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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725
Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo Jan. 2013
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100022
FOTOGRAFIA
Obra de Horacio Coppola evidencia o diálogo entre o modernismo brasileiro e o argentino
Um conjunto de extraordinárias fotografias de obras de Aleijadinho, realizadas por um dos maiores fotógrafos argentinos, Horacio Coppola, e adquiridas recentemente pelo Instituto Moreira Salles (IMS), vem sugerir mais uma vez a grande relevância do diálogo entre modernismo brasileiro e argentino no século XX. O acervo, depois de uma temporada em São Paulo, encontra-se exposto na Casa da Cultura de Poços de Caldas (MG) até 17 de março de 2013.
O argentino Coppola, nascido em 1906, e falecido aos 106 anos, em maio de 2012, é uma figura central da história da fotografia latino-americana. Em 1932-1933 frequentou os cursos de fotografia de Walter Peterhans, na Bauhaus de Dessau. As obras do mestre alemão lhe revelaram uma forma de arte, processo de pormenores precisos, refinado jogo de tons de luz, de sugestivos contrastes entre superfícies e texturas dos diversos materiais. Nos cursos de Peterhans, conheceria Grete Stern, com quem se casaria em Londres em 1935. Coppola formaria com a grande fotógrafa alemã um sodalício na vida e na arte que duraria até 1944. De 1934 a 1935, vivendo entre Paris e Londres, ele entrou no círculo do crítico Christian Zervos, editor da revista Cahiers d'art, que apresentava estudos que se estendiam em um amplo leque de temas, da arte pré-histórica até a contemporânea, destacando-se pela originalidade e a qualidade da apresentação gráfica e do material ilustrativo. Zervos, também marchand e galerista, frequentava muitos dos artistas mais importantes da vanguarda parisiense, Henri Matisse, Georges Braque, Ferdinand Léger e, sobretudo, Pablo Picasso. Ainda que privilegiando o estudo da arte moderna, Zervos publicaria algumas monografias sobre a arte das civilizações antigas. Para um desses textos, dedicado à arte da Mesopotâmia, Coppola realizou as ilustrações fotográficas, que receberam elogios do escultor Henry Moore.
Com tais experiências, Coppola retornou à Argentina com a esposa, em 1935. O renovado anseio de busca das identidades nacionais na América Latina das décadas de 1930 e 1940 provocou, também, uma retomada do estudo do patrimônio arqueológico, histórico e artístico local. Os próprios círculos modernistas fomentaram esses interesses, tanto no Brasil como na Argentina.
As primeiras menções ao Aleijadinho na Argentina encontram-se na revista modernista Sur. No número inaugural de 1931, Coppola publicou seu primeiro ensaio fotográfico importante, Siete temas. Buenos Aires. Cabe destacar o precoce interesse pela obra de Aleijadinho por parte de uma das mais importantes figuras da crítica de arte do modernismo argentino, o arquiteto Angel Guido, que dedicaria ao escultor mineiro um artigo ("El Aleijadinho", La Prensa, Buenos Aires, 11 de janeiro de 1931) sucessivamente ampliado em inglês ("O Aleijadinho: the little cripple of Minas Gerais", Bullettin of the Pan-american Union, vol. 65, no. 8, 1931). Guido via no artista brasileiro o enxerto da antiga cultura ameríndia naquela europeia, do qual brotaria a arte moderna latino-americana, uma perspectiva não distante daquela dos escritos de Mário de Andrade.
Na Argentina, a partir de 1939, inicia a publicação dos Documentos de Arte Argentino por iniciativa de Mario Buschiazzo, e da Academia Nacional de Bellas Artes, ilustrados, em muitos casos, por fotografias do alemão Hans Mann, autor, em 1958, de um livro sobre os profetas do Aleijadinho em Congonhas.
Em 1944, foi publicado, na revista Lyra um artigo de Ramón Gómez de la Serna dedicado ao escultor mineiro e uma pequena monografia do brasileiro Newton Freitas Coutinho.
No Brasil são os anos do projeto de Mário de Andrade para um órgão público de tutela do patrimônio cultural e, sucessivamente da criação, em 1937, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), por iniciativa de Rodrigo Melo Franco de Andrade, com a colaboração do próprio Mário, do poeta Manoel Bandeira, de Affonso Arinos de Melo Franco, de Sérgio Buarque de Holanda e de Lúcio Costa.
Sabemos pelos estudos de Jorge Schwarcz que, já em 1931, a caminho da Europa, Coppola havia passado pelo Rio de Janeiro e Salvador, travando amizade com Manoel Bandeira e, talvez através dele, com Mário de Andrade e outros artistas do movimento modernista brasileiro. A correspondência entre Newton Freitas e Mário de Andrade, conservada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, documenta o papel de Freitas e da esposa, Lidia Besouchet, na divulgação da cultura brasileira, e particularmente da obra literária de Mário: é Freitas quem cuida da tradução ao espanhol de Macunaíma, ilustrada por Caribé, terminada em 1944. Ainda Freitas promove, na mesma época, a publicação em Buenos Aires da tradução dos ensaios Aleijadinho e Álvares de Azevedo e de um texto sobre a pintura de Portinari. Mário de Andrade, em resposta, escreve o prefácio para a obra de Freitas, Ensaios americanos?, de 1945. O exemplar do livro de Newton Freitas, El Aleijadinho. Antonio Francisco Lisboa, que está no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros, procedente da biblioteca de Mário de Andrade, tem dedicatória ao escritor paulista. O texto abre-se com uma extensa citação do Guia de Ouro Preto de Manuel Bandeira, de 1938, e se encerra com uma citação muito significativa do ensaio de Mário de Andrade sobre o escultor.
Não surpreende, portanto, que também Horacio Coppola, instigado pelo interesse modernista nas origens da arte americana, depois de publicar, em 1943, dois cadernos sobre a arte das culturas pré-colombianas da costa setentrional e central do Peru, viajasse a Minas ao encontro do barroco mestiço do Brasil colonial.
Tais antecedentes esclarecem melhor o significado do trabalho fotográfico realizado por Coppola em Minas Gerais, que resultou numa exposição em Buenos Aires, e no livro Esculturas de O Aleijadinho, de 1955, contendo uma seleção de cerca de 65 fotografias e 3 poemas do espanhol Lorenzo Varela significativamente intitulados: A lenda, Ao cedro de suas talhas, Epitáfio e balada da pedra dulce de suas estátuas, Ao fotógrafo.
Coppola compreendeu o caráter decorativo intrínseco à poética do escultor brasileiro, que transcende a verossimilhança, utilizando as características dos materiais e das técnicas para criar uma percepção emotiva do espaço. Na obra de Aleijadinho, arquitetura, escultura e pintura integram-se para produzir uma épica monumental e popular ao mesmo tempo, traduzindo de forma única os peculiares valores religiosos e sociais da cultura mestiça do Brasil colonial. Coppola acompanha a evolução no tempo dessa concepção formal. Na igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, a irrupção vigorosa e dinâmica da escultura ornamental do portal no tímpano, quebra violentamente o ritmo solene dos planos, marcando o começo dessa original poética decorativa. Seguem o conjunto da capela-mor, os púlpitos e o lavabo da sacristia do mesmo templo, os relevos da fachada e do púlpito da igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, aqueles do portal da fachada e do altar de São João da igreja de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto, até culminar no majestoso Coro dos Profetas e nos dramáticos Passos da Paixão de Congonhas do Campo.
O esmero do trabalho de interpretação de Coppola, através da escolha de cada detalhe, é registrado no seu extraordinário diário de trabalho, também adquirido pelo IMS. Ele parece explorar todas as possibilidades da iluminação, sobretudo, nos conjuntos de Congonhas. A foto da grande escadaria do santuário com as estátuas dos profetas de costas, projetando suas sombras na contraluz, reduzindo as figuras a puras silhuetas, destaca seu valor ornamental em diálogo com as elegantes curvas da arquitetura, em contraste ao tosco casario e ao empedrado que a circunda.
Por contraste, nos detalhes dos rostos dos personagens, isolados sobre um fundo neutro, enquadrados de vários ângulos, a luz revela todos os pormenores da matéria, como se fossem parte da própria intenção expressiva. Um exemplo é a tragédia da Paixão de Cristo na série de detalhes do rosto do Redentor nas diversas cenas. Os atores imóveis do eterno espetáculo sacro impelem o espectador para compartilhar seus sentimentos.
Nas belas palavras do poeta Lorenzo Varela, pelos olhos do fotógrafo volta para nós o tempo que se foi e o tempo que não passa: na perene fixidade das pedras e das talhas do Aleijadinho, Coppola redescobre a vida e os anseios da época que as esculpiu, por virtude da luz.
Luciano Migliaccio
é historiador da arte, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).