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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo Jan. 2013
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100015
Territórios quilombolas em linhas de fronteira: quilombolas do Forte Príncipe da Beira
Emmanuel de Almeida Farias Júnior
NEGROS DO GUAPORÉ Os territórios negros do Guaporé, linha de fronteira entre Brasil e Bolívia, são constituídos a partir de distintos processos de territorialização, desde o século XVIII. Tais processos remetem à denominada "situação colonial" e à ação "bandeirante" nos confins do sertão na busca de riquezas: ouro e pedras preciosas.
Segundo Teixeira, "a posse portuguesa do Vale do Guaporé foi confirmada com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Entretanto, as páreas de exploração aurífera já vinham sendo trabalhadas desde a década de 1730 pelos mineiros de Cuiabá e São Paulo" (1)
As minas de ouro e diamantes do Mato Grosso e adjacências eram mantidas pela força de trabalho negra escravizada. Rebeldias, fugas, doenças e esgotamento das lavras de ouro constituem condições para a formação de quilombos no Guaporé.
Entre os quilombos mais renomados do Vale do Guaporé, está o do Piolho, localizado às margens do rio Galera. Segundo o Anal de Vila Bela de 1770, a primeira destruição deste quilombo ocorreu em 22 de julho do mesmo ano. Esse quilombo tinha rei e rainha, o rei tinha morrido, a rainha se chamava Thereza, do povo Benguela.
Os quilombolas que conseguiram fugir voltaram a se reagrupar. Uma nova expedição torna a destruir o quilombo formado pelos sobreviventes e seus descendentes. O Diário da Diligência foi reproduzido por Roquette-Pinto (1917). De acordo com o referido Diário, a fuga de escravos e a formação de quilombos preocupava o governo colonial, marcado pela decadência das minas de ouro (2).
Os quilombos foram duramente perseguidos pelo governo provincial de Mato Grosso. O aquilombamento do vale do Guaporé permitiu o espraiamento territorial e a formação de pequenos povoados, com diversificadas unidades residenciais.
As crônicas de expedições punitivas relatam os quilombos constituídos por negros e indígenas. O contato entre negros e indígenas do Vale do Guaporé possibilitou uma nova fisionomia étnica.
Com o esgotamento das lavras e as doenças, os senhores de escravos fugiram do Guaporé, abandonando a escravaria à própria sorte. Livres, os ex-escravos passaram também a ocupar efetivamente o Vale do Guaporé e a constituir unidades familiares autônomas.
A LIBERDADE NÃO RECONHECE FRONTEIRAS Os quilombos estavam localizados tanto do lado português, quanto do lado castelhano. São inúmeros os esforços dos administradores coloniais para que os representantes da Coroa de Castela restituíssem os escravos que se encontravam em território espanhol. Tais iniciativas administrativas estão explicitadas em ofício datado de 05 de setembro de 1754.
Segundo o levantamento de fontes documentais e arquivísticas pude coligir ofícios trocados entre agentes coloniais da Coroa Portuguesa, e também com espanhóis. Tais ofícios referem-se aos seguintes anos: 1769, 1773, 1777, 1778, 1781, 1782, 1789, 1791 e 1793. Tal levantamento foi realizado no banco de dados do Projeto Resgate/Centro de Memória Digital-UNB. Coligi uma dezena de relatos de fugas de escravos para os domínios espanhóis.
A fuga de escravos e a formação de quilombolas preocupavam os administradores coloniais de Vila Bela. A fuga para os domínios castelhanos dificultava a recaptura e impedia a realização de expedições punitivas. Desta forma em 20 de dezembro de 1777, oficiais da Câmara de Vila Bela à rainha D. Maria, solicitando que os escravos fugidos para os domínios castelhanos fossem presos e remetidos, ou então que os proprietários tivessem liberdade e passaporte para persegui-los.
OS QUILOMBOLAS DO FORTE O avanço da colonização portuguesa e as iniciativas de militarização da fronteira resultaram na política de fortificação do Guaporé. A ocupação da porção mais a oeste no território foi conflitiva. Com registros de conflitos armados entre portugueses e espanhóis. Índios e negros eram utilizados para combater o inimigo.
Em meados do século XVIII, o governador Antônio Rolim de Moura Tavares, instala o Forte de Nossa Senhora da Conceição, no lado direito do rio Guaporé. Segundo Souza (3), em 1768, o Forte de Nossa Senhora da Conceição passa a se chamar Forte de Bragança e em 1776, já se encontrava em ruínas.
Com a necessidade de construção de um novo forte, Luiz d'Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres é instruído a procurar um novo lugar para a fortificação, protegido das intempéries da natureza.
No dia 20 de junho de 1776, o governador, Luiz d'Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, assentou a primeira pedra da fundação da nova fortaleza, denominada de Forte Príncipe da Beira, que ficou pronta em 1783.
Os Anais de Vila Bela, coligidos por Amado e Anzai (4), evidenciam a marcante presença de escravos negros e de indígenas, seja nas construções das fortificações, seja nas suas guarnições. Os anais referem-se a escravos negros que foram enviados para a construção, como mostra o Anal de Vila Bela de 1776. Vinte dos escravos enviados morreram na viagem pelo rio Amazonas.
O Anal de 1779, apresentado pelo Vereador Francisco de Bastos Ferreira, narra o seguinte: "chegou, em 13 de novembro do Rio de Janeiro, um soldado dragão desta praça, com seis escravos pedreiros, mandados comprar pela Fazenda Real para as obras do Forte Príncipe da Beira" (4 ).
A movimentação militar, a perseguição aos quilombos e o abandono da região pelos chamados "bandeirantes" devidos à decadência das minas, ocasionaram o espraiamento do domínio negro no Vale do Guaporé. Pode-se dizer que chegaram mesmo a aquilombar áreas circunvizinhas das fortificações militares, como com a notícia de que nas proximidades do Forte Príncipe da Beira, havia quilombos e quilombolas, em 1778 foram trazidos a Vila Bela, alguns índios encontrados em um quilombo no distrito do referido forte.
O poder colonial impôs políticas de ocupação, trabalho escravo e militar que ocasionou o surgimento de "novas coletividades". Cândido Mariano da Silva Rondon (Marechal Rondon), visitou as ruínas do Forte Príncipe da Beira, em 1914. Uma nova excursão ao forte pelo exército brasileiro só ocorreu em 1930.
Os militares se estabelecem no Forte Príncipe da Beira em 1932, ao lado da fortaleza com o mesmo nome, instalando o Contingente Especial de Fronteira de Forte Príncipe da Beira. Em 1954, mudaria para 7º Pelotão de Fronteira, e em 1977, para 3º Pelotão Especial de Fronteira, subordinado ao 6º Batalhão Especial de Fronteira. Atualmente, encontra-se no forte o 1º Pelotão de Fuzileiros de Selva Destacado, sob a jurisdição do 6º Batalhão de Infantaria de Selva, vinculado à 17ª Brigada de Infantaria de Selva, sediada em Porto Velho.
No entanto, a área já estava habitada. As famílias que residiam eram descendentes dos escravos negros e indígenas que trabalharam na construção da fortaleza. A ocupação da área abrangia até a antiga Fortaleza de Conceição (Forte de Bragança), onde segundo dizem os quilombolas, "só existiam negros".
Com a implantação das instalações militares, tanto as famílias que residiam no lugar do antigo Forte de Bragança, quanto as que residiam nas proximidades do Forte Príncipe da Beira, passaram a ser constrangidas e pressionadas a deixarem suas terras tradicionalmente ocupadas. Como parte das instalações militares foi trazido gado bovino, que frequentemente destruíam as plantações e as áreas das chamadas roças. Com o passar dos anos, as famílias foram deslocadas da área do Forte de Bragança, conhecido pelos quilombolas ainda como Forte de Conceição.
Muitas famílias que residiam na área do antigo Forte de Conceição passaram a residir no entorno do Forte Príncipe da Beira. E nas últimas décadas as famílias quilombolas têm sofrido constantes pressões para que saiam da área pretendida pelos militares, com mais de 20 mil hectares.
As territorialidades específicas objetivadas no mapa entrelaçam situações do presente com fatos históricos. Sejam as medidas institucionais da colonização portuguesa, seja o trabalho nos seringais durante as décadas de intensa produção da borracha, tais iniciativas ocasionaram a reorganização de novas coletividades.
Como podemos observar em Costa Marques (5) (1908), o período relacionado à exploração da borracha reorganizou os espaços e as unidades residenciais, movimentando as unidades familiares ao longo do rio Guaporé, ocasionando no surgimento de novos núcleos habitacionais.
As famílias quilombolas trabalhavam tanto no lado brasileiro, quanto do lado boliviano, tais práticas e relações remetem diretamente às relações estabelecidas ainda no período escravocrata colonial, quando o território espanhol representava a consolidação da ruptura com o sistema escravocrata.
Nas últimas décadas, tem-se registrado o aumento das pressões e atos de violência contra a Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira. Tais pressões e atos de violência têm sido empregados pelo Exército brasileiro. Tais relatos foram obtidos a partir de depoimentos durante a oficina de mapas com os quilombolas, de entrevistas e de documentos emitidos pela Asqforte.
Durante a oficina de mapas, os quilombolas procederam à elaboração de croquis com a indicação de suas terras tradicionalmente ocupadas. A área pretendida pela Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira abrange a extensão de 20.108.8709 hectares.
Tal reivindicação territorial refere-se aos antigos sítios e colocações de seringa, áreas de roçado, pesca, entre outros sítios históricos. Como o próprio local da antiga Fortaleza de Conceição e o Forte Príncipe da Beira. Ambos, considerados patrimônios da comunidade. Desta forma, foi possível a confecção do mapa situacional referido ao território quilombola do Forte Príncipe da Beira.
Nos anos que se seguiram à instalação do aquartelamento do Exército e a intrusão das terras tradicionalmente ocupadas da Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira, podemos destacar, assim, uma série de atos de violência:
* Na reunião realizada no dia 13 de outubro de 2012, fomos informados que as unidades familiares têm sido impedidas de praticarem as atividades agrícolas. Em 2008, os srs. Antonio e Raimundo foram presos por estarem fazendo roça. Em 2009, a partir de um acordo com a Emater, a Asqforte solicitou um trator para arar a terra, evitando queimá-la; no entanto o referido trator foi apreendido pelo Exército (Reunião realizada na Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira no dia 13 de outubro de 2010).
* Na reunião realizada no dia 13 de outubro de 2012, fomos informados que a atividade de pesca tem sido exercida sob o rígido controle do Exército, que institui normas próprias de fiscalização, inclusive sobre o pescado obtido para consumo. O Exército pressiona os pescadores a passarem no Pelotão para avisarem que estão indo pescar, o que levam, para onde vão e quando vão voltar. O Exército tem proibido o embarque e desembarque utilizando veículos no porto utilizado pelas famílias quilombolas. Em 2006, os militares entraram na casa de um pescador e retiraram o peixe de dentro do freezer, prenderam o pescador e o levaram para o Ibama. Em 2007 aconteceram mais três casos semelhantes (Reunião realizada na Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira, no dia 13 de outubro de 2010).
* Os militares passaram a exigir a apresentação de um documento com foto para que as pessoas tivessem acesso à Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio "General Sampaio", inclusive os pais de alunos e professores. A escola foi cercada pelo aquartelamento, assim como a quadra da comunidade. Segundo a Ata da Reunião, realizada em 01 de março de 2012, com a comunidade e servidores da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio "General Sampaio": "a comunidade e servidores estaduais que atuam na escola, bem como os alunos, vêm sofrendo constantes constrangimentos" (Ata da Reunião com a comunidade e servidores da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio "General Sampaio". Costa Marques. Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira, 01 de março de 2011).
No dia 28 de fevereiro de 2011, o professor Carlos, foi retirado da sala de aula por militares armados diante dos estudantes. Segundo o próprio professor Carlos, o mesmo já havia se identificado, e não quis se identificar pela segunda vez, se dirigindo à sala de aula, de onde foi retirado pelos militares.
Em 27 de março de 2008, o sr. Manoel Marculino da Silva foi expulso pelos militares do 1º Pelotão de Fuzileiros de Selva Destacado. Em seguida sua casa foi incendiada. Segundo seu Manoel, ele estava organizando um puxirão, para tanto, por ser o "dono do trabalho", ele seria o responsável por prover a alimentação, como forma de garantir "o dia", ou seja, o trabalho realizado durante o dia de trabalho. Neste sentido, o sr. Manoel necessitou pescar e caçar, o suficiente para manter os trabalhadores.
Um dos argumentos utilizados pelos militares, para o deslocamento compulsório da família do sr. Manoel, é que estavam com caça ilegal em sua propriedade, segundo informou o próprio sr. Manoel. Contudo, como podemos explicar, tal carne seria utilizada na realização de um puxirão, forma simples de cooperação tradicionalmente utilizada para a execução de trabalhos coletivos.
Por fim, a intrusão das terras tradicionalmente ocupadas pelo Exército, as pressões e os atos de violência têm impedido a ocupação plena do território quilombola, como a realização das práticas agrícolas, da pesca, o acesso à educação e à saúde sem constrangimentos. Tal situação social de conflito ocasionou a judicialização da reivindicação territorial dos quilombolas, tal como analisa Santos (6)(2008).
Emmanuel de Almeida Farias Júnior é cientista social, doutorando em antropologia social (PPGAS) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), e pesquisador do Projeto Novas Cartografias Antropológicas da Amazônia (PNCAA) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Teixeira, M. A. D.. "Campesinato negro de Santo Antônio do Guaporé: identidade e sustentabilidade". Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido). Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido/ Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, 2008.
2. Roquette-Pinto, E. Rondônia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
3. Souza, A. F. de. "Fortificações no Brazil". In: Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geographico e Etnográfico do Brazil. Rio de Janeiro: Tomo XLVIII, Parte II, 1885, p. 5-140.
4. Amado, J.; Anzai, L. C.. Anais de Vila Bela 1734-1789. Cuiabá: Carlini e Caniato: EdUFMT, 2006.
5. Costa Marques, M. E.. Região Occidental de Matto Grosso. Viagem e estudos sobre o Valle do Baixo Guaporé da cidade de Matto Grosso ao Forte do Príncipe da Beira. Rio de Janeiro: Typ. e Pap. Hildebrandt, 1908.
6. Santos, B. de S.. "Bifurcação da justiça". Folha de S. Paulo, 10 jun. 2008. Opinião, p. A3.
DOCUMENTOS OBTIDOS E CITADOS DURANTE A OFICINA DE MAPAS
Associação Quilombola do Forte (Asqforte). Ofício nº 023/Asqforte/2010. Costa Marques, 25 de outubro de 2010.
Ata da Reunião com a comunidade e servidores da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio "General Sampaio". Costa Marques. Comunidade Quilombola do Forte Príncipe da Beira, 01 de março de 2011.
Federação das Associações Comunitárias e Quilombolas do Vale do Guaporé- Facqvale. Ofício n0 013/Facqvale/2011. Costa Marques, 30 de junho de 2011.
Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares. Certidão de Auto-Reconhecimento. Cadastro Geral n0 003, Registro n0 252, f. 58, 29 de junho de 2005.
Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Departamento de Engenharia e Construção. Diretoria de Patrimônio. Ofício nº 04 ¨C D Patr-S1. Brasília, 21 de janeiro de 2011.
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria do Patrimônio da União. Superintendência do Patrimônio da União no Estado do Rondônia. Ofício n0 201/2010/GAB/SPU/RO. Porto Velho, 23 de abril de 2010.
Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Município de Ji-Paraná- RO. Inquérito Civil Público 1.31.001.00