Services on Demand
Journal
Article
Indicators
Related links
- Cited by Google
- Similars in SciELO
Share
Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.63 no.3 São Paulo July 2011
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000300017
UFCER uma universidade no cerrado e para o cerrado
Manoel Rodrigues Chaves
Um dos mais antigos biomas a se estruturar no continente americano, o Cerrado surgiu em algum momento do período Cretáceo Superior, mas foi no Terciário Médio, há mais ou menos 60 milhões de anos, que ele começou a desenvolver o estoque genético que lhe deu a conformação atual. Segundo maior bioma brasileiro, concentra 1/3 da biodiversidade nacional e 5% da flora e da fauna mundiais. A flora do Cerrado é considerada a mais rica savana do mundo e estima-se que cerca de 4 a 7 mil espécies habitam essa região. A maior parte dos indivíduos conhecidos aparece em apenas um lugar, cuja destruição provocaria a eliminação da própria espécie. Apesar de sua incontestável importância, é nítido o contraste entre o papel decisivo dos cerrados na manutenção dos grandes equilíbrios biogeoquímicos planetários e o valor secundário que lhe é atribuído pelas políticas públicas no Brasil.
A região do Cerrado, considerando o seu aspecto natural, tem uma importância significativa para o equilíbrio de toda a plataforma sul-americana. A água acumulada nos lençóis freáticos do Cerrado do Centro-Oeste abastece nascentes que dão origem a seis, das oito maiores bacias hidrográficas brasileiras. Essa abundância hídrica, além de ser importante para a vegetação, permite o intercâmbio de sementes, pólen e mesmo a dispersão da fauna através das matas de galeria que acompanham córregos e rios, possibilitando que indivíduos do Cerrado se acasalem com representantes da Amazônia, da Mata Atlântica e da Caatinga, o que contribui para aumentar a variabilidade genética das espécies.
As pesquisas sobre o Cerrado, ao longo das últimas décadas, tiveram o caráter de viabilização das políticas externas e internas, gestadas em escala mundial no pós-guerra e ligadas às investidas para o Centro-Oeste brasileiro. Os estudos sobre a viabilidade técnica e potencialidades econômicas do Cerrado antecederam às pesquisas que pudessem garantir uma exploração mais ordenada e que respeitasse o enorme potencial da sua biodiversidade. Não houve uma preocupação, nesse período, em traçar um perfil das consequências ambientais e socioculturais do processo de avanço indiscriminado sobre os recursos naturais da região. O resultado para as regiões de fronteira agrícola, como é o caso do Cerrado, é que imensas áreas de vegetação nativas são transformadas rapidamente em áreas de produção agropecuária, um êxodo rural sem precedentes, repetindo-se a história do desmatamento da colonização brasileira. Estimadamente, cerca de 50% da cobertura original de Cerrado hoje está convertida em pastos, plantações de soja ou formas degradadas de solos abandonados.
A partir da metade do século XX, a Amazônia e, posteriormente, o Cerrado passam a ser os alvos preferidos pelo sistema de produção capitalista. No caso da região amazônica, a restrição da baixa qualidade dos solos ao lado da pressão em escala internacional para a não continuidade de sua exploração, verificada nas duas últimas décadas, contribuiu para a diminuição da intensidade da degradação ambiental. A região do Cerrado, entretanto, passa a se constituir no novo ciclo econômico e legitima o processo de modernização da agricultura no campo.
O destino do Cerrado a integridade de seus ecossistemas naturais e a continuidade da exploração das superfícies já incorporadas pelo agronegócio, pelo hidronegócio e pelo avanço atual do setor hidroenergético depende de decisões a serem tomadas proximamente no campo das políticas públicas e, sobretudo, por estudos científicos que possam identificar formas sustentáveis de uso e ocupação do território regional.
Deve-se mudar a visão do Cerrado como fronteira agrícola, o que está fundamentado na depreciação cultural, política e econômica não só dos recursos, mas também das capacidades locais que poderiam voltar-se à sua valorização. A riqueza gerada pelo Cerrado será tanto maior quanto mais se capacitem e estimule as populações locais a tomar iniciativas econômicas que associem geração de renda, valorização de produtos regionais e preservação do meio ambiente. O Brasil possui hoje quase mil municípios em regiões de cerrado. Em sua maioria, os poderes públicos municipais tendem a ignorar ou a encarar com ceticismo esse aproveitamento econômico de recursos e conhecimentos locais, e a oferecer todos os estímulos a ações que representem a perspectiva mais visível de geração de renda representada pela eliminação da vegetação nativa e o estabelecimento de unidades especializadas agropecuárias.
Nenhum segmento da sociedade pode, de forma isolada, levar adiante a tarefa de mudar a concepção de um modelo histórico de exploração insustentável social e culturalmente. Essa nova estratégia deve encarar as populações da região do Cerrado como as principais portadoras das iniciativas de valorização da sua biodiversidade. Em vez de encarar o êxodo dessas populações como inerente ao processo de crescimento, uma estratégia consistente de agricultura sustentável vai, ao contrário, procurar dotá-las dos meios para que participem de experiências capazes de associar geração de renda à valorização dos produtos locais, à preservação da biodiversidade e manutenção e resgate de valores culturais.
Há, claramente, a necessidade de mudanças substanciais nas concepções de políticas públicas no Brasil para se lidar a um só tempo com as questões ambientais, econômicas e sociais. O crescimento da economia, calcado em um processo produtivo excludente, não dá conta da complexidade das articulações entre sociedade, cultura e natureza. Por isso, o conceito de sustentabilidade ambiental articulado com a necessária regulamentação das leis de mercado se mostra insuficiente para coroar de êxitos o projeto político liberal de globalizar-se sem comprometer as gerações futuras.
O discurso da sustentabilidade leva a propugnar por um crescimento sustentado sem uma rigorosa justificação sobre a capacidade de o sistema econômico internalizar as condições ecológicas e sociais de equilíbrio, equidade, justiça e democracia. Nesse sentido, a cultura aparece como fundamento de uma nova sustentabilidade social na medida em que ela converte em parte integral das condições gerais da produção, de que a preservação das identidades étnicas e seus valores culturais, assim como a gestão participativa das próprias comunidades em seu ambiente, seja uma condição apara a conservação ecológica da base de recursos para um desenvolvimento sustentável.
POTENCIAL CULTURAL E ECONÔMICO: A INSERÇÃO DA UNIVERSIDADE NO CONTEXTO REGIONAL A ocupação da porção central do Brasil foi marcada pelas compreensões das condições e potencialidades contidas no bioma Cerrado, especificamente as das regiões do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, em Minas Gerais, e o sudeste e sul do estado de Goiás. As primeiras tentativas de ocupação econômica registraram a descoberta das minas de ouro e diamantes, dentre outras pedras preciosas. Por conseguinte, a região tornou-se uma importante rota de passagem entre as províncias de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. Entretanto, nesse processo, diversas características, propriedades e potencialidades contidas no Cerrado, bem como as particularidades dos grupos populacionais que o habitavam, ou que para essa região se deslocavam, ficaram à espera de ser melhor compreendidas.
Destacando apenas a questão econômica, há que se considerar, contudo, que essa região começou a ganhar importância, a partir da expansão da lavoura cafeeira para o estado de São Paulo, nos anos de 1870. Esse estado, sob o modelo de exploração baseado no trabalho escravo e depois no trabalho do imigrante, tornava-se importante propulsor do desenvolvimento das regiões próximas. O início da produção do café no sudeste do país e seu papel essencial na valorização das terras da região provocou o deslocamento da atividade pecuária para o estado de Goiás. Nesse momento, o Triângulo Mineiro e o Alto Paranaíba, em Minas Gerais, o sudeste e sul do estado de Goiás tornaram-se importantes zonas de expansão da produção pecuária extensiva, fornecedora de uma matéria-prima essencial para indústria do café: o couro. Utilizado para a produção de uma diversidade de objetos, como as correias das máquinas de beneficiamento dos produtos agrícolas, o couro era também vendido ao exterior.
O amplo conjunto de fatores que se somaram à dinâmica econômica brasileira, no início e meados dos anos de 1800, dentre outros, promoveram o deslocamento do eixo econômico do país, do Vale do Paraíba, atual divisa de São Paulo com o estado do Rio de Janeiro, para o interior do estado de São Paulo, a partir de Campinas. Enquanto a região do Vale do Paraíba era ainda responsável por uma economia que dava sinais de esgotamento, juntamente com o norte da província do Rio de Janeiro, um grande número de regiões brasileiras tornava-se objeto de intensa análise, sendo chamadas a compor a dinâmica econômica que se seguia. Nesse sentido, a parte do Brasil que compunha expressiva parcela do Cerrado nacional, a partir do sudeste do estado de Goiás, transformara-se em um importante membro da economia da época, sendo a zona de ligação dessa parte do interior do Brasil com o porto de Santos, principal porto do país, responsável pelo escoamento da maior parte do café brasileiro.
Na porção do Brasil marcada pela presença do bioma Cerrado, a gradativa consolidação da atividade da pecuária e a ligação direta da economia da região com as demais zonas da economia brasileira produziram efeitos que atravessaram os séculos. Um desses efeitos foi a execução do plano ferroviário que deveria ligar o sul do Brasil, os portos do Rio de Janeiro e Santos com Goiás e Mato Grosso. Tal ligação consolidaria um projeto de venda de produtos agropecuários ao exterior, assim como facilitaria a recepção de produtos industrializados dos centros europeus e nacionais. A construção da ferrovia avançou rápido dentro do território mineiro e, em 1896, os trilhos chegaram ao município de Araguari, próximo à divisa com Goiás. No entanto, somente em 1911, os trilhos penetraram nesse estado, chegando à cidade de Catalão em 1913.
A dinâmica econômica já estabelecida e os inéditos elos com as demais regiões deixavam claros os novos e mais eficientes canais de comunicação. Singular marco desse quadro é a presença da ferrovia no sudeste de Goiás, que propiciou a imposição de uma dada forma de produzir e exportar, impactando um modo específico de desenvolvimento econômico da região. Dentre muitos exemplos, tem-se que no censo de 1920, o município de Catalão já aparecia como uma das maiores cidades do estado, concentrando no município 7,5% da população goiana. Os municípios de Cristalina, Ipameri, Corumbaíba e Santa Cruz figuravam entre as 20 maiores cidades de Goiás, consolidando uma importante região do estado. Na mesma perspectiva, Uberlândia, Uberaba, Patrocínio, Ituiutaba, Araguari, Sacramento, Estrela do Sul, com suas especificidades, dinamizavam-se, transformando a chamada região do Sertão da Farinha Podre e o que viria a ser o Triângulo Mineiro e o Alto Paranaíba, em Minas Gerais. E, de modo semelhante, a conhecida região do noroeste de São Paulo, com cidades como Ribeirão Preto, Pedregulho, Igarapava, Orlândia, dentre outras, no movimento da onda verde cafeeira, desvelava sua nova feição produtiva.
Fica claro que, no desenrolar histórico da região do Cerrado brasileiro, o crescimento populacional não era o único sinal de desenvolvimento gerado pela nova dinâmica econômica. A chegada da ferrovia e a integração da região sul e sudeste de Goiás aos grandes centros econômicos do país teve impacto nas mudanças das condições de vida da população. Na década de 1930, tem-se uma maior diversificação da exploração do Cerrado e a formação de um parque industrial para a exploração do couro, o que favorece o processo de urbanização da região. Em linhas gerais, nessa região, o Cerrado não era apenas foco da expansão econômica e populacional do Brasil, mas espaço de formação de uma nova população. Sob novas condições de vida, usos dos mananciais, apropriação das características do solo e da maneira de lidar com a fauna e flora, essa população formava um espaço de experiência em que as dinâmicas do local, apesar de submetidas aos grandes centros, produziam uma autonomia para a região, seja nos modos de vida ou mesmo nas condições culturais e sociais. Entretanto, a experiência da população do Cerrado não era compartilhada pelos programas de expansão do estado, os quais procuravam recuperar o elemento da submissão do Cerrado ao processo de expansão das regiões hegemônicas.
Alguns elementos que marcaram a expansão da década de 1920 e 1930 e o processo de diversificação da economia não foram suficientes para fazer frente à nova dinâmica econômica que essa parte do Brasil vivenciaria na década de 1940. O prolongamento dos trilhos até a cidade de Anápolis, a construção de Goiânia e a implementação, pelo governo federal, da Colônia Agrícola Nacional de Goiás, fez deslocar o eixo de desenvolvimento da região Sudeste para o Mato Grosso Goiano. O impacto se fez sentir principalmente na dinâmica populacional, com a nova região transformando-se numa importante zona de atração, o que atingia de modo especial as cidades do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba, em Minas, e as cidades do sudeste e sul do estado de Goiás que haviam exercido o mesmo papel nas décadas anteriores.
Partes de Minas Gerais e de Goiás pagavam o preço de sua diversificação econômica. Ao contrário de outras zonas do estado de Goiás, por exemplo, em que a economia estava assentada na produção agrícola em larga escala, pouco dependente de mão de obra e concentrada na zona rural, as regiões onde se propõe hoje, a implantação da Universidade Federal do Cerrado (UFCer), vivenciaram a formação de um incipiente parque industrial que dependia da consolidação do espaço urbano e da manutenção da região como polo de atração de migrantes, situação que não perdurou após a década de 1940.
A expansão econômica, vivenciada na década de 1930 e a crise dos anos 1940, deixava evidentes os limites do modelo de desenvolvimento assentado somente nos interesses econômicos das zonas hegemônicas do Brasil. A destruição das antigas forças produtivas foi o resultado de um processo de desenvolvimento em que não havia, para o estado, qualquer perspectiva de autonomia ou mesmo de incremento da dinâmica interna das regiões. Tal processo se configurou de forma devastadora para algumas cidades, as quais não recuperaram a força econômica que desfrutaram no período entre 1920 e 1930, e não conseguiram acompanhar as transformações que se consubstanciavam pelos anos de 1940.
O desequilíbrio regional e a perda de parte da força econômica da região, ocasionadas pela crise entre as décadas de 1940 e 1950, demonstraram que grandes surtos de desenvolvimento econômico, impulsionados pela posição geopolítica, pelo uso de partes das potencialidades do bioma Cerrado, de forma quase unicamente extrativista, não são capazes de produzir efeitos duradouros. A geração de um desenvolvimento econômico sustentável e que promova o equilíbrio regional só será possível se forem constituídos elementos indutores da expansão econômica na própria região, agregados a uma preocupação social.
Um novo impulso econômico e social foi vivenciado por essa região na década de 1970. Contudo, ao contrário dos períodos anteriores, este não foi disseminado por toda a região, mas concentrado em cidades polos e formado a partir das peculiaridades de cada uma delas. O município de Catalão estabeleceu-se como uma dessas cidades de referência, graças à produção mineral, com a exploração de jazidas de nióbio e fosfato, entre outras, e com a formação, na década de 1990, de um parque industrial com a instalação da montadora Mitsubishi Motors e da fabricante de tratores e colheitadeiras John Deere.
Por meio dessa dinâmica econômica da década de 1970, o município de Catalão pode assumir uma nova condição na região, que dialoga com as condições e potencialidades de um dos mais importantes biomas do planeta, o Cerrado, o qual se torna um polo de formação industrial, sem ser apenas uma região de ocupação do agronegócio. A condição particular da região a torna um importante espaço indutor de desenvolvimento, não somente para o estado de Goiás, mas para todo o país. De modo particular, a localidade de Catalão, em conjunto com Ouvidor, concentra uma das principais jazidas de nióbio do mundo, tendo recentemente sido implantado o processo de verticalização da produção, que garante o processamento do produto mineral na própria região. Nessa direção, a formação de uma nova modalidade de parque industrial, também aponta para grandes desafios e possibilidades de desenvolvimento para a região central do Brasil, não só com a geração de empregos, mas com a formação de todo um polo subsidiário à indústria, como o setor de logística e transporte já montados na região.
A potencialidade econômica da região central do Brasil, que mais uma vez desponta no início do século XXI, não pode ficar restrita a índices e ondas de investimentos predatórios (ou não) assentados apenas na histórica extração de elementos do bioma Cerrado. A região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, e o sudeste e sul de Goiás precisam construir um novo projeto de desenvolvimento que, para além da dependência dos investimentos externos, esteja assentado na construção de uma nova realidade social. Os municípios da região central do Brasil só se aproveitarão desse novo momento se forem capazes de reelaborar sua inserção nacional. É preciso transformar a região em um importante centro de pesquisa e de produção de tecnologias, voltadas para o melhor aproveitamento do seu potencial mineral, bem como do desenvolvimento industrial. Contudo, é preciso voltar uma particular atenção para as condições sociais, garantindo que os investimentos na formação intelectual e cultural sejam prioridades.
Em concomitância com o novo processo de ocupação e desenvolvimento da região central do Brasil, inúmeros elementos dessa trajetória podem e devem ser revistos. A começar pela presença das populações indígenas que sofreram com as entradas dos bandeirantes e sua sanha por metais e riquezas fáceis; em seguida, a presença das populações negras, braços diretos de uma logística de produção brasileira, que não receberam por seus trabalhos; e, por fim, as sucessivas levas de imigrantes europeus, asiáticos, do Oriente Médio, sul-americanos, dentre outros que, à sua maneira, em contextos históricos específicos, protagonizaram, nesse espaço, passagens dignas de nota.
O PROJETO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CERRADO Transformada a partir do campus Catalão, a UFCer terá a tarefa de dar outra visão de sustentabilidade para o bioma Cerrado, onde as diversidades ecológicas e culturais aparecem não só como princípios éticos e como valores não mercantilizáveis, mas como verdadeiros potenciais produtivos que integrem um sistema de recursos naturais, tecnológicos e capazes de reorientar a produção para a satisfação das necessidades básicas das populações locais e regionais. Ainda, contribuirá para o desenvolvimento de um arcabouço de pesquisas teóricas e aplicadas capazes de aglutinar e difundir o conhecimento em todas as áreas, possibilitar a captação de recursos e atrair cientistas e pesquisadores nacionais e internacionais para os grupos de estudos formados na futura instituição.
O projeto de constituição da Universidade Federal do Cerrado (UFCer) é resultado do processo de expansão vivenciado pelo campus Catalão da Universidade Federal de Goiás durante mais de duas décadas de atuação na região. A presença dessa instituição no interior do Brasil e o desenvolvimento das atividades de ensino, pesquisa e extensão, permitiram o contato com a realidade do Cerrado brasileiro, despertando o interesse pelo estudo das condições biogeográficas e populacionais do mesmo. Bioma frágil, o Cerrado tem sido visto, nos últimos 30 anos, como o grande celeiro do Brasil, por sua capacidade de responder de forma positiva às demandas pela expansão no fornecimento de produtos alimentícios e outros produtos capazes de impulsionar o desenvolvimento industrial brasileiro.
A partir de várias pesquisas realizadas no campus Catalão, e por meio da experiência educativa desenvolvida nesse espaço, foi possível constatar que a ocupação do Cerrado, valendo-se até o presente momento de um projeto de cunho eminentemente econômico, gerou resultados desastrosos no campo socioambiental. Desse modo, tal modelo de desenvolvimento, baseado na geração de empregos com baixos salários a serem ocupados pela população local, aliada à importação de mão de obra especializada de outras regiões, apresenta consequências nem sempre positivas.
O incentivo à migração de jovens sem o atendimento público das demandas por ensino, a instalação de projetos agropecuários sem a preocupação com a preservação ambiental e mesmo a constituição de um modelo agropecuário pautado no latifúndio, com poucos espaços para preservação da experiência local de sobrevivência cobram atualmente seu preço: cidades que crescem sem planejamento, jovens submetidos a situações de risco e o esgotamento do bioma, com reflexos sobre as condições das águas e do solo.
O contexto de crise social e ambiental constatado pelos educadores do campus Catalão foi o que impulsionou a elaboração da proposta de criação da Universidade Federal do Cerrado. Desse modo, essa nova instituição apresenta uma proposta temática, para servir de referência, para o Brasil e o mundo, como espaço de pesquisa, ensino e extensão voltado para o debate sobre o Cerrado, bioma que ocupa grande extensão territorial do país e exerce um papel fundamental no seu desenvolvimento econômico. Assim, as várias páginas do projeto expressam as dinâmicas complexas da ocupação do Cerrado, bem como uma proposta de revigorar tal processo.
O campus Catalão, baseado na sua experiência e na constatação de que os projetos diversificados de ocupação dessa parte do Brasil produziram resultados específicos, fez a opção por apresentar o projeto de uma instituição multicampi. Foram escolhidas duas cidades para receber esses campi: uma delas, Luziânia, localiza-se na região do entorno do Brasília, atualmente vista como importante espaço para expansão econômica no país, com relevante presença de jovens em idade escolar, grande poder de atração populacional e forte demanda por políticas públicas de educação, saúde e segurança. A outra cidade escolhida foi Caldas Novas, região do Cerrado que cresce por meio do aproveitamento do potencial turístico de suas águas hidrotermais, caracterizando um tipo de turismo que explora o potencial e as reservas de água desse bioma.
As cidades de implantação dos campi, em conjunto com Catalão, cujo desenvolvimento é caracterizado pela expansão da indústria e da exploração mineral, representam as principais possibilidades de expansão atualmente pensadas para o Cerrado. A constituição de uma instituição, que em um período de 10 anos oferecerá 28 novos cursos, significará uma nova opção para a ocupação do Cerrado, voltada não somente para seus resultados econômicos, mas preocupada com sua sustentabilidade social e ambiental. A criação dessa nova instituição poderá ser uma resposta da sociedade atual às opções feitas no passado, apresentando a possibilidade de se escolher um caminho em que a ocupação econômica do Cerrado seja baseada em estudos, reflexões e respeito aos povos que vivem no bioma. Contudo, isto apenas poderá ser levado a efeito se tivermos uma universidade pública preocupada principalmente com as diversidades desse rico bioma brasileiro.
A proposta de criação da UFCer apresenta-se em quatro fases: a primeira fase é caracterizada pela consolidação da instituição na cidade de Catalão; a segunda pela constituição dos campi de Luziânia e Caldas Novas; a terceira e quarta fases caracterizam-se pela criação dos cursos que delinearão o formato final da nova instituição. A opção pela estruturação em fases se deve à preocupação de garantir as condições para a expansão da instituição, sem que se perca a qualidade dos processos educativos e de pesquisa em andamento. A Universidade Federal do Cerrado será a resposta direta, do Brasil ao mundo, de que estamos preparados para o novo papel que o país ocupa internacionalmente: o de apontar caminhos para o desenvolvimento, sem perder de vista a preocupação com seus resultados sociais e ambientais.
É considerando tais objetivos e frente a esta análise, que propomos a criação da Universidade Federal do Cerrado. Uma nova universidade no estado de Goiás, a qual desempenhará um papel indispensável na vida social do Cerrado brasileiro, discutindo sua ocupação com melhor qualidade, preservando sua diversidade e potencialidade. A UFCer pretende tornar-se um polo de estudos do bioma Cerrado e de sua ocupação. Em sintonia com os múltiplos saberes e conhecimentos silenciados e negligenciados ao longo da história, pretende-se produzir uma nova reflexão cultural, intelectual e econômica em que o Cerrado seja observado em sua especificidade e possibilidades.
Manoel Rodrigues Chaves é professor de graduação e do Programa de Mestrado em Geografia do campus Catalão/UFG, é líder do Gedap Grupo de Estudos e Pesquisas em Dinâmica dos Ambientes, Planejamento e Gestão Ambiental. Atualmente é diretor geral do campus Catalão/UFG. Email:manoelufg@gmail.com.