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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.3 São Paulo July 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000300011 

     

    Situação e perspectivas sobre as águas do cerrado

    Jorge Enoch Furquim Werneck Lima

     

    O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro em extensão, com cerca de 204 milhões de hectares, ocupando aproximadamente 24% do território nacional. Sua maior parte está localizada no Planalto Central Brasileiro que, conforme sua denominação, compreende regiões de elevadas altitudes, na porção central do país. Assim, o espaço geográfico ocupado pelo bioma Cerrado desempenha papel fundamental no processo de distribuição dos recursos hídricos pelo país, constituindo-se o local de origem das grandes regiões hidrográficas brasileiras e do continente sul-americano, fenômeno apelidado de "efeito guarda-chuva".

    Como observado na figura 1, as águas do Cerrado vertem para oito das doze regiões hidrográficas brasileiras. Em termos da produção hídrica superficial em nível global, para as regiões Amazônica e Atlântico Norte Ocidental, o Cerrado pouco contribui para a vazão gerada, 3,8% e 8,6%, respectivamente. No caso da região Atlântico Leste, essa contribuição já é maior, representando 21% da vazão que é lançada no oceano. Na região do Paraná, o Cerrado responde por quase 50% da vazão total gerada em território brasileiro, enquanto na região Tocantins-Araguaia essa contribuição atinge mais de 60%. Ainda mais relevantes que esses últimos dados são os resultados obtidos para as regiões do São Francisco, Parnaíba e Paraguai, em que o Cerrado é responsável, respectivamente, por aproximadamente 94%, 105% e 135% da vazão gerada nessas regiões, o que implica numa forte dependência hidrológica dessas áreas em relação a esse bioma (1). Destaca-se que os valores superiores a 100% são indicativos de que o restante da bacia tem um balanço hídrico deficitário em relação à geração de vazão. Nos casos das regiões do São Francisco e do Parnaíba, isso decorre da baixa produção hídrica, por vezes negativa, de áreas semi-áridas. Já em relação à bacia do rio Paraguai, a exposição das águas na superfície das áreas do Pantanal faz com que o volume de água evaporada seja muito grande, o que torna o balanço hídrico negativo. Isso significa que passa mais água do Cerrado para o Pantanal do que este último fornece ao rio Paraguai.

    Os dados apresentados corroboram os ditos de que o Cerrado é "o pai das águas do Brasil", "o berço das águas do Brasil" ou a "grande caixa d'água do Brasil". Assim sendo, os recursos hídricos do Cerrado possuem uma importância que extrapola em muito as dimensões do bioma. Considerando apenas questões como as de abastecimento, indústria, irrigação, navegação, recreação e turismo, já poderiam ser gerados diversos índices e números que mostram o quanto as águas do Cerrado representam para o Brasil. Somando-se a isso, destaca-se o fato de a matriz de geração de energia elétrica brasileira ser basicamente de origem hídrica (mais de 80%), com forte participação de bacias que possuem suas nascentes nesse bioma, como as bacias do Paraná, do São Francisco e do Tocantins, reforçando o caráter estratégico da região para o desenvolvimento do país.

     

     

    A produção hídrica nas diferentes áreas do Cerrado apresenta grande variabilidade (1), o que, de certa forma, reflete a distribuição espacial das chuvas no Cerrado (2). Essa distribuição segue a lógica do clima dos biomas que circundam a área contínua do Cerrado, ou seja, mais próximo da Amazônia, chove mais, enquanto mais próximo da Caatinga, chove menos.

    Outro fato importante sobre as chuvas no Cerrado é a forte sazonalidade observada em sua distribuição temporal, com um período chuvoso concentrado de setembro/outubro até abril/março do ano seguinte, e um período seco no restante do ano, onde praticamente não chove. Além disso, na época chuvosa ainda podem ocorrer veranicos de intensidades variadas. Essas deficiências hídricas tornam a irrigação uma prática importante para garantir a estabilidade da produção agrícola na região, o que tem relação direta com a necessidade de gestão dos recursos hídricos.

    Dentre todos os usos, a prática da agricultura irrigada é aquela que mais demanda recursos hídricos em termos quantitativos. Dependendo da cultura plantada, do clima, do solo, do sistema de cultivo e do manejo da irrigação, consome-se, normalmente, de 3.000 a 15.000 m3.ha-1.ano-1, ou seja, cerca de 300 a 1.500 mm.ha-1.ano-1, dependendo da necessidade de suplementação hídrica anual. Assim, a produtividade média da água para a produção de grãos está entre 0,2 e 1,5 kg.m-3.

    No Brasil, estima-se (3) que a irrigação responde por 69% do consumo efetivo de recursos hídricos, o abastecimento urbano representa 11%, o uso para a produção animal 11%, o industrial 7% e o abastecimento rural 2%. Assim sendo, aproximadamente 80% da água utilizada no país se destina à produção de alimentos.

    Com menos de 50 anos de uma ocupação mais efetiva, o Cerrado se destaca no cenário agrícola nacional e mundial. Esse bioma já conta com 61 milhões de hectares de pastagens cultivadas, 14 milhões de hectares de culturas anuais e 3,5 milhões de hectares de culturas perenes e florestais (4). Em relação à contribuição do Cerrado para a produção agrícola nacional, tem-se que 60% da soja, 59% do café, 45% do feijão, 44% do milho, 81% do sorgo são produzidos em áreas desse bioma (4). A região ainda responde por 55% da produção nacional de carne bovina. E a expansão agrícola do Cerrado continua. Culturas como a do girassol, a da cevada, a do trigo, a da seringueira e a dos hortifrutigranjeiros, bem como a prática da avicultura, desenvolvem-se rapidamente na região. Além desses cultivos, seguindo a atual tendência mundial de procura por combustíveis renováveis, o plantio de cana-de-açúcar é outra atividade em plena expansão no Cerrado.

    No bojo de todo esse desenvolvimento, guardando-se as devidas proporções, a expansão da agricultura irrigada seguiu seu curso. Estima-se que o Cerrado possua cerca de 10 milhões de hectares aptos à irrigação e que, atualmente, menos de 1 milhão de hectares sejam efetivamente utilizados para esse fim (5). Esse dado indica que, caso as condições de mercado, infraestrutura e financiamentos sejam favoráveis, a prática da irrigação ainda tem grande potencial de expansão nesse bioma. Apesar do potencial de exploração da prática da irrigação ainda estar longe de ser atingido, conflitos pelo uso da água por causa desse uso se multiplicam no bioma em decorrência da ineficiente gestão territorial e dos recursos hídricos, que perdurou por décadas de ocupação do Cerrado, resultando na grande concentração de irrigantes em determinadas regiões, como demonstrado na Figura 2.

    Outro importante fator que potencializa os conflitos pelo uso da água em áreas com a agricultura irrigada mais difundida trata-se da não utilização das técnicas existentes para se efetuar o manejo adequado da irrigação, o que favoreceria a otimização do uso da água e a redução da pressão sobre os recursos hídricos. No caso, pelo monitoramento do clima, da umidade do solo ou do potencial da água nas folhas, é possível determinar o momento de se irrigar e o quanto aplicar de água nas áreas cultivadas.

    Sobre os conflitos pelo uso da água no Cerrado, além daqueles entre irrigantes, destacam-se os que decorrem dos baixos índices relacionados à área de saneamento na região, que deterioram a qualidade das águas dos rios que atravessam ou que recebem os efluentes das cidades. No Cerrado, em geral, conflitos ocorrem de forma localizada, em canais, pequenas bacias e entre vizinhos, e de forma sazonal. Contudo, também há conflitos em escala de grandes bacias, como entre os setores agrícola e elétrico na bacia do rio São Francisco; os setores hidroviário e elétrico, nas bacias dos rios São Francisco, Tocantins/Araguaia e Paraná; os órgãos ambientais e a construção e operação de reservatórios nas grandes bacias; como exemplos. Destaca-se que a solução ou a mitigação de conflitos pelo uso da água, garantindo melhor qualidade ambiental e de vida das pessoas, constitui objetivo principal do Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos.

     

     

    Em relação às águas subterrâneas, estudos mostram que, de uma forma geral, a vazão dos poços na região não permitem a aplicação desses recursos em atividades que precisam de muita água, como é o caso da irrigação de grandes áreas. Contudo, existem exceções, como é o caso do oeste baiano, em que o rendimento dos poços profundos atingem vazões da ordem de 500 m3.h-1, os quais são suficientes, por exemplo, para suprir a demanda hídrica em uma área irrigada superior a 100 ha. No entanto, como essas águas subterrâneas são geralmente de boa qualidade, estas podem e são bastante utilizadas no abastecimento de residências e pequenas comunidades.

    PERSPECTIVAS Com o crescimento da população e, consequentemente, da demanda de água para o seu consumo direto e para a produção de alimentos, bens e serviços, a tendência é que aumente o número de regiões com problemas relativos à escassez e à poluição hídrica. Com o intuito de evitar, minimizar ou solucionar situações dessa natureza, é importante a existência de sistemas eficientes de gestão territorial e dos recursos hídricos, descentralizados e com a participação da sociedade e, fundamentalmente, baseados em dados e informações que subsidiem as decisões e as ações a serem adotadas para o adequado aproveitamento dos recursos ambientais disponíveis nas bacias hidrográficas.

    Diante dos fatos, vários desafios devem ser superados em prol da adequada gestão dos recursos hídricos no Cerrado, dentre os quais: a compatibilização das leis estaduais de recursos hídricos; a compatibilização e o avanço dos sistemas estaduais de gestão dos recursos hídricos; a estruturação e a consolidação dos comitês de bacia (colegiados que preconizam a participação da sociedade local nas ações e decisões relacionadas aos recursos hídricos); a ampliação de investimentos na área de saneamento (abastecimento de água e tratamento de esgoto); a implantação de redes de monitoramento hidrológico adequadas às necessidades locais; a criação de mecanismos de incentivo ao uso de práticas poupadoras de água (práticas conservacionistas, redução de perdas em sistemas de abastecimento, reuso da água, hidrometração individualizada, manejo da irrigação e outras); a evolução no conhecimento sobre a forma de ocorrência dos processos hidrológicos em áreas de Cerrado e dos impactos das ações antrópicas sobre os recursos hídricos (monitoramento, modelagem hidrológica e regionalização de dados).

    Em termos institucionais e legais, o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos vem sendo estruturado, principalmente, com o apoio e as ações da Agência Nacional de Águas – ANA, criada no ano 2000. Contudo, em muitos estados, os órgãos ambientais e de gestão dos recursos hídricos devem ser melhor estruturados, pois a implementação dos instrumentos de gestão demandam grande esforço, que, em geral, só é realizado com a efetiva participação do Estado, inclusive, no papel de motivador e articulador para a sensibilização e a atuação da sociedade.

    Em relação aos problemas advindos do desenvolvimento urbano desordenado e sem os devidos cuidados quanto à preservação dos recursos hídricos, destaca-se a necessidade de planejamento do uso e ocupação do solo, bem como de recursos, humanos e financeiros para a sua implementação e a fiscalização de seu cumprimento. Entretanto, é importante ressaltar o grande passivo existente, principalmente no que se refere à área de saneamento.

    No caso das áreas agrícolas, da mesma forma, também é fundamental que o estabelecimento de novas áreas irrigadas considere a capacidade de suporte das bacias hidrográficas. O adequado manejo de irrigação, tanto em novas áreas quanto em áreas de conflito já existentes, é outra medida que deve ser incentivada. As técnicas e tecnologias de manejo de irrigação já são, há muito, conhecidas, porém, pouco utilizadas. Em um futuro próximo, espera-se que a cobrança pelo uso da água, que aos poucos vem sendo implantada no território nacional, cumpra seu papel de motivador do uso racional da água por todos, o que inclui os produtores rurais.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS De uma forma geral, a situação dos recursos hídricos do Cerrado pode ser classificada como boa, contudo, principalmente no entorno de cidades e em áreas de grande ocupação agrícola, conflitos pelo uso da água já se fazem presentes. O uso adequado dos recursos hídricos do Cerrado, conforme apresentado, é fundamental, não apenas para a população e o meio ambiente da região, mas para grande parte do país, em termos sociais, econômicos e ambientais, uma vez que o bioma ocupa a parte mais alta de suas grandes regiões hidrográficas. Muitos desafios ainda devem ser superados para o atendimento das condições necessárias para a adequada gestão dos recursos hídricos do Cerrado, o que tem sido uma preocupação frequente de toda a sociedade brasileira.

     

    Jorge Enoch Furquim Werneck Lima é pesquisador da Embrapa Cerrados e atua na área de hidrologia. Tem mais de cem trabalhos publicados. Entre seus interesses encontram-se estudos hidrológicos, hidrossedimentológicos, gestão dos recursos hídricos, modelagem matemática, irrigação, geoprocessamento, qualidade da água, física de solos e outros. Email: jorge@cpac.embrapa.br.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Lima, J.E.F.W.; Silva, E.M. "Estimativa da contribuição hídrica superficial do Cerrado para as grandes regiões hidrográficas brasileiras". In: Anais do XVII Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, 2007, São Paulo: ABRH, 2007.

    2. Assad, E.D.; Evangelista, B.A. In: Assad, E.D. (Ed.) "Análise frequencial da precipitação pluviométrica". In: Assad, E.D. Chuva nos Cerrados: análise e espacialização. Brasília: Embrapa-SPI. p. 25-42, 1994.

    3. ANA. "Disponibilidade e demandas de recursos hídricos no Brasil. Estudo Técnico". Caderno de Recursos Hídricos. Agência Nacional de Águas. 123 p. 2005.

    4. Embrapa — Assessoria de Comunicação Social. "Cerrado brasileiro é exemplo de produção agrícola tropical". Jornal da Ciência, n.301, 19 de julho de 2006. Disponível em: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=39256. Acesso em: 21 mai 2007

    5. Christofidis, D. "Oportunidades de irrigação no Cerrado: recursos hídricos dos cerrados e seu potencial de utilização na irrigação". Revista Item: Irrigação e Tecnologia Moderna. Brasília: ABID, n.69/70. p. 87-97, 2006.

    6. Lima, J.E.F.W.; Sano, E.E.; Silva, E.M.; Lopes, T.S.S. "Levantamento da área irrigada por pivô-central no Cerrado por meio de imagens de satélite: uma contribuição para a gestão dos recursos hídricos". In: Anais do XVII Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, 2007, São Paulo: ABRH, 2007