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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200010
Arqueologia no Brasil e no mundo: origens, problemáticas e tendências
Pedro Paulo A. Funari
A arqueologia tem passado, nas últimas décadas, por grandes mudanças epistemológicas e, por consequência, em seus aspectos sociais. Disciplina surgida no auge do nacionalismo e do imperialismo, como parte da conquista militar e espiritual do mundo, a arqueologia esteve, por muito tempo, ligada às mais reacionárias e conservadoras posições sociais e políticas, a serviço, muitas vezes, da opressão de indígenas, mulheres, pobres, minorias diversas e mesmo maiorias variadas. A arqueologia, contudo, passou por modificações profundas devido, em grande parte, aos movimentos sociais e às transformações políticas desde, ao menos, a Segunda Guerra Mundial (1939‑1945). Na esteira do feminismo, das lutas sociais diversas pelos direitos civis, contra o colonialismo e pela diversidade étnica, religiosa e sexual, a disciplina não deixou de responder aos novos tempos.
Definida, na origem, como estudo das coisas antigas, a partir da etimologia, dedicada aos edifícios e objetos provenientes das antigas civilizações, como a grega e a romana, tornou‑se, aos poucos, parte dos estudos das relações de poder a partir das coisas. Em comum, manteve a centralidade do estudo do mundo material, das coisas, daquilo que pode ser tocado, transformado e feito pelo ser humano, definido, por convenção como cultura material. Introduziram‑se, ademais, os aspectos sociais e de poder, das desigualdades e conflitos, para propor uma disciplina menos distante das pessoas e mais útil tanto aos indivíduos, como às coletividades.
A fundação, em 1986, do Congresso Mundial de Arqueologia (World Archaeological Congress) foi, nesse aspecto, marcante, pois introduziu as questões sociais e políticas na organização mesma da disciplina, com a introdução de indígenas, leigos e arqueólogos de lugares periféricos no centro da organização. Nunca antes havia sido possível ver índios, geógrafos, arqueólogos jovens e catedráticos em mesas de discussão em condições de igualdade. A diversidade foi alçada à condição de valor, assim como a quebra das hierarquias. A disciplina passou a voltar‑se, de forma cada vez mais intensa, para o envolvimento com a sociedade, pela difusão voltada não apenas para os pares, como para os estudiosos de outras disciplinas e, mais ainda, para as pessoas em geral e para comunidades específicas em particular, de indígenas a crianças, de idosos àqueles com necessidades especiais. Este artigo procura apresentar um panorama geral da disciplina, com destaque para o Brasil.
A ARQUEOLOGIA, IMPERIALISTA E NACIONALISTA Em linhas gerais, pode‑se dizer que a história da arqueologia institucionalizada começa com o surgimento da figura do arqueólogo. Até o final do século XVIII, o estudioso da Antiguidade era o antiquário, que, a partir daí, é substituído pelo arqueólogo. Com a nova figura do arqueólogo, as pesquisas se desenvolveram na medida em que escavações foram sendo realizadas. Todavia, de início, as realizações eram de caráter individual, até que se tornasse coletiva ao longo do século XIX. A mais célebre e importante instituição foi o Instituto de Correspondência Arqueológica, fundado em 1829 na cidade de Roma. Nesse mesmo espírito, a Grécia cria seu Departamento de Arqueologia em 1834 e a Sociedade Arqueológica de Atenas em 1837. A França também cria sua Sociedade de Arqueologia Grega em 1837, e, logo depois, a primeira instituição estrangeira na Grécia, a Escola Francesa de Atenas em 1846, sendo seguida por outras de várias nações, como o Instituto Alemão de Arqueologia em 1875, a Escola Americana de Estudos Clássicos em Atenas em 1882, a Escola Britânica em Atenas em 1885. O mesmo se deu na Itália com a fundação da Escola Francesa de Roma em 1873, da Escola Italiana de Arqueologia em 1875, do Instituto Alemão de Arqueologia em 1929. Ainda que estas instituições tenham promovido o surgimento de uma ciência arqueológica e a institucionalização da disciplina, elas significaram também um interesse dos Estados pelo patrimônio monumental de seu passado, levando‑os à apropriação dos mesmos e influenciando, assim, os rumos da pesquisa arqueológica.
A ARQUEOLOGIA NO BRASIL A arqueologia brasileira é uma das pioneiras, apesar de isso parecer pouco provável. Dom Pedro I iniciou a arqueologia brasileira, trazendo para o país os primeiros artefatos arqueológicos, como múmias egípcias e outros materiais. Dom Pedro II casou‑se com uma princesa napolitana e coletou material arqueológico de Pompeia, Etrúria e muitos outros lugares. O Museu Nacional do Rio de Janeiro era projetado para ser rival do Museu Britânico e do Louvre, deixando, assim, de lado a antiga metrópole, Lisboa. O imperador fundou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro contemporâneo e similar à Academia Francesa. Nesse planejamento a arqueologia desempenhava um importante papel, projetada para estabelecer raízes entre ambos, Velho Mundo (arqueologia clássica e egípcia) e Novo Mundo (arqueologia pré‑histórica). Por algumas décadas, a arqueologia foi o centro da ideologia imperial do Brasil e isso explica seu desenvolvimento precoce. O fim da monarquia levou ao declínio da arqueologia durante a República Velha (18891930). Nos anos 1930 a forte influência do nacionalismo deu um novo ímpeto para a história e o patrimônio: o ideal colonial deveria servir para a construção da nação. O período colonial foi escolhido como aquele definidor da sociedade brasileira, em particular durante o período da ditadura fascista do Estado Novo (1937‑1945), mas a arqueologia como uma atividade acadêmica começou nessa época como uma reação contrária ao autoritarismo.
Paulo Duarte (n. 1899) foi uma figura chave nesse movimento. Duarte era um ativista político democrata durante os últimos anos da República Velha e contribuiu para a fundação da primeira universidade brasileira, a Universidade de São Paulo (1934), moldada em uma abordagem humanista de ensino. O Musée de l'Homme serviu de modelo para considerar os povos indígenas como seres humanos igualmente importantes. Como idealista, Duarte tinha um sonho: a criação do Museu do Homem Americano, inspirado pelo exemplo parisiense. Ao retornar ao Brasil, de Paris, Duarte liderou um movimento pelos direitos indígenas e como consequência da arqueologia pré‑histórica, durante o período liberal entre 1945 e 1964. Ele foi capaz de organizar a Comissão de Pré‑História e depois o Instituto de Pré‑História, que ele conseguiu atrelar à Universidade de São Paulo, um movimento muito importante para que a arqueologia pudesse, pela primeira vez, se tornar um ofício acadêmico no Brasil. Devido à sua amizade com Paul Rivet (n.1876), Duarte foi capaz de atrair, pela primeira vez, arqueólogos profissionais para o Brasil, Joseph e Annette Laming‑Emperaire, discípulos de Rivet e pré‑historiadores pioneiros que estudavam arte rupestre como evidência de cultura humana, em oposição à tradicional arte alta e baixa. Isso era parte do movimento humanista decorrente de Lévi‑Strauss, Marcel Mauss e André Leroi‑Gourhan, todos eles enfatizando, de maneiras diferentes, como todos os seres humanos são capazes de representar o mundo com símbolos. De novo, a pré‑história não foi apenas um tema digno de investigação devido a razões intelectuais, mas como uma declaração da humanidade em si: somos todos portadores de cultura. Não é coincidência que a arte rupestre tenha desempenhado um papel especial, pois desenhar em cavernas e inscrever em pedra revela‑se a maior característica humana, a da comunicação. Todos os seres humanos dominam a linguagem.
Logo após o golpe militar de 1964, um Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa) foi acertado em Washington D.C., em coordenação conjunta com as novas autoridades brasileiras e sob a liderança do Smithsonian Institution, sob o comando de Clifford Evan e Betty Meggers. O Pronapa estabeleceu um programa de levantamento ativo por todo o país, particularmente preocupado com áreas estratégicas, contribuindo para o esforço de controle do território no contexto da Guerra Fria. Os princípios teóricos e empíricos eram muito reacionários e anti‑humanistas, promovendo o conceito de que os povos nativos eram preguiçosos e o país pobre devido às condições naturais. Os cinco primeiros anos (n. 1965) foram seguidos por um segundo período na bacia amazônica (Pronopaba). Durante esse longo governo ditatorial, uma rede de arqueólogos criada nessas circunstâncias nefastas moldou o campo, dificultando a liberdade e o humanismo.
A luta contra a ditadura se intensificou nos anos 1970 e em 1979 uma anistia foi concedida pelos militares, o que permitiu a muitos exilados voltarem, partidos políticos foram logo legalizados e as eleições diretas para cargos oficiais em 1982 possibilitaram uma ampla gama de atividades acadêmicas e políticas. O final do governo ditatorial, em março de 1985, marcou assim uma nova fase para o país e para a arqueologia.
TENDÊNCIAS RECENTES É difícil discutir em detalhe os tópicos e assuntos da pesquisa arqueológica, considerando‑se o grande número de publicações e a enorme variedade de assuntos. Talvez a forma mais útil de discutir isso seria abordar os principais assuntos, tais como as ocupações humanas, a mais antiga arte rupestre, outros assuntos pré‑históricos, a arqueologia histórica, a arqueologia clássica, a arqueologia subaquática e a arqueologia pública.
A busca pela presença humana mais antiga no Novo Mundo ganhou força durante o auge da ditadura militar, quando duas propostas antigas foram criadas por duas mulheres de perspectivas muito diferentes: Conceição Beltrão (n.1933) e Niède Guidon (n.1933). Esta última foi bem sucedida no ambiente brasileiro. Nas profundezas do nordeste brasileiro, na mais pobre e atrasada área de sertão do país, Niède Guidon levou a Missão Francesa (1) para um charmoso paraíso natural, a Serra da Capivara, uma região serrana. A Missão Francesa foi para lá estudar arte rupestre, mas um dos primeiros resultados surpreendentes do trabalho de campo nos anos 1970 foi a datação muito antiga de carbono de fogueiras, talvez associadas a vestígios humanos. Essas descobertas iam contra a visão até então aceita de que os humanos chegaram às Américas nos últimos milhares de anos, considerando a chamada evidência Clóvis da América do Norte e datada de 10.000 anos [antes do presente, (AP)]. Isso significava que qualquer data anterior, em particular na América do Sul, poria em questionamento todo o modelo de ocupação das Américas. Hoje em dia, meras três décadas passadas, todos os livros escolares brasileiros se referem a esse sítio muito antigo, a Serra da Capivara. Não é apenas o tema arqueológico mais popular, mas o único bem conhecido por todas as crianças e muitos adultos.
A outra linha de pesquisa sobre ocupação humana segue uma abordagem biológica. Walter Alves Neves (n. 1958), um biólogo e especialista em esqueletos humanos, tem estudado já há muitos anos os mais primitivos vestígios humanos (mais ou menos 9.000 AP). De acordo com seus estudos, os esqueletos provam que houve uma população de pessoas com características africanas, mais tarde substituída pela imigração asiática dos ancestrais dos índios americanos. Ele pôde introduzir o segundo aspecto mais popular da arqueologia brasileira, após a abordagem de Guidon: Luzia, a Lucy brasileira, representada como uma mulher africana.
A arte rupestre também é um assunto importante por duas razões diferentes: as pessoas apreciam pinturas de arte rupestre e é um assunto arqueológico muito elaborado. A influência mais sustentável veio do estruturalismo francês de Leroi‑Gourhan e outros esquemas linguísticos interpretativos. Duas das principais escolas se desenvolveram desde os anos 1970, uma em Minas Gerais, dirigida por André Prous e a outra no Nordeste, liderada por Guidon e Anne‑Marie Pessis (n. 1952), mas também em conjunto a outros acadêmicos, como Dénis e Águeda Vialou no Mato Grasso e Edithe Pereira na bacia amazônica. Guidon e Pessis fomentaram o estabelecimento das assim chamadas tradições de arte rupestre, tentando estabelecer estilos por áreas específicas. Prous misturou seu treinamento como historiador clássico e sua inclinação para a catalogação para promover a produção de uma documentação maciça. Vialou representa a melhor escola de linguística francesa.
Outras questões pré‑históricas também são relevantes. A colonização da Amazônia passou a ser tema de particular relevo e importância, por diversos motivos, dentre os quais a possibilidade de entender melhor o meio‑ambiente antigo e atual. Desde os anos 1950 e 1960, Betty Meggers (n. 1921) e Donald Lathrap (n. 1927) discutiam muito sobre a floresta amazônica, tanto ela, quanto ele. Meggers morreu há pouco tempo e defendeu até a morte não apenas que a América Latina seria para sempre atrasada e subdesenvolvida, mas também que a floresta tropical era um paraíso falso, iludindo trabalhadores árduos a se tornarem índios preguiçosos. Primeiro Lathrap, depois Anna Roosevelt (n. 1946) iriam desafiar isso e propor a Amazônia como um enorme ambiente abrigador de ocupações. Roosevelt, a partir dos anos 1990, adicionou questões de gênero na equação e propôs um papel de relevância para a mulher no passado pré‑histórico do Brasil. Outros, como Eduardo Goes Neves, têm focado no trabalho de campo e na possível identificação de padrões de ocupação e rotas de migração, enquanto Denise Schaan focou no simbolismo e Denise Cavalcante Gomes em uma análise refinada do acabamento de cerâmica e padrões de ocupação.
A arqueologia histórica desenvolveu‑se tardiamente no Brasil. A disciplina começou, assim como nos EUA, com um culto às elites, mas logo os estudos arqueológicos foram dirigidos para as missões jesuítas no sul do Brasil, buscando descobrir como os índios guaranis e os padres missionários conviviam. A arqueologia nos quilombos iniciou‑se no mesmo período, meio e final dos anos 1980, explorando essas preocupações nas áreas de mineração no século XVIII em Minas Gerais. Quando a democratização ganhou espaço, a arqueologia histórica passou a se preocupar com os mais icônicos patrimônios públicos, Palmares século XVII e Canudos final do século XIX. A arqueologia brasileira foi desafiando velhos discursos estabelecidos para um povo brasileiro pacífico, simplesmente satisfeito em aceitar a ordem social, inclusive a escravidão. Palmares é o quilombo mais duradouro, ativo por diversas décadas (1605‑1694). Depois do restabelecimento do regime civil em março de 1985, o sítio foi logo tombado como patrimônio nacional. A arqueologia começou no início dos anos 1990 e seus resultados são inovadores por terem sustentado uma discussão social sobre a sociedade brasileira. Evidências arqueológicas de utensílios indígenas, assim como cerâmicas cotidianas, levaram à discussão sobre o pano de fundo social dos movimentos populares e sua significação para a sociedade brasileira, uma democracia multiétnica e com raízes africanas. Mais recentemente, questões de gênero também vêm sendo estudadas nesse deslocamento de questões relevantes para a sociedade. Canudos, a revolução popular mais famosa do fim do século XIX, era uma comunidade católica independente (1893‑1897). A área foi mais tarde submersa por uma represa e, então, nos anos 1990, Paulo Zanettini foi capaz de conduzir lá um trabalho de campo, contribuindo para um melhor entendimento de ambos os lados, dos revoltosos e das forças repressoras. De novo, houve uma contribuição para a discussão sobre a sociedade brasileira, em particular alguns aspectos como religiosidade, sociedades alternativas, mas também violência e ditadura, graças à arqueologia.
Desde então, a arqueologia histórica tem explorado diversos outros temas, tanto o estudo da ditadura e da repressão, quanto da cerâmica, da arquitetura e ainda estudos em relação a gênero, etnia e outras questões relevantes à sociedade atual. A arqueologia subaquática desenvolveu‑se, de novo, apenas recentemente graças à comunidade francófona. A arqueologia tem sido ativa em fomentar a interação entre arqueólogos e pessoas comuns, buscando produzir material acadêmico relevante para a sociedade como um todo e para grupos específicos. A arqueologia brasileira tem sido bastante ativa nessa área e agora está sendo reconhecida como um dos principais contribuidores para o avanço da disciplina na arqueologia pública mundial e isso está relacionado às condições sociais no Brasil, cujas características contraditórias revelam mais do que o observador estrangeiro possa perceber. Publicações como a revista Arqueologia Pública e muitos outros livros, teses de doutorado e artigos atestam o desenvolvimento da arqueologia pública no Brasil e suas contribuições para a disciplina além das fronteiras brasileiras.
A PERSPECTIVA Quais são as possíveis conclusões e perspectivas para o futuro? Tanto no mundo, como no Brasil, o panorama para a disciplina é brilhante. De uma atividade marginal, a arqueologia tem sido capaz de ser, ao mesmo tempo, uma atividade relevante para a academia e para a sociedade. Começou como uma ação aristocrática no século XIX e apenas no meio do XX começou sua relevante trajetória, tanto acadêmica, quanto social. Nos últimos vinte anos, mais ou menos, a arqueologia no Brasil se expandiu de forma exponencial e tem tudo para progredir de forma ainda mais dinâmica no futuro.
Pedro Paulo A. Funari é professor titular do Departamento de História e Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
NOTA BIBLIOGRÁFICA
1. Desde 1973, um programa de pesquisas arqueológicas vem sendo realizado em São Raimundo Nonato, no Piauí, formalizado como Missão Franco‑Brasileira no Piauí em 1978.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Pearsall, D.M.; Funari, P. P. A. (Orgs.). Encyclopaedia of archaeology (Academic Press), 3 volumes. Oxford: Academic Press (Elsevier). Vol.3. 2382p. 2007.