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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo Apr./June 2012
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200022
SEMANA DE ARTE MODERNA
O mito de origem do modernismo brasileiro faz 90 anos
O que define a brasilidade? Recentemente, a valorização do país enquanto economia emergente vem promovendo um retorno a essa pergunta. A presença do Brasil na mídia internacional traz sempre questionamentos a respeito da imagem do país lá fora. O ano de 2012 marca os 90 anos da Semana de Arte Moderna quando, há um século atrás, um Brasil, saído da escravidão e da monarquia, inicia seu processo de modernização, que caminha pari passu com a invenção de novas linguagens estéticas e com a criação de uma identidade brasileira. A efeméride motiva uma nova reflexão para problematizar a invenção de uma singularidade brasileira e se o movimento foi, de fato, uma ruptura com o passado.
"Os modernistas entendem que o modernismo produz a mais autêntica e amadurecida vertente cultural no país. Eles partem do pressuposto de que a cultura brasileira e, no limite, o próprio Brasil, tenha brotado de si próprio. O Brasil, na lente modernista, nasce de si mesmo", afirma a socióloga Ana Lúcia de Freitas Teixeira, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ao pesquisar a emergência do modernismo brasileiro na virada do século XIX para o XX cujo mito de origem seria justamente a Semana de 1922.
A sociológa destaca que essa criação do movimento modernista como uma ruptura com o passado tende a ser tomada como algo dado nas interpretações canônicas sobre o movimento. O rompimento entre o modernismo brasileiro e o modernismo português, por exemplo, é silenciado, sem se levar em consideração o jogo de espelhos que se estabelece entre os dois países: a antiga colônia quer se livrar de Portugal e, para tanto, inventa uma imagem da antiga metrópole enquanto país arcaico e atrasado, ignorando de forma deliberada Portugal. "Os modernistas brasileiros se interessam por afirmar o rompimento com uma ex- metrópole que é, ela mesma, periférica em relação ao centro irradiador de cultura, naquele momento, que é a França. Os raros momentos em que afirmamos a insignificância de Portugal, naquele momento, serve a um só tempo para soterrarmos a dimensão de ex-colônia e para nos desvencilharmos de um vínculo que nos 'contaminaria' de sua aura de atraso", diz a socióloga, que analisou cuidadosamente essa configuração em sua tese de doutorado, intitulada "Modernidades em confronto as literaturas modernistas brasileira e portuguesa" (USP, 2009).
NACIONALISMO PAULISTA No Brasil, o modernismo caminhou simultaneamente com a modernização do próprio país e, especialmente, com a chamada metropolização paulista. "São Paulo se fez, naquele momento, como laboratório da nacionalidade brasileira". Ana Lúcia acrescenta ainda que, para compreender a efervescência desse "laboratório", seria necessário desfazer imagens homogeneizadoras em torno de movimentações importantes na paisagem da cidade, como aquelas relacionadas à diversidade da migração e da presença dos estrangeiros. Havia imigrantes que eram ricos empresários (Francisco "Ciccillo" Matarazzo é o mais emblemático deles), assim como a imigração de grandes fazendeiros vindos do interior para a capital; imigrantes pobres que se mudavam para o interior paulista, para trabalhar nos cafezais, mas que também não deixavam de marcar presença em vários bairros da capital, presença, aliás, percebida pela literatura modernista em Brás, Bexiga e Barrafunda, de Alcântara Machado, publicado em 1927.
Eram tantos grupos e pessoas circulando pela cidade que a metrópole configurava-se, então, enquanto um espaço sem identidade. "Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem europeia, nem nativa; nem era industrial, apesar do número crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; nem era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-lo como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados", escreve o historiador Nicolau Sevcenko em Orpheu extático na metrópole (São Paulo: sociedade e cultura nos frementes anos 20)(2003, p. 30, 31), ao recriar o clima dessa emergente paisagem urbana na virada do século XIX para o XX.
Segundo Ana Lúcia, uma das reinvenções que marca esse processo de urbanização da cidade de São Paulo e que acontece conjuntamente com a constituição do modernismo e suas expressões estéticas é o mito bandeirante, criado para se tentar conferir algum tipo de coesão social a esse caldeirão explosivo descrito por Sevcenko. Mito que apaga o passado recente da escravidão, a relação com Portugal, a apropriação de terras (transformadas em propriedades privadas) e o extermínio das populações indígenas: a figura do colonizador é cindida do português, e o bandeirante torna-se um heroico sertanejo desbravador do "interior" do país, torna-se "paulista".
Constitui- se, então, um nacionalismo a partir do bandeirante e sua "vocação natural" para liderar, vencer obstáculos e adversidades. Expressão dessa imagem bandeirante dos paulistas, o Monumento às Bandeiras, do escultor Victor Brecheret, é um dos marcos do modernismo: encomendada pelo governo estadual, em 1921, foi inaugurada juntamente com o Parque Ibirapuera em 1954, durante o Quarto Centenário de São Paulo.
Entre os modernistas da Semana de 1922, essa valorização da "superioridade paulista" será promovida, principalmente, pelos chamados verde-amarelistas, dentre eles, Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, para os quais São Paulo condensava a identidade brasileira. Mas, a partir desse nacionalismo paulista, é possível notar que os modernistas não configuravam um grupo homogêneo. Havia outras vertentes modernistas que não estavam, inclusive, sequer preocupadas com a questão da nação. "Além do Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro, que estava centrado na questão da América, ainda podemos considerar Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, ambos integrantes do movimento modernista. Um mineiro e um pernambucano, ambos se mudaram num certo momento para o Rio, mantiveram estreitos laços com os modernistas paulistas, sobretudo Mário de Andrade, mas nenhum deles têm a nação como preocupação. E a força do cânone que coloca São Paulo no centro do modernismo se expressa pelo fato de que, frequentemente, a crítica dirá de ambos que não eram 'exatamente modernistas', sobretudo no caso do Bandeira e do Drummond da primeira fase", lembra Ana Lúcia Teixeira.
Antropofagia
"ideal bandeirante"
Tome este automóvel
E vá ver o Jardim New-Garden
Depois volte à Rua da Boa Vista
Compre o seu lote
Registre a escritura
Boa firme e valiosa
E more nesse bairro rom ântico
Equivalente ao c élebre
Bois de Bologne
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Sem juros
O poema acima faz parte do livro Pau Brasil (1925), de Oswald de Andrade, expressão do fino humor desse escritor dirigindo-se com precisão à vida burguesa da elite paulista, à metropolização da cidade, ao empreendedorismo e ao modo como tudo isso se amalgama no nacionalismo paulista, em seu "ideal bandeirante" que, ironizado no poema, faz com que o mito perca sua eficácia. "A grande preocupação de Oswald de Andrade é com a construção de uma cultura brasileira autônoma. Oswald afirma uma originalidade brasileira pela sátira e pela ironia. Através delas, ele revê o modernismo para recalibrá-lo", afirma Ana Lúcia. Ou seja, Oswald compartilha o projeto de construção da nação que marca o modernismo. Mas seu projeto é complexo, passando pela questão da renovação da linguagem não é à toa que sua obra será retomada pelos poetas concretistas a partir dos anos 1950 , por uma reescrita da história e pela criação de uma teoria sobre a singularidade da nação brasileira: a antropofagia.
ZUMBIS ANTROPOFÁGICOS Como pensar, então, o legado do modernismo brasileiro no mundo contemporâneo? Para a psicanalista, curadora e crítica de arte Suely Rolnik, a principal contribuição do modernismo foi valorizar e tornar consciente uma "subjetividade flexível", aberta à incorporação de outros universos culturais, marcada pela experimentação e o improviso, sem manter uma identificação estável e absoluta com qualquer repertório cultural, seja ele europeu ou, mais recentemente, norte- americano. O problema é que essa "flexibilidade brasileira" estaria, pelo menos desde o fim da ditadura militar, sendo apropriada pelo mercado.
Em Geopolítica da cafetinagem (2008), Rolnik analisa como os movimentos de contracultura das décadas de 1960 e 1970 que reativaram o ideário antropofágico vêm sendo reapropriados pelo capitalismo contemporâneo, que tira vantagem da experimentação e da sua força de criação. Bastaria observar a importância que a arte brasileira adquire no mercado internacional, principalmente a partir dos anos 1990.
A clonagem do nosso "know-how antropofágico" também torna os brasileiros campeões mundiais na publicidade e nas telenovelas, e faz deles "zumbis antropofágicos": sua potência de criação vira combustível para o regime capitalista contemporâneo, que se abastece, portanto e principalmente, da "plasticidade" e do "jogo de cintura" dos brasileiros, aptos para viver a flexibilidade do fim dos direitos trabalhistas, da informalidade e precarização do trabalho, por exemplo.
"É essa força, assim cafetinada, que com uma velocidade exponencial vem transformando o planeta num gigantesco mercado, e seus habitantes, em zumbis hiperativos incluídos ou trapos humanos excluídos dois polos entre os quais perfilam os destinos que lhes são acenados, frutos interdependentes de uma mesma lógica", escreve Rolnik. Diante dessa lógica a do chamado capitalismo "cognitivo" ou "cultural" como reativar a potência política da arte e da cultura é a pergunta que fica no ar.
Carolina Cantarino