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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.63 no.3 São Paulo July 2011
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000300016
A identidade cultural do Goiano
Nasr Fayad Chaul
Compreender a identidade do goiano, esse ser do Cerrado, é uma forma de pensar melhor a ideia de um Brasil Central ou de uma identidade de Centro-Oeste, unido, quem sabe, pela complexidade do sertão, pela possibilidade do Cerrado, ambiental e culturalmente falando.
O que é ser goiano? Que bicho é esse com o qual agora começam a se preocupar os estudos brasileiros em geral, desde o crescimento econômico até a novela Araguaia? Como se denominaria esse matuto macunaímico que vive entre o sertão de Guimarães Rosa e as veredas de Carmo Bernardes? Esse ET transformista, misto de agrário e urbano, roça e cidade, curral e concreto? Nós de Goiás, que por tanto tempo vivemos à sombra da história definida pelo centro-sul do país, quem somos, ou melhor, o que nos tornamos? É possível se pensar a mineiridade através de uma construção ideologicamente traçada, como bem demonstram alguns estudos sobre o tema, bem como por meio de uma cultura política marcada e referendada pelo aval nacional. É possível detectar a nordestinidade através da redoma do cerco e da cerca em torno da miséria local e de muitas, muitas lutas no campo. É mais que possível entender a hegemonia do centro-sul por sua preponderância econômica e política no cenário nacional, determinando um poder aceito e absorvido pelo país afora. Mas e a goianidade? Esse é um dos pontos que teremos que discutir para chegar a um entendimento do que possa vir a ser a identidade cultural do goiano.
Goiás se parece muito com Minas Gerais, temos a mesma ausência do mar, o mesmo luar do sertão, montanhas e minérios e achamos as coisas um "trem-bão" em cada coisa "boa demais da conta". Mas o ouro nos legou heranças provinciais distintas. Portanto, para falar de Goiás é fundamental notar que temos particularidades históricas que não nos deixa ser um mero reflexo das transformações ocorridas em nível nacional. Nem por isso somos assim tão distintos. Para se compreender esse processo de construção da identidade goiana é necessário retroceder pelos caminhos dos viajantes europeus que passaram por Goiás no século XIX e deixaram uma imagem que não explica a goianidade que aqui se pretende discutir, mas consegue deixar clara a ideia de goianice, termo pejorativo com o qual se vislumbrou Goiás e sua gente. "Do lado de cima tem o Tocantins, do lado direito as Minas Gerais, um pedacinho da Bahia, e nada demais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso sem Sul...". Qual o sentido para nós de Goiás o espaço Brasil Central ?
Histórica e culturalmente foi nos impingido uma herança e uma memória, como se tivéssemos nascido de fato em 1722, e ficamos sem pai nem mãe. Esse buraco negro de nosso passado pré-aurífero é apenas lembrado, tangenciado pela produção acadêmica, relegado ao rol do desinteresse. Tudo começa com o ouro. Pior: tudo acaba também com o ouro.
Em Goiás, caminhando pelos relatos dos viajantes, cronistas, governadores e historiadores, a distância de cada olhar se torna maior que o caminho das interpretações. As picadas e trilhas formaram, ao longo do processo histórico, um mapa quase invisível de latitudes interiores, por onde Bartolomeu Bueno, o filho, procurou-se guiar e os historiadores de toda cepa procuraram nos remeter, dando nos rótulos, estigmas e heranças imerecidas de como deveríamos ser ao olhar do outro.
Com o esgotamento do ciclo aurífero, criou-se um estigma de decadência que passou a permear todas as análises que foram feitas sobre a história de Goiás. Hoje, peneiradas na bateia do tempo, temos o duro cascalho da história, mesclado com as pedras no meio do caminho da interpretação, e uma herança mineratória, registrada sob o signo atávico do ócio, do atraso, do isolamento. Os viajantes que passaram por Goiás com seus olhos embotados de realidades europeias conseguiram vislumbrar um aspecto comum: a decadência da capitania.
Esse estigma de terra do "atraso", da "decadência", do marasmo e do ócio, serviu para se identificar o goiano e criar o que chamaríamos de goianice por vários séculos, até que outra construção e outro estigma o substituísse, baseado na ideia de modernização em forma de progresso apregoada após o movimento de 1930. Através do viés do progresso os arautos de 30 procuraram reconstruir a imagem de Goiás e imprimir uma face mais contemporânea ao estado, o que poderia ser visto como a tentativa de inserir a região na construção da nação.
Assim, a título de representação, a "goianice" nos remete à época em que a ideia de "decadência" serviu para rotular o contexto da história de Goiás após a crise da mineração, enquanto que o que chamamos de "goianidade" nos indica a construção da ideia de modernização através de uma de suas representações, o progresso, fruto dos projetos político-econômicos do pós-30 em Goiás. A "goianidade" abrange uma época em que se procura mesclar o "velho" e o "novo", fundir o "antigo" e o "moderno", envolver o rural e o urbano e confluir o "atraso" e o "progresso" pelos caminhos da história.
Culturalmente, porém, somos fruto de uma mestiçagem maravilhosa, resultado dos elementos que nos compuseram e nos legaram um potencial fantástico de traços culturais entre o índio nativo, o negro africano e o branco europeu, traços estes que podem ser encontrados da literatura às artes plásticas, passando pela música e pela dança. Somos o arquétipo do desejo da realização, a vida comunitária dos índios que os hippies tentaram um dia adotar, somos a secular batucada e ritos africanos, onde os Kalunga nos guardam desde tempos imemoriais. Somos a modinha lusitana nos saraus de Vila Boa, o traço europeu nas óperas dos barracões de Meya Ponte, hoje Pirenópolis, somos ainda a herança espanhola ou portuguesa das cavalhadas, a viga mestra do cristianismo na procissão do fogaréu na Cidade de Goiás e somos mais ainda nós, os goianos, os homens pardos de que nos falou Luiz Palacin, na catira, nas folias de reis e do divino ou na dança do congado de Catalão.
Aprendemos a ser musicais, afromusicais, euromusicais, pardo musicais. Bandas como a Corporação 13 de Maio de Corumbá de Goiás ou a centenária Banda Phoenix de Pirenópolis reproduzem nossa melhor herança musical dos séculos XVIII e XIX. As mãos autodidatas de Veiga Valle teceram arte em santos barrocos de Meya Ponte a Vila Boa. Hugo de Carvalho Ramos traduziu a sociedade agrária goiana com engenho e arte entre tropas e boiadas que foram depois conduzidas por Bernardo Elis, Carmo Bernardes e José J. Veiga que lhe deram sobrevida, pela vida que cedo lhe faltou. Cora nos deu poemas que transformaram a casa velha da ponte em um símbolo capaz de representar uma cidade patrimônio mundial. D. J. Oliveira, Siron, Cléber, Ana Maria Pacheco, Poteiro, Roos, dentre tantos nos traduzem para o mundo, mas foram buscar suas raízes em Confaloni e este nos índios.
Somos tanto frutos culturais de nosso processo histórico que o samba não se fixou tanto na cultura local e talvez encontre eco na afirmação de Palacin de que o fim da escravidão quase não alterou em nada nossa economia, pois tínhamos pouco mais de 4 mil escravos por todo o antigo território goiano. Companhias de dança como a Quasar são capazes de atravessar mundos e falar a mesma linguagem de outros povos no sentido contemporâneo da dança. São capazes de traduzir nossa realidade de capital extremamente moderna em art déco dos anos 40 do século passado, cravada em pleno interior que era Campinas, daí o fruto da capital mesclada ao interior, do urbano com o rural, do sertão e do litoral, do campo e da cidade.
Assim, será a partir da rediscussão das ideias de "decadência" e de "atraso" que vislumbraremos a construção da ideia de modernização enquanto progresso, buscando a identidade goiana, a goianidade, que permeou toda a história de Goiás após o movimento de 30. Após 1930, era necessário inserir a região na nação. O resgate que os grupos dominantes do pós-30 fizeram das ideias acima expostas e o uso político-ideológico dessas mesmas ideias na construção da imagem de "um novo tempo", de um "novo Goiás que emergia", de um "estado novo" que solucionaria os problemas gerais do passado, de uma "nova capital" em consonância com os interesses dos grupos políticos em ascensão, puderam traçar o perfil da goianidade que iria se transfigurar na brasilidade apregoada no período.
Compreendendo historicamente nossa goianidade estaremos entendendo melhor o sentido cultural do sertão, do cerrado goiano, da ideia síntese que nos deu Vila Boa de como se manter quase intacta para ser moderna, como se preservar para ser eterna, como sendo tão antiga ficou maior que seu algoz, Goiânia. Por tudo, acredito que alguma nuance cultural pode nos unir em termos de Centro-Oeste ou Brasil Central, permeando por sobre o nosso processo histórico, por sobre a batida de uma viola, uma dança indígena, uma herança arquitetônica, uma forma indivisível de como continuar fazendo parte dos desafios do Brasil Central.
Nasr Fayad Chaul é professor titular da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG), doutor em história social pela USP e ex-presidente da Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira (Agepel).