SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 issue2 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200008 

     

    POLOS

    Ártico, a nova fronteira sob a catástrofe

     

    Existe uma bandeira russa no Polo Norte, fincada no leito do mar gelado a uma profundidade de 4200 metros. O Polo não é território russo, mas cinco anos atrás Moscou mandou instalar seu lembrete ali por garantia, em meio a uma disputa territorial sobre quase todo o Oceano Ártico que envolve os cinco países da região. Tudo por causa do recuo progressivo da calota polar, que assusta cientistas e ambientalistas – mas que governos e empresas veem como oportunidade. O derretimento do gelo vem expondo regiões ricas em petróleo, minérios e peixes, sem falar nas novas rotas comerciais e turísticas.

    Por isso, até o fim deste ano, os russos pretendem enviar para a Organização das Nações Unidas (ONU) um relatório para convencê‑la a concordar que o país anexe 1,2 milhão de quilômetros quadrados de mar gelado para sua zona econômica exclusiva (ZEE). A ZEE é uma região além do mar territorial na qual o país tem direito de explorar recursos, mas não de impedir a passagem de navios e aviões estrangeiros (a do Brasil se estende até 200 milhas da costa). Em 2013, será a vez do Canadá e, em 2014, da Dinamarca (a Groenlândia é território dinamarquês). Além desses, Noruega e Estados Unidos (via Alasca) também possuem litígios na região.

    As reclamações seguem o recuo do gelo, que vem se acelerando mais que os cientistas previram. Em média, a calota do Ártico diminui 4,6% por década desde 1981, segundo dados do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo (NSDIC), da Universidade do Colorado, nos EUA. No site do NSDIC, é possível ver um mapa com a extensão do gelo, atualizado diariamente. Já a espessura média do gelo, que era de 3,64 metros em 1980, em 2008 foi de apenas 1,89 metro.

    Em 16 de setembro de 2012, a calota atingiu a menor extensão já registrada: 3,41 milhões de quilômetros quadrados. A média da sua área mínima durante o verão, entre 1979 e 2000, foi de 6,7 milhões de km2. Segundo Jefferson Cardia Simões, líder do Programa Antártico Brasileiro e diretor do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que estuda as duas regiões polares, não há registro na história de uma extensão tão pequena do gelo ártico, a não ser de milhares de anos atrás.

     

     

    RIQUEZAS EM DISPUTA Os recursos que o derretimento vai expor ainda não são conhecidos, mas estima‑se que no Ártico estejam 13% de todo o potencial ainda não descoberto de reservas petrolíferas do mundo e 30% das de gás, segundo dados reunidos por Heather Conley, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) dos EUA. Na região há vastas quantidades de níquel, ferro, plutônio e terras raras, segundo a cientista. A região poderia suprir 25% de toda a demanda global por terras raras, fundamentais nas novas tecnologias digitais.

    As movimentações para explorar esses vastos recursos já começaram. Um relatório sobre as mudanças geopolíticas e econômicas no Ártico, publicado em 2012 pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) dos EUA, mostra como a diminuição da produção petrolífera próxima à região – especialmente as do Alasca e da Noruega – vem levando os países a avançar a exploração Ártico adentro. Um grande passo nessa direção foi dado em 2012, quando a Shell começou a perfurar poços no Mar de Beaufort, ao nordeste do Alasca – uma iniciativa fortemente criticada pelos ambientalistas do Greenpeace, que puseram no seu site um abaixo‑assinado para impedir a empresa de prosseguir no seu intento. O Greenpeace também invadiu, em agosto de 2012, quase todas as plataformas de perfuração do campo petrolífero de Prirazlomnoye, no mar de Pechora, no Ártico russo. A produção estava prevista para começar naquele ano, mas, no mês seguinte, foi anunciado o seu adiamento para o fim de 2013 "por razões de segurança".

    POR ENQUANTO, EM PAZ A exemplo do caso Rússia‑Noruega, os litígios têm sido encaminhados pacificamente, mas não há muito otimismo em alguns analistas. Heather Conley propôs três cenários. O mais favorável é a continuação da dinâmica atual de cooperação. No segundo, menos cooperativo, as regras seriam regidas cada vez mais por acordos bilaterais, em detrimento dos multilaterais, e haveria um aumento de exercícios militares. O pior cenário é o "ambiente contencioso", com anexações unilaterais de zonas econômicas exclusivas, militarização da região e possível conflito armado.

    Por enquanto, porém, os conflitos vêm sendo tratados adequadamente nos fóruns internacionais existentes. O relatório do CSIS cita, como o principal arcabouço legal, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (Unclos); e, como o principal órgão de caráter institucional, o Conselho do Ártico. Este último foi criado em 1996 e é formado pelos cinco países árticos e mais Islândia, Finlândia e Suécia. Seus membros já produziram, em 2011, um acordo para a cooperação internacional imediata quando houver necessidade de resgate em caso de acidentes – um problema crescente na região, que não possui infraestrutura suficiente para tais ações nem mesmo em países desenvolvidos como o Canadá.

    NOVAS VIAS MARÍTIMAS Um dos motivos do Ártico ser um assunto global é, naturalmente, o problema ambiental. O recuo da calota polar pode causar impacto em todo o planeta, pois influencia, por exemplo, as correntes termo‑halinas, correntes marítimas que correm por baixo da superfície, percorrem todo o globo terrestre, trocam calor entre os polos e outras regiões e ajudam a distribuir nutrientes de regiões profundas para a superfície dos oceanos, processo importante para o equilíbrio da vida marinha.

    Mas os governos de várias nações parecem mais sensíveis para o acesso aos recursos energéticos e para as novas vias de navegação que apareceram. Nos últimos anos, rotas inteiras através do Ártico têm sido expostas por períodos anuais cada vez maiores. Recentemente, foram abertas duas dessas rotas alternativas às grandes vias comerciais atuais. Uma é a Rota do Noroeste, entre a Europa e a Costa Oeste dos EUA. Por essa via, a distância entre o porto de Roterdã, na Holanda, e de San Francisco, nos EUA, fica 3700 km mais curta que a rota atual, que passa pelo Canal do Panamá. A outra, a Rota do Nordeste (ou Rota Setentrional), vai do Extremo Oriente à Europa Ocidental e encurtará em 8700 km o caminho entre Roterdã e Yokohama, no Japão (que hoje passa pelo sul, pelo Canal de Suez e por Singapura).

    Em 2010, quatro navios conseguiram passar pela Rota do Nordeste. No ano seguinte, esse número saltou para 34 embarcações. Em 2012, foram 46, e a carga total transportada pelo Ártico ultrapassou mais de 1,2 milhão de toneladas. A maior parte foram de derivados de petróleo, como diesel, combustível para aviões, gás natural liquefeito (GNL) e condensado de gás natural. Em segundo lugar, foram minério de ferro e carvão.

    A China é um dos países mais ativos em seus planos para usar as novas vias. Segundo projeções feitas naquele país, entre 5 e 15% do tráfego naval chinês passará pelo Ártico até 2020. Por isso, o país tem pleiteado ser aceito como membro observador do Conselho do Ártico, assim como Índia, Itália, Japão, Coreia do Sul, Singapura (diretamente afetada pela mudança da rota naval), a União Europeia, o Greenpeace e a Associação Internacional dos Produtores de Petróleo e Gás (OGP). Esses pedidos estarão na pauta de uma reunião do Conselho em maio de 2013.

    Junto com a navegação vem o problema da comunicação. Satélites artificiais – incluindo os do GPS – não conseguem monitorar bem a região próxima aos polos, o que dificulta muito a comunicação dos navios entre si e com a costa – especialmente em caso de acidente. No entanto, a Rússia construiu um sistema alternativo ao GPS, o Glonass, que funciona satisfatoriamente bem mais próximo dos polos.

    POPULAÇÕES TRADICIONAIS No meio de todo esse fogo cruzado entre os que vêm chegando, estão aqueles que já estão ali há milhares de anos. As 14 culturas tradicionais da região sofrem por causa do avanço da exploração comercial, que perturba seu modo de vida e o ambiente do qual dependem. Os novos campos petrolíferos russos no mar de Pechora atingem a população nativa dos Nenets, cuja sociedade já vinha sendo afetada pela exploração de gás em terra, na península de Yamal, iniciada em 2008. Os Inuits, um dos povos do norte do Canadá, Alasca e Groenlândia conhecidos como "esquimós", também sentem o impacto da maior presença da civilização técnica. "A globalização já pode ser percebida no extremo norte do Canadá", diz Jefferson Simões, "muitas aldeias Inuits têm internet, TV, rádio etc."

     

    Roberto Belisário