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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.62 no.4 São Paulo Oct. 2010

     

     

    Alimentos versus população: está ressurgindo o fantasma malthusiano?

    Ricardo Abramovay

     

     

    Malthusianismo tornou-se expressão maldita desde, no mínimo, a segunda metade do século XIX e hoje se associa não só a uma postura política reacionária, mas a grosseiros erros de previsão. De fato, o pastor Thomas Robert Malthus (1766-1834) defendia os interesses dos latifundiários britânicos de sua época (1; 2) e elaborou uma lei científica cujo resultado apocalíptico mostrou-se felizmente errado: enquanto o crescimento populacional obedeceria a uma progressão geométrica, o aumento da produção agrícola teria um ritmo apenas aritmético. A consequência seria brutal, mas inevitável: somente as crises alimentares e a morte dos famintos conseguiriam adequar a satisfação das necessidades humanas às possibilidades produtivas da agropecuária.

    O estudo concreto das situações de fome mostra, no entanto, um paradoxo que dominou toda a reflexão e, de certa forma, as políticas públicas sobre o tema, ao menos durante a segunda metade do século XX: a fome era e é provocada muito mais pela impossibilidade de acesso a alimentos existentes do que pela escassez absoluta na oferta. E na raiz dessa impossibilidade estão não apenas falta de dinheiro para comprar comida, mas, como mostram inúmeros trabalhos do prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen (3; 4), falta de democracia para que políticas públicas permitam que cheguem os alimentos aos que não podem produzi-los ou adquiri-los no mercado. Mesmo que a fome no mundo atinja hoje a inadmissível cifra de quase um bilhão de pessoas (5), isso representa menos de um sexto da humanidade, contra nada menos de um terço de famintos no início dos anos 1970. Será que se pode daí tirar a conclusão de que Malthus errou e que as sociedades atuais caminham, mesmo que mais lentamente do que seria de se esperar, na boa direção?

    Este artigo procura mostrar que Malthus errou menos do que se supunha e, sobretudo, que acertou em cheio num problema central que a ciência econômica posterior a ele insiste em ignorar: a elevação da produção material e da oferta de serviços encontra um claro limite no esgotamento da capacidade de os ecossistemas continuarem prestando os serviços de que depende a sobrevivência das sociedades humanas. O mais importante documento a esse respeito, a Avaliação Ecossistêmica do Milênio (6), mostra que, dos 24 serviços prestados pelos ecossistemas às sociedades humanas, nada menos que 15 estão hoje degradados ou são usados de forma insustentável. Que serviços são estes? Entre os fundamentais estão a água, o ar, o controle da erosão e das enchentes, a oferta de alimentos, a reciclagem de nutrientes, a obtenção de madeira, energia e medicamentos, os valores culturais e espirituais que a natureza propicia e os serviços de regulação do próprio clima. Mesmo que Malthus tenha subestimado o poder da tecnologia em enfrentar os limites da natureza e preconizado métodos hoje inadmissíveis para resolver o problema da fome, a verdade é que ele tocou num ponto central: o crescimento econômico encontra barreiras naturais, que podem ser contornadas, mas não suprimidas.

    O aquecimento global é talvez a expressão mais emblemática desse limite, que se exprime, também, no ritmo preocupante de declínio da biodiversidade em todo o mundo. Isso significa que a extraordinária redução da fome nos últimos quarenta anos mostra-se menos promissora do que parece para o futuro. Aliás, esse declínio, que acontecia de forma contínua desde o final dos anos 1970, reverteu-se nos últimos dez anos: os 842 milhões de famintos de 1990 ampliaram-se hoje a mais de um bilhão (7).

    É verdade que a agropecuária mundial é capaz de produzir a quantidade de alimentos necessária à plena satisfação das necessidades humanas. Mas, para que esse objetivo seja atingido e, sobretudo, para que o contingente de quase 2,3 bilhões de pessoas a mais que deverão povoar o planeta até 2050 (7) tenham suas necessidades alimentares satisfeitas, é indispensável que o próprio sistema alimentar mundial encontre novos caminhos. No eixo de tais mudanças está a maneira como se enfrenta o duplo problema do aquecimento global e da perda da biodiversidade, em que a agropecuária tem importância decisiva.

    O AQUECIMENTO GLOBAL NA AGROPECUÁRIA A agropecuária é o setor econômico mais diretamente dependente de fatores naturais ligados à regulação climática: as plantas só conseguem fazer fotossíntese, ou seja, usar a energia do sol para converter dióxido de carbono em compostos orgânicos, dentro de certos limites de temperatura. Temperaturas, por vários dias, acima de 34º acabam comprometendo de forma severa a produtividade agrícola. Além disso, a intensificação do calor tem o efeito de aumentar tanto a evaporação como a transpiração das plantas (a evapotranspiração). Ao mesmo tempo, ela tende a concentrar a devolução dessa água em chuvas violentas que nem sempre ocorrem ali onde está a produção agrícola. Uma das mais graves consequências das mudanças climáticas são os chamados eventos extremos, que já se exprimem por todo o mundo, em regiões rurais e urbanas, com danos socioambientais dramáticos.

    Os mais importantes estudos sobre esse tema mostram que as regiões tropicais, mesmo não sendo as maiores responsáveis pelo aquecimento global, serão muito mais afetadas pelas mudanças climáticas que as temperadas. O International Food Policy Research Institute (IFPRI) fez um estudo com base em diversos modelos climáticos (8) e o resultado converge na preocupante direção de declínio geral do ritmo de aumento da produção agropecuária. Só que, na média, os rendimentos agrícolas nos países desenvolvidos são menos afetados que nos países em desenvolvimento. O sul da Ásia é particularmente atingido, segundo o que prevêem os modelos examinados pelos pesquisadores do IFPRI. Mesmo com aplicação de fertilizantes, essa redução de rendimentos apenas se atenua. E não se pode esquecer que os fertilizantes químicos baseiam-se em recursos naturais também cada vez mais escassos e mais caros. As áreas irrigadas do sul da Ásia, exatamente ali onde se concentraram os mais promissores resultados das técnicas agronômicas que caracterizaram o progresso técnico dos últimos trinta anos do século XX (a chamada Revolução Verde), diminuirão seu rendimento sob todos os cenários analisados no estudo do IFPRI. O aquecimento global vai intensificar uma tendência declinante nos ganhos de produtividade ligados a essas tecnologias que já vem de longe: durante os anos 1960, os ganhos de rendimentos com cereais na agricultura mundial foram de 3,2% ao ano. Nos anos 2000, essa taxa declina para 1,5% ano (7). Pesquisadores da Universidade de Washington e da Universidade de Stanford chegaram a resultados ainda mais impressionantes, com base na análise de vinte e três modelos climáticos globais (9): é de 90% a chance de que as temperaturas dos trópicos e dos subtrópicos, no final do século XXI, excedam as maiores temperaturas já registradas entre 1900 e 2006. Isso significa ficar muito além das médias habituais, o que amplia o risco de perda nas safras.

    A AGROPECUÁRIA NO AQUECIMENTO GLOBAL Essa distribuição desigual dos impactos das mudanças climáticas coloca o problema alimentar mundial num patamar inédito. A fome hoje se concentra nas áreas rurais de países em desenvolvimento, onde a agricultura é uma das poucas atividades capazes de gerar renda monetária assim como serviços e produtos não monetários. E é exatamente tal produção agropecuária a mais ameaçada pelo aquecimento global. Segundo o IFPRI (8), quase metade da população economicamente ativa nos países em desenvolvimento depende da agricultura. O desafio atual não consiste apenas em impedir que a produção agropecuária mundial fique aquém do necessário à satisfação das necessidades humanas: o fundamental é conseguir que os que hoje se encontram em situação de pobreza possam fazer do aumento da produção agropecuária o meio de sua inserção no sistema produtivo e de sua emancipação social. As mudanças climáticas que afetam as regiões onde eles se concentram surgem como um poderoso obstáculo diante desse objetivo. Os pobres rurais dos países onde a fome é mais severa já enfrentam problemas graves ligados à dificuldade de acesso a terra, ao crédito, ao conhecimento de tecnologias adequadas e aos mercados. O que, agora, é agravado pelo horizonte do aquecimento global que atingirá de forma especialmente severa suas regiões.

    No Brasil, a situação é felizmente menos grave que na África sub-sahariana ou no sul da Ásia, mas ainda assim preocupante. A Embrapa e a Unicamp publicaram, em 2008, um estudo prospectivo onde é nítido o aumento do risco climático para quase todas as culturas estudadas (10). Dos nove produtos analisados no trabalho da Embrapa e da Unicamp (café, algodão, arroz, cana-de-açúcar, feijão, girassol, mandioca, milho e soja) correspondentes a 86,2% de toda a área plantada em 2007 com lavouras, somente a cana-de-açúcar e a mandioca não sofrem redução de área. E, no caso da mandioca, ela seria deslocada, pois o semi-árido do Nordeste não mais permitiria sua produção. Em Pernambuco, entre 1980 e 2005, a temperatura média subiu 3 graus e os modelos climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam, segundo o pesquisador Paulo Nobre, forte probabilidade de dias ininterruptos de estiagem, catastróficos para a produção agropecuária (11).

    A cultura mais seriamente atingida pelo aquecimento global será, provavelmente, a soja, que hoje representa o maior valor produzido e exportado pela agricultura brasileira. O produto seria extinto tanto do Sul do país, como das novas áreas de cerrado do Nordeste (10). Essa, aliás, é razão suficiente para que se intensifiquem os esforços de que o país deixe de encarar o bioma do Cerrado simplesmente como fronteira agrícola, legitimando assim o desmatamento de que ele é hoje objeto. A destruição do cerrado só vai fragilizar ainda mais esse bioma e torná-lo mais suscetível aos impactos negativos que aí se prevê das mudanças climáticas.

    O resultado global dessa situação é aterrador. A previsão é que a oferta calórica mundial per capita em 2050 seja inferior à de 2000 (7). Pior, tudo indica que a produção agropecuária estará ainda mais concentrada em alguns poucos países do que hoje. Em outras palavras, o cenário é de ampliação da dependência alimentar em que se encontra parte crescente dos países em desenvolvimento. Enfrentar essa questão exige mudanças cruciais no próprio sistema alimentar dominante no mundo contemporâneo. Vejamos a questão mais de perto.

    OBESIDADE MAIOR QUE A FOME A organização do sistema alimentar mundial está conduzindo as populações contemporâneas ao pior de dois mundos. Por um lado, como acaba de ser visto, a tendência declinante no número de famintos inverte-se de forma preocupante nos últimos anos, ao mesmo tempo em que aumentam os riscos de que os países mais pobres sejam incapazes de fazer do abastecimento alimentar de suas próprias populações fonte de prosperidade. O desafio de acabar com a fome com base na expansão das capacidades produtivas dos que são por ela atingidos ou ameaçados tornou-se ainda mais complexo diante das mudanças trazidas pelo aquecimento global.

    O outro lado da moeda é o aumento espetacular do contingente populacional não só acima do peso, mas marcado claramente por obesidade. E por trás dessa obesidade encontra-se um sistema de produção e de consumo voltado de maneira explícita a fazer com que a ingestão calórica das populações contemporâneas seja muito superior ao que uma vida saudável supõe.

    O consumo médio de um norte-americano, em torno de 3.830 calorias diárias, ultrapassa de longe o recomendável. O resultado é um inquietante aumento da população acima do peso, num patamar que pode ser caracterizado como de obesidade. O Centers for Disease Control and Prevention, órgão oficial do governo norte-americano, define como obesos os indivíduos com massa corporal, relativa a sua altura, de 30% acima de um parâmetro considerado normal. Em 1990, nenhum estado norte-americano tinha uma prevalência de obesidade superior a 15% da população. Em 1999 já eram 18 os estados norte-americanos em que a obesidade atingia entre 20 e 24%, mas nenhum chegava a 25%. Em 2008, 32 estados já tinham mais que 25% de seus moradores obesos, sendo que em seis deles a obesidade superava 30% dos habitantes (12). Entre as crianças e adolescentes o problema também é grave. No período entre 1976/1980 e 2007/2008, a obesidade das crianças de dois a cinco anos amplia-se de 5 a 10,4% do total e os obesos de 6 a 11 anos passam de 6,5% a 19,6% de sua faixa etária, segundo a National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) (13). E o pior é que 80% das crianças obesas têm chances de se tornarem adultos obesos.

    A obesidade não é um problema exclusivamente norte-americano. O sistema de vigilância de doenças crônicas desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, dirigido pelo professor Carlos Augusto Monteiro, acusa que o excesso de peso (que é grave, mas não tanto quanto a obesidade) no Brasil passa de 42,7% da população em 2006 a 46,6% em 2009 (14). E, mundialmente, a estimativa da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, da sigla em inglês) é de 1,6 bilhão de pessoas com excesso de peso: mais que a população diretamente atingida pela fome (15).

    A Organização Mundial da Saúde calculou a quantidade de anos de vida perdidos em função de vários tipos de doenças. As relacionadas diretamente à fome (e que atingem particularmente os recém-nascidos e as crianças) representam uma perda de 200 milhões de anos de vida. O segundo lugar nesse ranking macabro é ocupado pelas doenças ligadas à obesidade e a estilos excessivamente sedentários de vida que arrancam 150 milhões de vida da humanidade. Isso é quase o dobro do representado pelas doenças sexualmente transmissíveis. Nos Estados Unidos, só o tabaco mata mais que a obesidade e o sedentarismo que a acompanha (16).

    Na raiz desse problema cada vez mais grave de saúde pública encontra-se o sistema alimentar mundial. É bem verdade que o progresso técnico contemporâneo, o aumento da produtividade na agropecuária, a rapidez no deslocamento dos produtos e formas ágeis de armazenamento e transporte permitem, hoje, alimentar uma população crescente. O fato, entretanto, de que esse sistema empurre sistematicamente o consumo muito além do suficiente não traz apenas problemas sérios de saúde pública. Ele conduz igualmente à degradação dos recursos imprescindíveis para que sejam mantidos os serviços ecossistêmicos básicos compatíveis com um planeta povoado por quase 9,5 bilhões de pessoas, que é a perspectiva de estabilização da população mundial em torno de 2050. A pecuária é o exemplo mais emblemático da distância que pode haver entre satisfazer as necessidades humanas e patrocinar explicitamente o consumo excessivo com base na degradação ambiental sistemática. É claro que são igualmente importantes e, por vezes até mais graves, o estímulo a refrigerantes, guloseimas e alimentos industrializados e semi-industrializados em geral. Mas os problemas provocados pelo excessivo consumo de carne estão entre os mais impactantes sob o ângulo socioambiental.

    Um norte-americano come 120 quilos de carne por ano. Isso supera a média mundial dos países desenvolvidos que é pouco superior a 80 quilos. O Brasil está acima dessa média, com cerca de 90 quilos anuais. O consumo excessivo de carne "é a fonte primária de gordura saturada, responsável pelo alto risco de doenças cardiovasculares, diabetes e vários tipos de câncer". A sóbria revista britânica de saúde pública em cujo editorial se encontra esta advertência (17) é corroborada por publicação científica norte-americana voltada a doenças cardiovasculares, que mostra a maior probabilidade de o alto consumo de carne associar-se à obesidade (18). Trata-se de um padrão alimentar não apenas nocivo aos indivíduos, mas que representa também um uso predatório dos recursos cada vez mais escassos diante de um planeta cuja população ainda vai crescer um terço e que ainda tem pela frente o desafio de eliminar os que hoje se encontram em situação de fome. 70% da área agrícola mundial, o que corresponde a 30% de todo o solo do planeta são ocupados ou com pastagens ou com culturas voltadas à alimentação animal (15).

    PECUÁRIA E DESMATAMENTO Entre os problemas daí decorrentes destacam-se três. Em primeiro lugar, a pecuária de corte é o mais importante determinante do desmatamento em todo o mundo e, particularmente, na Amazônia. O grande problema dessa forma de ocupação da terra é que, além das emissões de gases de efeito estufa a que ela conduz, representa também um enorme desperdício no uso de recursos que poderiam oferecer potenciais de geração de renda muito maiores que a pecuária. As florestas contemporâneas são hoje, sobretudo, objeto de destruição para que em seu lugar surjam, na maior parte das vezes, pastagens ou culturas alimentares voltadas à alimentação animal. Esse uso é o contrário do que a geógrafa Bertha Becker chama de uma economia baseada no conhecimento da natureza e que envolve a valorização dos potenciais da biodiversidade para a indústria farmacêutica, para os cosméticos, para as biotecnologias e, de maneira geral, para essa nova fase do progresso industrial contemporâneo caracterizada pela biomimética, ou seja, pelo conhecimento e a tentativa de promover a reprodução industrial do que ocorre em inúmeros processos naturais. Destruir áreas florestais para aí implantar grandes rebanhos ou lavouras voltadas à alimentação animal (caso da soja, por exemplo) é uma verdadeira aposta contra o futuro, mesmo que imediatamente os ganhos privados dessa ocupação sejam imensos.

    Além disso, a pecuária sozinha representa nada menos que 18% de todas as emissões mundiais de gases de efeito estufa, segundo estudo minucioso da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) (15). Isso representa, na verdade, mais do que todas as emissões do setor de transporte. Na verdade é possível que, apesar de imenso, o cálculo da FAO esteja subestimado. É o que procuram mostrar dois especialistas do Worldwatch Institute. Eles argumentam que a FAO não incluiu em seus cálculos os efeitos sobre o clima da respiração dos animais, que sozinha representa nada menos que 21% das emissões mundiais: os 18% pulariam, só por aí, para 39% dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera (20). Não é o caso de expor aqui todos os detalhes técnicos dessa discussão, mas só de lembrar que talvez o consumo de carnes represente bem mais que os já imensos 18% computados pela FAO.

    O terceiro problema ligado à produção animal é o imenso desperdício de recursos aos quais ela se associa. Para produzir um quilo de carne de gado estabulado são necessários 9 quilos de produtos vegetais. Um quilo de carne de porco exige mais de quatro quilos de produtos vegetais e para aves a proporção é de quase 2 para um. Os progressos na produtividade nos últimos anos foram imensos, com a melhoria nas raças e no manejo dos animais (15). Mas mesmo assim, generalizar para o conjunto da humanidade o padrão norte-americano de ingestão de carne (120 quilos por ano) ou mesmo o da média dos países desenvolvidos (mais de 80 quilos por ano) consumiria uma tal quantidade de produtos vegetais que conduziria inevitavelmente a um colapso na oferta de alimentos. Além disso, é sempre bom ter em mente que os 30% da superfície terrestre dedicados à pecuária eram ocupados, originalmente, por rica biodiversidade. Claro que a exploração humana dessas paisagens exige sempre algum nível de alteração de seus ecossistemas. O problema é que a pecuária, é a mais importante responsável direta pela degradação da biodivesidade no planeta. Dos 35 ambientes mais importantes do mundo em riqueza biológica, nada menos que 23 estão ameaçados pela pecuária, segundo a FAO (15). E o problema não está apenas na produção de carnes vindas de animais terrestres: de cada dez atuns, tubarões ou outros grandes peixes predadores que habitavam os oceanos na primeira metade do século XX, hoje há apenas um. A situação é tão extrema que pesquisadores do Fisheries Centre da Universidade de British Columbia (Canadá) não hesitam em falar de "guerra de extermínio", ao caracterizarem as atividades pesqueiras atuais (21).

     

     

    CONCLUSÕES Duas conclusões importantes emergem desse quadro. A primeira refere-se ao próprio crescimento populacional. Seria muito mais fácil lidar com os limites que a resiliência dos ecossistemas impõem às sociedades humanas caso o horizonte demográfico não fosse de expansão tão intensa como se prevê hoje. Essa ideia costuma suscitar aversão pelo fato de evocar a lembrança de tentativas autoritárias e ineficientes de controle populacional, aplicadas em diversos países em desenvolvimento e no sul da Ásia em particular. O que hoje se sabe a respeito da transição demográfica é que a menor mortalidade de bebês e crianças pequenas é um dos determinantes decisivos da redução de fertilidade. A isso se acrescenta a educação das meninas e, de maneira geral, o aumento do poder de decisão das mulheres com relação a seu próprio corpo. O acesso à educação, aos serviços de saúde e a métodos modernos de contracepção auxilia a que a maternidade seja uma opção e não uma fatalidade ou, pior, o resultado de decisões que não são das próprias mulheres. Reduzir as taxas de fertilidade, sobretudo na África ao sul do Sahara onde elas ainda são altíssimas e quase sempre acima de 6 filhos por mulher, é um grande desafio das sociedades contemporâneas. Isso pode ser alcançado como resultado do próprio processo de desenvolvimento, ou seja, com a ampliação das possibilidades de escolha dos indivíduos sobre o rumo de suas vidas. No entanto, como mostra o professor Jeffrey Sachs "o apoio financeiro dos Estados Unidos aos serviços de planejamento familiar em países de baixa renda foi tolhido nos últimos 25 anos pela direita religiosa americana, que criou obstáculos para o financiamento de serviços de planejamento, cortou o apoio ao Fundo de População da ONU e instituiu a chamada regra de proibição contra quaisquer organizações que tivessem recebido recursos de qualquer outra fonte para o aborto legal ou para aconselhamento sobre a opção do aborto (mesmo onde ele é legalizado)" (22). Investir em educação, melhorar a qualidade de vida, ampliar as liberdades dos indivíduos e o acesso aos serviços de saúde são os principais meios de se evitar a persistência do crescimento demográfico.

    A segunda conclusão que os dados aqui apresentados trazem refere-se aos movimentos sociais capazes de evitar a catástrofe representada pelo horizonte de generalização dos padrões de consumo norte-americano para o mundo todo, com a elevação da renda dos mais pobres. Um trabalho da consultoria Goldman & Sachs mostra que, entre 1998 e 2008, a quantidade de indivíduos vivendo com o corresponde a menos de US$ 2,75 por dia cai de 30% a 17% da população mundial. Em 2030, (ou seja, em apenas 20 anos) metade da população mundial terá uma renda entre US$ 6 mil e US$ 30 mil, muito mais que os 29% que estão nessa faixa de renda hoje. O que se pode chamar de classe média e que no início dos anos 1990 referia-se a 1% da população chinesa chega hoje a 35% (23). Claro que isso é muito positivo. Mas se essa população emergente adotar os padrões de consumo (alimentar e não alimentar) existentes nos Estados Unidos será impossível preencher as necessidades de todos, mesmo com um extraordinário progresso técnico. E, portanto, se nos Estados Unidos e, de maneira geral, entre as populações mais ricas do mundo os padrões de consumo não se alterarem, não há como compatibilizar os ganhos recentes na renda dos pobres com a manutenção dos serviços básicos que os ecossistemas prestam às sociedades humanas.

    O último relatório do Worldwatch Institute (24) procura colocar o dedo nessa ferida ao estudar as bases culturais subjacentes aos padrões de consumo dominantes na atualidade. Uma das principais conclusões desse trabalho é que essas bases culturais não são imutáveis. Assim como a indústria agroalimentar mobiliza uma extraordinária máquina de poder e propaganda para difundir estilos de vida e formas de consumo insustentáveis e cada vez menos capazes de propiciar verdadeiramente bem-estar para os indivíduos, inúmeros movimentos sociais contemporâneos organizam-se em torno justamente da importância de se transformar a sociedade a partir de alterações nos padrões e no próprio sentido que o consumo representa na vida dos indivíduos. No Brasil, o Instituto Akatu de consumo consciente e o Instituto de Defesa do Consumidor são apenas dois, entre vários exemplos nessa direção. Além disso, cresce muito rapidamente a pressão social sobre as próprias empresas para que melhorem seus métodos produtivos e, sobretudo, adotem parâmetros que tornem visíveis para o conjunto da sociedade os impactos socioambientais do que fazem. A formação, nos últimos cinco anos, de mesas redondas com a participação de atores sociais diversos, discutindo biocombustíveis, soja, pecuária de corte, madeira, algodão, cacau, óleo de dendê aponta para uma tendência importante que é a de a organização dos processos produtivos se submeterem a exigências sociais cada vez mais estritas. Da mesma forma, no que se refere ao consumo alimentar, movimentos como o que nasceu na Itália e se difundiu por todo o mundo, o Slow Food, são importantes manifestações concretas de que é possível mudar os padrões alimentares, hoje dominantes, e que satisfazer as necessidades humanas pode ser alcançado sem que se perpetue a degradação da biodiversidade em que hoje a produção material se apoia.

     

    Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq, coordenador do Projeto Temático sobre Impactos Socioeconômicos das Mudanças Climáticas na Fapesp e do Núcleo de Economia Socioambiental da USP. Homepages: www.abramovay.pro.br e www.nesa.org.br.

     

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