilusória.

    Com base nessa realidade, e estimulada por demandas globais da Convenção da Diversidade Biológica (CBD), em 2000, a Fundação Alfred Peter Sloan lançou o Programa Censo da Vida Marinha (9) com o objetivo central de, em dez anos de existência, "avaliar e explicar a diversidade, distribuição e abundância das espécies marinhas do passado ao presente, e projetar o futuro da vida marinha". Em seu documento-base, estimativas dos níveis de diversidade a ser descoberta nos domínios marinhos, desde litorâneos até oceânicos, rasos e profundos, projetam os números da vida marinha para patamares acima de um milhão (10). Mas, mais importante do que nosso nível de "ignorância", o documento avalia também as principais limitações para incrementar nosso conhecimento. Em primeiro lugar, ele aponta resultados científicos recentes que atestam uma elevada taxa de espécies "desconhecidas" (principalmente invertebrados de pequeno tamanho e microorganismos) em espaços relativamente pequenos de habitats profundos e costeiros. Considerando (a) os imensos territórios que esses habitats podem ocupar, (b) nossa capacidade limitada de "amostrá-los" de forma representativa (mesmo com disponibilidade infinita de recursos econômicos), e (c) a escassez de taxonomistas devotados à descrição contínua de espécies, algo particularmente crítico em alguns filos, conclui-se que, em todos os domínios marinhos, uma parcela significativa da diversidade continuará sempre desconhecida para a humanidade. Contribuem para tal limitação deficiências tecnológicas para se amostrar certos grupos de animais e plantas em certos ambientes pouco acessíveis e, até mesmo, a dubiedade de nossos critérios tradicionais para classificar organismos. O documento apresenta, por fim, uma descrição de novas técnicas de amostragem envolvendo sensores visuais e acústicos, bem como marcadores genéticos para dirimir as referidas lacunas e buscar uma compreensão inovadora sobre os organismos que vivem no mar.

     

     

    Durante cerca de dez anos, o Censo da Vida Marinha (9) tem fomentado projetos de campo direcionados às regiões mais remotas dos oceanos, mas também ao universo costeiro e litorâneo, adicionando não apenas cerca de 6 mil espécies novas às listas originais, mas também informações inéditas sobre os padrões de abundância e distribuição das espécies marinhas. Todo esse esforço reconhece-se, ainda nos coloca muito aquém da compreensão completa da nossa "herança ameaçada". Mas, a partir de iniciativas globais como essa, inegavelmente, hoje sabemos consideravelmente mais do que sabíamos há uma década, além de termos uma perspectiva mais concreta do que podemos fazer para aumentar nosso conhecimento numa escala temporal compatível com a dinâmica dos fatores que ameaçam a biodiversidade marinha.

    Ao longo de sua história relativamente breve de desenvolvimento pesqueiro (~ 40 anos), o Brasil não tem destoado das tendências mundiais. Com uma pesca tradicionalmente concentrada em áreas costeiras e de plataforma continental, o país atingiu, na década de 1990, patamares máximos de explotação ou mesmo a sobre-explotação de mais da metade de seus recursos marinhos (11). Da mesma forma, um processo descontrolado de expansão para áreas profundas do talude se deu na última década, resultando em quadros similares de sobrepesca de valiosos crustáceos e peixes de profundidade (12). Tanto na plataforma quanto no talude o efeito não intencional da pesca brasileira sobre comunidades pelágicas e demersais tem sido documentado e, ao menos na região Sudeste-Sul, já existem indícios de alterações decadais na diversidade das comunidades marinhas (13).

    CONCLUSÃO Conhecer mais sobre a biodiversidade no mar brasileiro diante desse cenário de uso crescente, não apenas de recursos pesqueiros, mas também das reservas de petróleo sob o assoalho oceânico, tornou-se uma prioridade na última década e motivou iniciativas governamentais como o programa Revizee (Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva) entre outros. Entre 1994 e 2004, a presença de 130 espécies e 10 famílias foi registrada por primeira vez em águas brasileiras, além da descrição, até o momento, de seis novas espécies de peixe e 55 espécies de invertebrados bentônicos (14). Mesmo com esses aportes, ao menos no que se refere ainda aos invertebrados marinhos, nosso conhecimento com respeito à diversidade brasileira pode não ser maior do que 10% do número total estimado de espécies, ressaltando-se que os ambientes profundos e oceânicos são os menos estudados (15). Em que pese os impactos já documentados como função da expansão pesqueira, o interesse nacional em ocupação e exploração econômica de toda a Zona Econômica Exclusiva brasileira e os atuais processos de mudanças climáticas globais, nossa capacidade de estimar concretamente os impactos futuros sobre a diversidade em nossos mares, assim como no resto do mundo, é incipiente.

     

    José Angel Alvarez Perez é professor do Centro de Ensino Superior em Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar da Universidade do Vale do Itajaí (Univali)

     

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. O'Dor, R.K. "A census of marine life". BioScience, Vol.54, no.2, pp.92-93. 2004.

    2. Pauly, D.; Chrinstensen, V.; Dalsgaard, J.; Froese, R. & Torres, F.C. Jr. "Fishing down marine food webs". Science, Vol.279, no.5352, pp.860-863. 1998.

    3. Jackson, J.B.C. et al. "Historical overfishing and recent collapse of coastal ecosystems". Science, Vol.293, no.5530, pp.629-638. 2001.

    4. O termo "explotado" vem do verbo "explotar" definido como "tirar proveito econômico de (determinada área), sobretudo quanto aos recursos naturais" (Dic. Aurélio – 2ª Edição).

    5. Garcia, S.M. & Grainger, R.J.R. "Gloom and doom? The future of marine capture fisheries". Phil. Trans. R. Soc. B, Vol.360, no.1453, pp.21-46. 2005.

    6. Pauly, D.; Watson, R. & Alder, J. "Global trends in world fisheries: impacts on marine ecosystems and food security". Phil. Trans. R. Soc. B, Vol.360, no.1453, pp.5-12. 2005.

    7. Morato, T., Watson, R.; Pitcher, T.J.; Pauly, D. "Fishing down the deep". Fish and Fisheries, Vol. 7, pp.24-34. 2006.

    8. Hall, S.J. The effects of fishing on marine communities. Blackwell Science, London. 1999. 274p.

    9. O nome original em inglês do censo é Census of Marine Life e pode ser acessado no site: www.coml.org

    10. O'Dor, R.K. "The unknown ocean. The baseline report of the Census of Marine Life Research Program". Consortium for Oceanographic Research and Education. Washington D.C. 2003. 28p.

    11. Haimovici, M.; Cergole, M.C.; Lessa, R.P.; Madureira, L.S.P.; Jablonski, S.; Rossi-Wongstchowski, C.L.D.B. "Panorama nacional". In: Programa Revizee. Avaliação do potencial sustentável de recursos vivos na Zona Econômica Exclusiva. Relatório Executivo. Ministério do Meio Ambiente, pp.79-126. 2006.

    12. Perez, J.A.A.; Pezzuto, P.R.; Soares, A.L.S.; Wahrlich, R. "Deepwater fisheries in Brazil: history, status and perspectives". Latin American Journal of Aquatic Research, Vol.37, no.3, pp. 513-542. 2009.

    13. Gasalla, M.A. & Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B. "Contribution of ecosystem analysis to investigating the effects of changes in fishing strategies in the South Brazil Bight". Ecological Modelling, Vol.172, no. 2-4, pp.283-306. 2004.

    14. Anon. Programa Revizee. Avaliação do potencial sustentável de recursos vivos na Zona Econômica Exclusiva. Relatório Executivo. Ministério do Meio Ambiente. 2006. 303p.

    15. Migotto, A. E.; Marques, A. C. "Invertebrados marinhos". In: Thomas Lewinsohn (Org.). Avaliação do estado do conhecimento biodiversidade brasileira. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, Vol.1, pp.149-202. 2006.