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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.64 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2012
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000400012
Saara Ocidental: um processo de não-autodeterminacão nacional?
Pascoal Santos Pereira
"Descolonização" é um termo que, na atualidade, não faz parte do alinhamento dos noticiários sobre política internacional. No entanto, isso não significa que esse processo esteja concluído e arquivado no passado, por muito que tenha deixado de merecer a atenção da mídia internacional. O Saara Ocidental é provavelmente um dos últimos territórios em que esse processo ainda não foi concluído, sendo que a indefinição sobre o seu status internacional se arrasta desde 1975. Neste artigo, pretendemos traçar uma breve contextualização histórica e política que nos permita entender a atual situação desse território, qualificada mesmo por alguns autores como a "última colônia da África" (1). Numa primeira parte, faremos um resumo da história da luta do Saara Ocidental pela sua autodeterminação desde 1975, quando a Espanha, a potência colonial, se retirou desse território. Passamos em seguida para uma curta apresentação dos principais atores envolvidos nessa questão e das motivações por detrás dos seus atos. O impasse a que a situação do Saara Ocidental chegou é, em seguida, ilustrado pelas diversas tentativas por parte da comunidade internacional (a ONU, essencialmente) em procurar uma solução definitiva e satisfatória para as partes envolvidas, contudo sem êxito nos últimos 15 anos. Teceremos, por fim, algumas considerações sobre cenários possíveis para a resolução dessa questão.
A ÚLTIMA COLÔNIA AFRICANA O Saara Ocidental é um território costeiro situado no Noroeste do continente africano, delimitado por Marrocos, Argélia e Mauritânia e tradicionalmente habitado por populações nômades que falam variações locais da língua árabe. O número total da população não é consensual, sendo que as projeções variam dentro de um intervalo de 385 mil a 550 mil habitantes (2). Independentemente do valor total, essa população distribui-se por um território com uma área pouco maior que a do Reino Unido ou do estado do Piauí, tornando-o um dos territórios com menor densidade populacional no mundo.
Até 1975, o Saara Ocidental foi um território colonial administrado pela Espanha. Numa altura em que o processo de descolonização se ia generalizando e se tornou irreversível no restante do continente africano, a Espanha foi sendo crescentemente pressionada pela comunidade internacional para que libertasse o Saara Ocidental, o que se materializou em sucessivas resoluções da Assembleia Geral da ONU, a partir de 1965, principalmente por pressão diplomática de Marrocos, Argélia e Mauritânia (3). Simultaneamente, a posicão espanhola passou a ser internamente contestada por um movimento anticolonial de guerrilha saaraui, a Frente Popular para a Libertação de Saguia el-Hamra e Rio de Oro (Polisário), criada em 1973 para combater o ocupante espanhol e que, desde cedo, teve o apoio da Argélia. Face a essas pressões, o Estado espanhol compromete-se finalmente em 1974 a realizar um referendo sobre o status do Saara Ocidental no ano seguinte. O Marrocos, anteriormente favorável à libertação daquela colônia, manifestou-se contra a possibilidade da realização de um referendo, com a esperança de que esse processo de autodeterminação resultasse na integração territorial do Saara Ocidental ao Marrocos (4), e solicita então, conjuntamente com a Mauritânia, uma opinião legal ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), contestando a validade legal de um referendo sobre um território ao qual teriam um direito soberano pré-colonial (5). Não encontrando base legal às pretensões de Marrocos e Mauritânia (6), o TIJ pronuncia-se a favor do exercício de autodeterminação pelos saarauis, o que quase automaticamente provocou a invasão do Saara Ocidental por 25.000 soldados marroquinos em outubro de 1975 (7), logo seguida por uma "Marcha Verde" de 350.000 civis, simbolizando uma "retomada pacífica das províncias do sul" pelo Marrocos, como na altura afirmou o rei Hassan II (8). Quase simultaneamente, e por forte pressão dos EUA, que receavam o surgimento de um regime revolucionário no Saara Ocidental (9), Espanha recua na intenção de realizar o referendo e conclui o Acordo de Madrid com o Marrocos e a Mauritânia, em novembro 1975, no qual se compromete a retirar-se completamente do território saaraui em fevereiro de 1976, transferindo para esses dois Estados a administração partilhada do Saara Ocidental. Em resposta à tomada de controle do território pelo exército marroquino, a Frente Polisário proclama a República Árabe Saaraui Democrática (Rasd), cujo governo é constituído no exílio, na Argélia, onde mais de 150.000 saarauis se refugiaram e se mantêm em grande parte até hoje em campos de refugiados.
Inicia-se então uma guerra entre o exército da Rasd (com o apoio político e logístico da Argélia), por um lado, e as forças do Marrocos e da Mauritânia, por outro lado. A Mauritânia cedo desiste das suas pretensões sobre o Saara Ocidental. Contudo, a guerra continuaria com o Marrocos, que empreendeu mesmo a construção de um muro de areia com 2.700 km de comprimento e altamente minado (perto de 7 milhões de minas terrestres, uma das maiores concentrações de minas ativas em todo o mundo) (10) com o intuito de isolar os 20% de território não controlado pelo seu exército e evitar incursões de guerrilheiros saarauis no restante do território ocupado.
Uma reaproximação política do Marrocos com a Argélia, no final da década de 1980, abre a possibilidade de que o Marrocos aceite pela primeira vez negociar diretamente com a Frente Polisário em Jeddah, Arábia Saudita, em 1988. Esse abrandamento do conflito permitiu ao secretário-geral da ONU apresentar uma proposta de paz, o Settlement Agreement, com um cessar-fogo e com algumas medidas quanto ao regresso dos refugiados, à troca de prisioneiros e à retirada das forças marroquinas. Essas seriam as pré-condições apresentadas para a realização de um referendo sobre o status político do Saara Ocidental, monitorizado pela Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso) em cinco fases até à sua realização, prevista para 1992. O cessar-fogo entrou de fato em vigor em 1991, mas, apesar de todo o trabalho desenvolvido pela Minurso, o referendo ainda não teve lugar vinte anos depois... Em causa, estão essencialmente dois aspectos que levaram todo o processo a um impasse. Primeiro, se bem que ambas as partes aceitem o referendo "em princípio", enquanto o Marrocos recusa que o que considera ser a sua integridade territorial seja posta em causa em referendo, a Frente Polisário não aceita discutir um possível regime de autonomia política para o Saara Ocidental integrado ao Marrocos, como solução pragmática a ser ponderada, entre os extremos independência/integração. Segundo, existem divergências profundas sobre qual deverá ser o corpo eleitoral do referendo; para a Frente Polisário, deverão votar apenas os saarauis (e descendentes) registados num recenseamento populacional feito pela Espanha em 1974, antes da sua retirada; para o Marrocos, deverá votar toda a população que vive no Saara Ocidental no momento do referendo.
Para conseguirmos entender melhor os obstáculos à realização desse referendo e as razões para que o status quo político obtido em 1991 se mantenha passados vinte anos, será pertinente referirmos quais são os principais atores em jogo e as suas motivações desde 1975.
ATORES E INTERESSES EM JOGO
a) Marrocos
Para o Marrocos, a integração do Saara Ocidental no Estado marroquino é a única possibilidade concebível para a resolução dessa questão, pois considera que esse território é, historicamente, parte integrante do reino, alegando históricas relações de fidelidade política entre as tribos nômades que povoavam o Saara Ocidental e o sul do Marrocos (11). Como já referimos, aceita a ideia de referendo (12), mas contesta fortemente o fato de esse poder prever a independência como um dos resultados possíveis, alegando que o que considera a integridade territorial de Marrocos não é passível de ser contestada por via referendária (13). Contesta também a própria Polisário, considerando que tanto os seus guerrilheiros, como os habitantes dos quatro campos de refugiados saarauis na Argélia não são saarauis, mas sim mercenários argelinos (14). Sustenta também que o recenseamento de 1974 não inclui as populações que fizeram parte da Marcha Verde de 1975, que não seriam mais que populações saarauis que tinham se refugiado no sul do Marrocos nos anos 1950, em consequência das campanhas de contra-insurgência espanholas na época (15), daí a sua insistência na sua inclusão no corpo eleitoral. Os obstáculos que o Marrocos tem colocado à realização do referendo desde 1991 podem ser vistos como uma estratégia para ganhar tempo (16) e assim desgastar o apoio interno e internacional à causa da Frente Polisário e tornar a presença de colonos marroquinos no Saara Ocidental um fato consumado (17), na esperança que, ao participarem de um referendo, votem a favor da integração ao Marrocos. Não será de menosprezar outro fator importante no interesse do Marrocos: a presença no Saara Ocidental de uma das maiores reservas mundiais de fosfatos e uma costa particularmente rica em recursos pesqueiros (18).
b) Argélia
Há vários aspectos a considerar no envolvimento da Argélia nessa questão. No quadro da rivalidade histórica com o Marrocos e da competição pela hegemonia política no Magrebe (19), a consumação da integração do Saara Ocidental pelo Marrocos em 1975 representaria um precedente na questão da inviolabilidade de fronteiras, que a Argélia percepciona como perigosa para a sua própria integridade territorial, uma vez que permanecem em aberto algumas questões fronteiriças com o Marrocos. Outra questão estratégica para Argélia seria a questão do acesso ao Atlântico para o escoamento dos seus minérios no interior argelino através do Saara Ocidental (20), e que estaria mais bem garantido com um regime aliado controlando esse território do que com o Marrocos. No entanto, existe também um genuíno compromisso argelino para com o direito de autodeterminacão do povo saaraui, como antiga colônia que é (21). Mantém-se desde 1975 como o maior aliado da Frente Polisário, tendo aberto as portas aos refugiados saarauis que ainda hoje se concentram em quatro campos de refugiados junto a Tindouf, no sudoeste da Argélia (perto de 180 mil saarauis), fornecendo-lhe apoio político e logístico e abrigando a sede provisória do governo da Rasd. Uma mudança geracional na elite política argelina permitiu uma posição mais pragmática da Argélia quanto a esse conflito e uma aproximação gradual com o Marrocos (22), culminando no restabelecimento de relações diplomáticas entre ambos em 1987, após 12 anos de ruptura, o que levou, por conseguinte também, a uma flexibilização da Frente Polisário e ao cessar-fogo patrocinado pela ONU.
c) Mauritânia
Se no período que antecedeu e seguiu imediatamente a retirada espanhola do Saara Ocidental foi uma aliada do Marrocos, a Mauritânia depressa se tornou num ator secundário na resolução da questão saaraui. Se, no momento de pedido de opinião jurídica ao TIJ, em 1975, a sua posição se baseava na proximidade étnica das tribos saarauis com as populações fronteiriças da Mauritânia (23), esse fator foi também um dos que muito contribuiu para o elevado grau de deserções no seu próprio exército, a favor da causa saaraui durante a guerra (24). Sem os meios do Marrocos ou mesmo da Frente Polisário, a Mauritânia nunca se mostrou entusiasticamente empenhada nesse conflito, tanto por não ser popular internamente (ao contrário do que acontecia no Marrocos) (25), como ainda por desconfiar das intenções expansionistas do Marrocos no longo prazo (26). Em face de uma campanha da Frente Polisário, assente na pressão militar e econômica sobre o seu território (27), a Mauritânia desistiu das suas pretensões sobre o Saara Ocidental e reconheceu a Rasd em 1979.
d) Os saarauis
Contrariamente aos argumentos históricos e étnicos aventados pelo Marrocos e pela Mauritânia para justificar o seu interesse no Saara Ocidental, a Frente Polisário sempre manteve uma coerente argumentação jurídica para fundamentar a sua posição, e é possivelmente aí que reside o seu êxito político, bem como o fato de, 35 anos depois, a causa saaraui ainda permanecer na agenda internacional. Essa argumentação assenta no direito à autodeterminação incondicional do Saara Ocidental enquanto antigo território colonial e no princípio da inviolabilidade das fronteiras, mantendo-as tal como definidas no período colonial e na decisão do TIJ em 1975. Mesmo durante os primeiros anos de confronto militar com os exércitos adversários, a Rasd manteve sempre uma forte aposta na frente política e diplomática, conseguindo, entre outras coisas, ser aceita como membro de pleno direito na Organização da Unidade Africana em 1984 (o que levou à saída de Marrocos, até hoje), ver a sua independência reconhecida de fato por 80 Estados (28), e que nenhum Estado tenha, até hoje, formalmente aceito a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental (29). A sua estatégia foi sendo também reajustada ao longo dos anos 1980, desistindo gradualmente do confronto militar, tanto devido à aproximação política entre Marrocos e Argélia, que poderia, gradualmente, comprometer o tradicional apoio argelino à sua causa, como pela efetividade do muro construído pelo Marrocos em pleno território saaraui, um novo obstáculo a movimentações militares (30).
A realização do referendo foi sempre defendida pela Rasd, na condição de este incluir o que considera ser o universo eleitoral do Saara Ocidental realmente válido: todos os saarauis (e respectivos descendentes) que habitavam o território antes da ocupação marroquina, registrados no recenseamento espanhol de 1974, e que hoje estão presentes tanto no Saara Ocidental como nos campos de refugiados na Argélia. O receio da Frente Polisário é que a participação de toda a população atualmente presente no território, majoritariamente composta por colonos marroquinos e consequência direta da política de desequilíbrio populacional operado pelo ocupante desde a Marcha Verde, resulte numa votação a favor da integração ao Marrocos. No entanto, o impasse político a que as dificuldades da operacionalização do referendo levaram nos anos 1990, fizeram recrudescer a frustração da população saaraui, nascendo assim, nesse contexto, a Intifada do Deserto em 1999, quando estudantes saarauis iniciaram uma série de protestos em Al-'Ayun, capital do Saara Ocidental, com a ocupação pacífica da maior praça da cidade, aos quais cedo se juntaram antigos prisioneiros políticos, trabalhadores das minas de fosfato e desempregados (31). Mais do que apelos à realização de um referendo e à independência, também presentes, os manifestantes colocaram uma forte tônica no respeito aos seus direitos econômicos e sociais, o que pode de algum modo justificar o fato de muitos colonos marroquinos, vivendo em condições muito precárias nos bairros pobres em redor da cidade, também terem se juntado às manifestações. Apesar do caráter eminentemente não violento desse levante, as tropas marroquinas reagiram pela força ao fim de doze dias de manifestações, mas tiveram de se refrear posteriormente, perante a pressão internacional que receberam. Se bem que o Marrocos tenha acabado por tomar algumas medidas para serenar as vozes críticas no Saara Ocidental, a revolta não violenta dos saarauis foi-se fortalecendo e ganhando mais apoios, internamente e até mesmo no Marrocos (onde o apoio público à independência do Saara Ocidental é ilegal), onde muitos ativistas saarauis conseguiram dar voz à sua causa, colaborando com organizações locais de direitos humanos, jornalistas e ativistas de esquerda (32). Em 2005, essa Intifada teve outro momento dramático, quando da transferência de um prisioneiro político saaraui para uma prisão no Marrocos e protestos se fizeram ouvir tanto em cidades saarauis, como nas cidades universitárias marroquinas onde se encontram importantes comunidades de saarauis; as forças marroquinas mais uma vez responderam aos protestos com violência, provocando mesmo a morte de alguns manifestantes saarauis (33).
A resistência não violenta à ocupação marroquina deu uma crescente visibilidade à causa saaraui em nível internacional, garantindo-lhe mesmo alguns aliados de peso no seio da União Europeia: a renovação do acordo quadrianual de exploração pesqueira assinado entre o Marrocos e a União Europeia (UE) em 2006, por exemplo, foi vetada pelo Parlamento Europeu em dezembro de 2011, dado esse acordo ser ilegal de jure, por incluir pesca ao largo do Saara Ocidental (34). Importante também tem sido o lobby exercido por organizações não-governamentais, como a Western Sahara Resource Watch (35), junto a empresas multinacionais para que cessem de explorar os recursos naturais do Saara Ocidental e que conseguiu que não mais que duas empresas petrolíferas (a americana Kerr-McGee e a francesa Total) tenham contratos de exploração/prospecção de petróleo com o Marrocos nesse território (36).
b) Outras nações
Após a sua retirada do Saara Ocidental em 1975, o Estado espanhol buscou uma posição equidistante no conflito sobre essa sua antiga colônia (37), mantendo relações de amizade e cooperação tanto com o Marrocos como com a Argélia. Podemos afirmar que a posição de partida da Espanha seria mais próxima do Marrocos, tanto pela importância da cooperação do Estado marroquino para o acesso, a partir das Canárias, às águas marítimas saarauis, como pela participação espanhola na exploração das minas de fosfato, como ainda pela fragilidade política da sua posição no que diz respeito aos seus enclaves de Ceuta e Melilla em território marroquino (38). No entanto, e tendo em conta a simpatia que a causa saaraui granjeia junto à população espanhola (39), mas também pela crescente importância do gás natural da Argélia na política energética europeia, o governo espanhol foi assim construindo uma postura relativamente neutra e cautelosa em relação ao conflito sobre o Saara Ocidental.
O mesmo não se poderá dizer da França, que apoia declaradamente a posição marroquina, considerando que o Saara Ocidental é parte integrante do Reino do Marrocos e que não hesitará em recorrer ao seu poder de veto no Conselho de Segurança na ONU, caso a posição marroquina se veja ameaçada (40). O apoio francês não é meramente retórico, passa também por apoio econômico e militar substancial ao Marrocos, temendo que um referendo no Saara Ocidental possa pôr em perigo o equilíbrio político interno desse seu aliado. Posição semelhante mantêm os EUA, à qual poderemos juntar um dilema ético de apoio ao princípio da autodeterminação dos povos consagrada na Carta da ONU (41). No entanto, questões geopolíticas e econômicas têm prevalecido sobre questões de princípio. Num primeiro momento, os EUA temiam um Saara Ocidental revolucionário e apoiado pela Argélia, esta próxima da URSS durante a Guerra Fria e que destabilizaria o Marrocos, um aliado com uma posição estratégica junto à entrada do Mar Mediterrâneo (42). O apoio econômico e militar americano ao Marrocos pode ainda ser justificado pelo fato de este Estado ser um dos poucos aliados de Israel no mundo árabe, questão sensível para o Congresso americano (43). Se bem que os EUA tenham contado com a colaboração do Marrocos na guerra contra o terror após 11 de setembro de 2001, também a Argélia demonstrou ser um aliado estratégico na região (44), o que obrigou a Casa Branca a manter uma política mais cautelosa no que diz respeito ao Saara Ocidental.
NOVOS DESENVOLVIMENTOS: OS PLANOS DE PAZ DA ONU Como já foi referido, a questão da realização de um referendo no Saara Ocidental voltou a estar em cima da mesa de negociações graças ao cessar-fogo previsto no Settlement Agreement de 1991 patrocinado pela ONU, que, desde essa altura, conduziu a operacionalização dessa consulta popular, através da Minurso. O maior problema dessa missão de ONU foi a elaboração da lista de votantes ao referendo, pelas já também referidas divergências entre Marrocos e a Frente Polisário sobre quem deveria votar. A Minurso inicia então um laborioso trabalho de reconhecimento individual dos potenciais votantes, baseado numa série de critérios definidos num relatório do secretário-geral da ONU (45). Se o universo eleitoral do recenseamento de 1974 (incluindo os seus descendentes) é considerado um ponto de partida primordial para a Frente Polisário, esse mesmo recenseamento é considerado incompleto pelo Marrocos, que reclama a inclusão de todos os saarauis que não tenham sido incluídos nesse recenseamento por omissão durante o processo ou por ausência na altura do mesmo (46), bem como a inclusão dos colonos marroquinos. Um acordo sobre critérios de admissibilidade ao referendo, a tarefa de reconhecimento individual e os inúmeros recursos ao não reconhecimento tornaram o processo fastidioso; a contagem de votantes foi dada por concluída pela Minurso em 1999 apenas.
Mas, a essa altura, o consenso internacional em torno da realização do referendo tinha-se erodido consideravelmente: qualquer solução saída de um referendo poderia resultar em violência, por conta do resultado nunca poder ultrapassar a lógica "winner takes all", em que o vencedor vence incondicionalmente e o vencido, certo da justeza das suas pretensões, o recusa categoricamente (47). Naquela altura, a ONU, através do antigo secretário de Estado James Baker, enviado especial do secretário-geral desde 1997, sem contudo deixar cair a ideia de referendo, introduz uma nova abordagem para a resolução desse conflito e que passaria pela obtenção de um acordo político entre as duas partes, que facilitaria a aceitação mútua em forma de compromisso e que poderia passar por soluções como um quadro de autonomia política do Saara Ocidental em Marrocos ou mesmo uma divisão do território saaraui: uma parte independente, a outra parte anexada ao Marrocos. Baker apresentaria dois planos de paz distintos, um em 2001 e um outro em 2003. As duas partes do conflito levantaram objeções a ambos os planos, muito semelhantes entre si: por um lado, para a Frente Polisário, ambos os planos de paz fariam tábua rasa da legalidade internacional de 1975 e do conteúdo do Settlement Agreement de 1991, pela aceitação política de um estatuto de autonomia no reino do Marrocos; por outro lado, o Marrocos aceitaria a ideia de uma autonomia alargada do Saara Ocidental no seu seio, mas recusa-se a submeter o que considera ser a sua integridade territorial a referendo. O plano de 2001, mais favorável à posição marroquina, foi rejeitado pela Frente Polisário e pela Argélia; por sua vez, o plano de 2003, mais equilibrado segundo a Frente Polisário, foi recusado pelo Marrocos.
PERSPECTIVAS PARA O FUTURO Pelo exposto acima, trata-se claramente de um conflito de complexa resolução, não só pelas posições antagônicas das duas partes, mas também pelo fato de se tratar de um conflito que se arrasta desde 1975 e no qual a passagem do tempo contribuiu grandemente para a cristalização das posições, ao invés de as atenuar. Face a essas posições e condicionantes, I. William Zartman (48) traça vários cenários possíveis para a resolução do conflito: uma divisão funcional, materializada num quadro de autonomia política e autogoverno interno do Saara Ocidental, ficando o Marrocos como soberano e responsável pelas questões externas (um resultado de "soma nula", nem independência, nem integração); uma divisão territorial, com a parte norte do Saara Ocidental anexado pelo Marrocos e a parte sul plenamente independente; uma solução que podemos qualificar de "pós-soberana", no quadro da integração regional no seio da União Árabe do Magrebe que daria uma nova configuração política a toda a região (não fosse esse projeto antigo estar neste momento moribundo, precisamente devido à questão do Saara Ocidental...); e, por fim, a oferta de uma compensação pecuniária (ou de outro tipo) a uma das partes, como cedência à outra (o que seria difícil, dado o lado essencialista que a questão representa para o Marrocos e dada a importância geopolítica da mesma para a Argélia).
Assim, a recusa do Marrocos em admitir a possibilidade de autodeterminação do Saara Ocidental e a recusa da Frente Polisário em admitir a possibilidade de discutir um quadro de autonomia no Marrocos (49) bloqueiam qualquer possibilidade de entendimento, agora como no passado, prolongando um impasse que dura 36 anos e no qual não se perspectivam novos desenvolvimentos no futuro próximo.
Pascoal Santos Pereira é visiting fellow na Universidade de Graz, Áustria, com uma bolsa de doutorado da Fundacão para a Ciência e a Tecnologia, Portugal.
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Mundy, J.A. "'Seized of the matter': The UN and the Western Sahara dispute". Mediterranean Quarterly, Vol.15, nº.3, p.145. 2004.
2. Segundo a ONU, o Saara Ocidental tem um população de 548 mil habitantes em http://unstats.un.org/unsd/demographic/products/socind/population.htm; segundo a CIA, seria 507 mil em https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/wi.html; e segundo o Departamento de Estado americano 385 mil em http://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/5431.htm. Todos dados de 2011.
3. Østerud, Ø. "War Termination in the Western Sahara". Security Dialogue, Vol.20, nº.3, p.309. 1989.
4. Zoubir, Y.H. "Stalemate in Western Sahara: ending international legality". Middle East Policy, Vol.14, nº.4, p.161. 2007.
5. Østerud, Ø., op. cit. p.310. 1989.
6. Stephan, M.J.; Mundy, J. "A battlefield transformed: from guerilla resistance to mass nonviolent struggle in the Western Sahara". Journal of Military and Strategic Studies, Vol.8, nº.3, p.5. 2007.
7. Zoubir, Y.H., op. cit. p.162.
8. Ibidem.
9. Stephan, M.J.; Mundy, J., op. cit. p.5.
10. San Martín, P.; Allan, J.B. "The largest prison in the world: landmines, walls, UXOs and the UN's role in the Western Sahara". Grupo de Estudios Estratégicos Colaboraciones, 1641, p.2. 2007.
11. Østerud, Ø., op. cit. p. 310.
12. Idem p.314.
13. Stephan, M.J., Mundy, J., op cit. p.9.
14. Østerud, Ø., op. cit. p. 315.
15. Mundy, J., op. cit. p.132.
16. Zoubir, Y.H., op. cit. p163.
17. Mohsen-Finan, K. "The Western Sahara dispute under UN pressure". Mediterranean Politics, Vol.7, nº.2, p.7. 2002.
18. San Martín, P.; Allan, J.B., op. cit. p.1.
19. Mundy, J., op. cit. p.143.
20. Zartman, I.W. "Time for a solution in the Western Sahara conflict". Middle East Policy, Vol.14, nº.4, p.181. 2007.
21. Zoubir, Y.H., op. cit. p.161.
22. Mohsen-Finan, K., op. cit. p.4.
23. Østerud, Ø., op. cit. p.310.
24. Howe, J. "Western Sahara: A war zone". Review of African Political Economy, Vol.11, p. 89. 1978.
25. Østerud, Ø., op. cit. p.312.
26. Howe, J., op. cit. p.89.
27. Ibidem p 86.
28. Rice, X. "Inside Africa's last colony". New Statesman, p.32. 2010.
29. Ibidem, p.32.
30. Seddon, D. "Polisario and the struggle for the Western Sahara: Recent developments, 1987-1989". Review of African Political Economy, 45/46, p.133. 1989.
31. Stephan, M.J., Mundy, J., op. cit. p.11.
32. Ibidem, p.29.
33. Ibidem, p.15.
34. "Western Sahara sinks EU-Morocco accord". In: Presseurop, 15/1211, em http://www.presseurop.eu/en/content/news-brief/1292931-western-sahara-sinks-eu-morocco-accord (acesso em 21/12/11).
35. Shelley, T. "Western Sahara: a year of UN impotence". Panorama, p.167. 2009.
36. Stephan, M.J., Mundy, J., op. cit. p. 29.
37. Benabdallah, K. "The position of the European union on the Western Sahara conflict". Journal of Contemporary European Studies, Vol.17, nº.3, p.427. 2009.
38. Zoubir, Y.H., Benabdallah-Gambier, K. "The United States and the North African Imbroglio: Balancing Interests in Algeria, Morocco, and the Western Sahara". Mediterranean Politics, Vol.10, nº.2, p.183. 2005.
39. Benabdallah, K., op cit. p.427.
40. Zoubir, Y.H., op. cit. p. 168.
41. Ohaegbulam, F.U. "Ethical issues in U.S. Policy on the Western Sahara conflict". In: Mediterranean Quarterly, Vol.13, nº.4, p.88. 2002.
42. Howe, J., op. cit. p.90.
43. Zoubir, Y.H., Benabdallah-Gambier, K., op cit. p.189.
44. Zoubir, Y.H. "The United States and Maghreb-Sahel security". International Affairs, Vol.85, nº.5, p.985. 2009.
45. Castellino, J. "Territory and identity in international law: the struggle for self-determination in the Western Sahara". Millenium Journal of International Studies, Vol.28, nº.3, p.540. 1999.
46. Castellino, J., op. cit. p.538. 1999.
47. Mundy, J. "Out with the old, in with the new: Western Sahara back to square one?". Mediterranean Politics, Vol.14, nº.1, p.116. 2009.
48. Zartman, I.W., op. cit. p.180.
49. Mundy, J., op. cit. p.120.