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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013
http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200013
Por uma arqueologia subaquática que vai além dos naufrágios: o caso do arquipélago de São Pedro e São Paulo
Flávio Rizzi Calippo
Gilson Rambelli
Paulo Fernando Bava de Camargo
A arqueologia subaquática, segundo Rambelli (1), nada mais é do que uma versão "molhada" e obediente da arqueologia, na qual o arqueólogo tem de adaptar métodos e técnicas para poder estudar os vestígios materiais que, normalmente, se encontram submersos nos mares, rios, lagos e demais corpos d'água. Ao longo das últimas décadas esse ramo da arqueologia passou por intensas transformações, as quais fizeram com que os pesquisadores desenvolvessem novas abordagens teóricas e expandissem o conjunto de dados por ela abordados.
Acompanhando as tendências internacionais, além dos estudos dos naufrágios, os arqueólogos subaquáticos brasileiros vêm se preocupando também com todos os contextos que, de uma forma ou de outra, conectam‑se ao estudo das embarcações afundadas. Nesse sentido, passam, a partir da última década, a ser foco dos estudos as áreas portuárias, os estaleiros, as rotas de navegação, as técnicas construtivas, as práticas e simbolismos das gentes do mar, as áreas de produção/manufatura de mercadorias.
Do ponto de vista teórico, os naufrágios deixaram de ser vistos apenas como um conjunto de destroços para serem entendidos como um espaço de onde podem ser recuperados conhecimentos a respeito dos indivíduos, dos grupos sociais e das nações responsáveis pela construção e uso das embarcações afundadas. Nesse contexto, passaram a ser abordadas não só as embarcações de importância histórica, mas, também, os barcos, as canoas e os vestígios deixados pelas comunidades pescadoras, incluindo as suas artes de pesca.
O foco dos estudos se expande para além dos ambientes aquáticos e passa a abranger todo o conjunto de relações sociais, econômicas e simbólicas associadas aos processos que se encerram com a submersão das embarcações ou de qualquer outro objeto, tais como sítios pré‑históricos afogados pela elevação do nível do mar. Surgem, nessa reconfiguração do olhar do arqueólogo subaquático, outros que não necessariamente ficam restritos aos ambientes subaquáticos. Estamos falando de arqueologias náutica, costeira, fluvial, marítima, ribeirinha e assim por diante. Com o propósito de apresentar um caso prático dessas novas possibilidades de se analisar o patrimônio cultural subaquático, apresentamos, a seguir, caso do Projeto Arqueologia Subaquática do Arquipélago de São Pedro e São Paulo.
O ARQUIPÉLAGO DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO O arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP) é um pequeno conjunto de rochedos que se localiza a 1.100 quilômetros de Natal (RN), a um terço da distância entre a costa brasileira e a africana, aproximadamente. Esse conjunto de ilhas é, na verdade, o topo de uma cadeia de montanhas submarinas que divide o oceano Atlântico ao meio (Cordilheira Meso‑oceânica) e que agrega a sua volta uma enorme quantidade de recursos naturais vivos e não vivos.
Interessado na exploração desses recursos e na inclusão de uma porção dessa cordilheira como parte da Zona Econômica Exclusiva (ZEE) brasileira, o Brasil estabeleceu, através da Comissão Interministerial dos Recursos do Mar (CIRM), nos rochedos de São Pedro e São Paulo, uma estação científica destinada a manter permanentemente uma equipe de civis (condição obrigatória para o reconhecimento dessa área como território nacional), formada por pesquisadores que se revezam a cada quinze dias.
O arquipélago, no entanto, sempre foi uma área visitada. Além dos inúmeros relatos de navios e expedições que por lá passaram desde o início do século XVI, há pelo menos cem anos existe uma presença constante de embarcações que exploram a abundante quantidade de recursos pesqueiros que ali existem. Uma presença que, embora tenha sido utilizada como argumento para se pleitear o reconhecimento do arquipélago como território nacional, não é valorizada. Pelo contrário, aos pescadores, que contribuem significativamente para a manutenção do próprio Programa Pró‑Arquipélago, é imputada a culpa pelos impactos e poluição que se formam ao redor das ilhas.
Tendo esse cenário como pano de fundo, o Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática da Universidade Estadual de Campinas (Ceans/Unicamp), em parceria com o Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e o Oceanário de Pernambuco (ONG), desenvolveu, entre 2004 e 2006, sob a coordenação de Gilson Rambelli, um projeto de pesquisa intitulado Projeto Arqueologia Subaquática do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, o qual tinha como principal objetivo o levantamento de todos os vestígios arqueológicos no arquipélago e nas regiões subaquáticas adjacentes a ele.
A IMPORTÂNCIA GEOPOLÍTICA E HISTÓRICA DO ARQUIPÉLAGO A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), em vigor desde 1994 e ratificada por 148 países, inclusive pelo Brasil, estabelece que, no mar territorial, todos os bens econômicos existentes no seio da massa líquida, sobre o leito do mar e no subsolo marinho, constituem propriedade exclusiva do país ribeirinho. Estabelece ainda que, ao longo de uma faixa litorânea de 200 milhas náuticas de largura, chamada de Zona Econômica Exclusiva (ZEE), esses bens podem ser explorados com a mesma exclusividade. Porém, especificamente ao Regime de Ilhas, o artigo 121 da Convenção, em seu parágrafo 3º, afirma que: "os rochedos que por si próprios não se prestam à habitação humana ou à vida econômica não devem ter Zona Econômica Exclusiva nem Plataforma Continental (2). Assim, o desenvolvimento do Programa Arquipélago, a partir da garantia da presença humana permanente, além da geração contínua de informações científicas, contribui, de forma decisiva, para o efetivo estabelecimento da Zona Econômica Exclusiva brasileira no entorno do ASPSP, como reza a CNUDM (3).
Nesse contexto, as informações geradas pelas pesquisas em desenvolvimento no ASPSP constituem importante ativo de negociação em outros fóruns internacionais. Depreende‑se, portanto, que o arquipélago de São Pedro e São Paulo, além de constituir ecossistema único para o desenvolvimento de pesquisas científicas, possui grande importância ecológica, econômica, social e política para o Brasil.
A partir de 2004, com o desenvolvimento do Projeto Arqueologia Subaquática do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, a composição dessa gama de ativos de negociação passou também a contar com o apoio das questões relativas ao patrimônio cultural subaquático, amparado pela Convenção da Unesco para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (respaldada, na íntegra, pela CNUDM). Além de realizar pesquisas arqueológicas subaquáticas, esse projeto procurou também trazer ao Programa Arquipélago discussões referentes à proteção e à gestão de tal patrimônio. Neste sentido tentou‑se, reiteradamente, explicitar as complicações que o Brasil teria com relação à possibilidade do enfraquecimento de seus ativos de negociação em decorrência de sua posição de permitir e legitimar a comercialização de seu patrimônio cultural submerso, graças a uma legislação retrógrada e inconstitucional, a qual segue na "contramão" das normativas da ONU.
Além da questão política sobre a preservação e gestão do patrimônio cultural submerso, o Projeto Arqueologia Subaquática do ASPSP se preocupava tanto com a interpretação dos vestígios materiais deixados pelas diversas embarcações que lá chegaram, assim como com as discussões a respeito da presença dos grupos sociais que mais recentemente vinham ocupando o arquipélago. Nesse sentido, deu‑se especial atenção ao papel social e político de pesquisadores e pescadores no estabelecimento de uma presença de vida humana permanente.
Sob tal perspectiva, devemos ressaltar ainda a importância histórica do arquipélago de São Pedro e São Paulo, cuja data do descobrimento é incerta: os registros históricos portugueses dizem que os rochedos foram descobertos por acaso, em 1511, pelo navegador português Manuel de Castro Alcoforado, capitão da caravela São Pedro, a qual se desgarrou da esquadra, comandada por D. Garcia de Noronha e se chocou com os rochedos. Tendo sido salva por outra caravela da mesma esquadra, chamada São Paulo, decorreria o nome do arquipélago (4). Já os registros históricos espanhóis, indicam que o primeiro registro de avistamento foi feito em 1513, pelo navegador espanhol Juan da Nova de Castello.
O primeiro registro em uma carta náutica só ocorre em 1538, na carta náutica mundial de Mercator, apesar dos registros náuticos portugueses atribuírem a autoria de tal fato ao navegador português Diego Ribeiro, em 1529. Especificamente quanto a esse fato, existe outra versão: os penedos teriam aparecido, pela primeira vez, na carta de Jorge Reinel, feita em 1519, com o nome abreviado em "San Po", posteriormente, interpretado como São Paulo.
Mesmo sendo conhecido desde o século XVI, um desembarque nos rochedos só foi concretizar‑se no século XVIII, com o navegador francês Beuvet du Losier, em 1738 e, mais tarde, em 1799, com o navegador americano Amasa Delano, tripulante do S. Y. Perseverance. A primeira carta náutica do local foi elaborada em 1813, pelo capitão‑tenente George Crichton, oficial do H.M.S. Rhin (5). Os interesses dos naturalistas parecem ter se iniciado no século XIX, com o desembarque de Charles Darwin, em 1831, durante a sua viagem científica ao redor da Terra a bordo do R.V. Beagle (Inglaterra).
Em 1930, o navio Belmonte, da Marinha do Brasil, instalou o primeiro farol de auxílio à navegação, apontando, talvez, o início de uma preocupação estratégica brasileira com relação aos rochedos. No entanto, somente em 1996 é que o governo brasileiro, através da Comissão Interministerial de Recursos do Mar (Cirm), criou, com o principal propósito de instalação de uma estação científica na ilha Belmonte, o grupo de trabalho permanente para ocupação e pesquisa no ASPSP. Com a inauguração da Estação Científica do Arquipélago de São Pedro e São Paulo (ECASPSP), em 1998, iniciam‑se os trabalhos de pesquisa científica promovidos pelo Programa Arquipélago de São Pedro e São Paulo (PRO‑Arquipélago). A instalação e ocupação da Estação Científica do ASPSP "proporcionaram ao Brasil a consolidação da habitação permanente na região e a soberania na exploração dos recursos situados na área de 200 milhas da ZEE" (4).
O PROJETO ARQUEOLOGIA DO ARQUIPÉLAGO DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO Diante da localização de evidências arqueológicas submersas que representam testemunhos únicos da atividade humana náutica, em uma área de importância estratégica nacional, o Ceans, na época parte do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp), entendeu a necessidade de viabilizar um projeto de pesquisa para estudar sistematicamente esses vestígios. O projeto foi avaliado e autorizado pelo comitê científico do programa Pró‑Arquipélago de ASPSP, com a ressalva de necessidade de cumprimento da Norma de Autoridade Marítima Nacional (Norman 10).
Tendo em vista a necessidade de se rediscutir essa legislação (pois a referida norma é legitimada pela Lei Federal 10.166/00, que altera a Lei Federal 7542/86, que foi criada para atender uma demanda de exploração comercial dos bens culturais submersos, o que contradiz os princípios fundamentais da arqueologia e, em específico, da arqueologia subaquática, pois, o patrimônio cultural subaquático representa uma herança comum e não pode ser explorado em benefício de iniciativas privadas), o Ceans e seus parceiros, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), estabeleceu uma série de contatos com a Marinha do Brasil (Secirm e DPC), visando justificar as atividades científicas pretendidas no ASPSP, as quais, de modo algum, estariam ligadas a interesses comerciais sobre os vestígios arqueológicos. Esse processo durou quase dois anos, inviabilizando quase todas as etapas de campo planejadas. Somente em fevereiro de 2006, às vésperas da última possibilidade de realizar uma expedição, é que a autorização foi concedida.
O Projeto Arqueologia Subaquática do Arquipélago de São Pedro e São Paulo deve ser entendido também como uma ação que propiciou à Marinha a oportunidade de se posicionar e criar procedimentos que efetivamente amparassem a prática da arqueologia subaquática científica. Isso porque, até então, eram feitas, mesmo para a realização de pesquisas arqueológicas subaquáticas acadêmicas, as mesmas exigências feitas às companhias de petróleo ou às empresas de salvatagem. Exigências que evolvem uma logística tal como, por exemplo, navio com câmara hiperbárica a bordo totalmente incompatível com o risco e com a magnitude das operações subaquáticas intrínsecas às pesquisas arqueológicas em ambientes submersos.
Após a batalha inicial pela realização do projeto, ele se inicia a partir da compreensão de que a arqueologia molhada ou não é uma ciência social que encontra sua sustentação na teoria social e de que as interpretações arqueológicas sobre o passado não estão desvencilhadas das influências dos contextos social, político e cultural contemporâneos ao próprio arqueólogo (6).
Tal perspectiva sugere uma posição mais ativa do pesquisador, pois ele assume o papel de mediador entre os restos de um passado, que não existe mais, e o seu presente. Logo, a sua interpretação do passado, enquanto produção do conhecimento, não só é subjetiva, carregada de intencionalidade, como também varia como toda interpretação de pesquisador para pesquisador, de tempos em tempos, em um fluxo contínuo de transformações e mudanças (6).
A aceitação dessa concepção de realidade subjetiva, e não mais da realidade objetiva ("verdade"), deve‑se à constatação de que não existe a "verdade" no passado, pois ela está localizada no presente, como resultado de uma construção cultural de um determinado momento, politicamente orientado (6). Assim, a arqueologia pode e deve "ouvir", através da análise e interpretação da cultura material, as vozes caladas ou pouco pronunciadas das pessoas comuns em seus cotidianos, dos oprimidos, enfim dos excluídos do processo elitista de construção da história oficial. Tal privilégio de acesso às ações e aos conflitos sociais passados, representados, consciente e/ou inconscientemente, pelos mais diferentes indivíduos de uma sociedade, através da cultura material, lhe garante o título da mais democrática das ciências sociais (7).
Assumindo essa abordagem social como referência, o primeiro passo no sentido de iniciar as pesquisas foi a adoção de uma postura que reconhecesse e valorizasse os saberes e as práticas tradicionais das comunidades pescadoras. Desse modo, logo de início, toda e qualquer atividade de mergulho foi planejada em colaboração com o mestre da embarcação que dava apoio à expedição. Decisão tomada não só em consequência do amplo conhecimento empírico dos pescadores a respeito da circulação hidrodinâmica (da superfície e em profundidade) ao redor do arquipélago, mas, principalmente, em respeito e em reconhecimento aos conhecimentos empíricos da vivência desses homens do mar (maritimidade). Para esse projeto tais saberes foram de fundamental importância para a eficiência e segurança das operações de mergulho. A capacidade de estimar com precisão a velocidade e a direção das correntes em profundidade, adquiridas através de anos de lançamento, perda e retirada de armadilhas de pesca, permitiram que escolhêssemos, dia a dia, os pontos de mergulho mais seguros e produtivos. Além disso, através da predisposição em colaborar, da prática de mar e do conhecimento dos pescadores a respeito da alteração dos fenômenos ambientais (mudança de sentido e direção dos ventos/ondas, intensificação das correntes etc) o conhecimento deles permitiu‑nos realizar um planejamento mais preciso das imersões, mesmo em um período onde intensas tempestades atingiram o local.
Como definido no Plano de Atividades de Mergulho, que consta no Termo de Responsabilidade para o Desenvolvimento de Atividades de Mergulho Autônomo no ASPSP, as operações subaquáticas objetivaram, primordialmente, localizar, registrar e mapear, através de fotos, desenhos e croquis, os vestígios arqueológicos que se encontravam submersos em apenas alguns pontos específicos.
RESULTADOS Devido às questões atmosféricas, foi possível realizar apenas 14 mergulhos, que equivalem a 29 horas/mergulhador de trabalho subaquático. No entanto, apesar das restritas horas de fundo, o Projeto Arqueologia Subaquática do ASPSP conseguiu um resultado preliminar considerável ao obter uma visão inicial dos conjuntos de evidências arqueológicas que ocorrem na enseada e ao sul da ilhota São Paulo . Levantamento este que teria sido impossível sem o conhecimento tradicional dos membros da tripulação do barco Transmar II e do mestre Bento.
De uma maneira geral, foram identificadas duas áreas principais de ocorrências de vestígios. Na área 1, localizada internamente às ilhas, foram encontrados vestígios que parecem apontar para dois conjuntos de evidências arqueológicas: um, formado por vestígios materiais relativos a poitas (pesos para ancoragem de boias) e estruturas de experimentos abandonados por pesquisadores, bem como resíduos da construção e ocupação da Estação Científica (sapatas circulares de concreto para sustentação da base científica, fragmentos de canos, cabos etc); e outro, composto por elementos cronologicamente mais antigos (como uma âncora e fragmentos de garrafa em grés). Vestígios que reforçam a ideia de que todo o abandono e/ou descarte de materiais e equipamentos é fruto da ação dos próprios pesquisadores e marinheiros que trabalham no arquipélago. Não foram identificados quaisquer vestígios que possam ser atribuídos aos pescadores, tornando claro que a crítica que a eles é feita como sendo os principais poluidores é, no mínimo, infundada, se não, preconceituosa.
Já na área 2, localizada à sudeste das ilhotas, os vestígios parecem indicar um contexto mais diretamente relacionado ao universo náutico: foram localizados quatro canhões de pequeno porte; uma série de objetos metálicos; duas âncoras; fragmentos de chapas de metal, utilizadas para recobrir externamente cascos de madeira e datadas como posteriores ao início do século XVIII. Além desses, foram identificados: um tipo de "ilhós" ou "papoilas"; e fragmentos de um cabrestante. Essa segunda área de ocorrência foi denominada sítio São Pedro e São Paulo I, por representar um sítio arqueológico com um contexto cronologicamente bem definido pelos vestígios materiais, onde as evidências apontam para a ocorrência de uma ou mais embarcações construídas entre fins do século XVIII e a primeira metade do século XIX.
As âncoras são do tipo almirantado com cepo metálico móvel e fazem parte de uma tecnologia associada já a meados do século XIX. O cabrestante encontrado é uma peça metálica, mas de acionamento originalmente manual. Essas duas características do instrumento utilizado para largar ou recolher os ferros, indicam, possivelmente, uma peça de um período de hibridismo, quando a grande difusão do metal na construção naval ainda convivia com um baixo índice de mecanização dos equipamentos de bordo. Entre as âncoras e o cepo, foi encontrado um "ilhós" ou "papoilas, peça por onde correm os cabos e correntes das âncoras. Esse fato nos leva a supor que estamos lidando com um único equipamento de ancoragem de uma embarcação de modestas proporções, tendo em vista as reduzidas dimensões desse conjunto.
Foram encontradas quatro peças de artilharia, de ferro, de antecarga, de reduzidas dimensões, variando entre 1,5 m e 1,6 m. Embora a artilharia esteja bastante deteriorada, suas formas e dimensões indicam armas feitas já dentro da lógica da simplificação dos padrões decorativos, abandonando as molduras e chanfrados característicos até fins do século XVIII. Detalhe que confirma essa periodização é que uma das peças parece possuir um anel do vergueiro alça da culatra onde era passada uma corda a fim de segurar o coice e minimizar o recuo da peça partido. Esse conjunto, num primeiro exame avaliado como bastante homogêneo em termos tipológicos, seria comum em pequenas embarcações de guerra ou em navios mercantes até a primeira metade do século XIX. Assim, é plausível aventar a hipótese de que o conjunto de ancoragem seja contemporâneo ao conjunto de armas.
Além das evidências materiais, corroboram para essa periodização as informações textuais sobre o arquipélago, que indicam um aumento do número de embarcações ancorando em suas proximidades no século XIX, decorrentes, em primeiro lugar, do maior tráfego de embarcações no Atlântico Sul, a partir de fins do século XVIII (8) e da intensificação do número de expedições exploratórias e científicas empreendidas pelos países europeus e pelos Estados Unidos no decorrer do século XIX.
Dessa forma, apesar da pequena quantidade de evidências levantadas, fica claro que estamos lidando com um contexto arqueológico bem definido na área 2, situado entre fins do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Assim, é possível estabelecer a hipótese de que se trata de um sítio arqueológico formado a partir do naufrágio de uma ou mais embarcações oitocentistas, talvez pequenos navios de guerra ou barcos mercantes artilhados, estes destinados a inúmeros fins: comércio de produtos, corso, contrabando ou ao tráfico de escravos.
Flávio Rizzi Calippo é professor do curso de arqueologia e conservação de arte rupestre e dos Programas de Pós‑Graduação em Arqueologia (PPGArq) e Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Email: calippo@ufpi.edur.br
Gilson Rambelli é professor adjunto do Núcleo de Arqueologia e dos Programas de Pós‑Graduação em Arqueologia (Proarq) e Antropologia (NPPA) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Email: rambelli@arqueologiasubaquatiica.org.br
Paulo Fernando Bava de Camargo é pesquisador colaborador (pós‑doutoramento) do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Email: pfbavac@arqueologiasubaquatica.org.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Rambelli, G. "A arqueologia subaquática e sua aplicação à arqueologia brasileira: o exemplo do baixo vale do Ribeira de Iguape". Dissertação de mestrado em arqueologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), São Paulo, 1998.
2. Carvalho, R. G. "A outra Amazônia". In: A Amazônia azul. Ministério da Educação, pp.17‑24. 2005.
3. Porto, M. A. C.. "Arquipélago de São Pedro e São Paulo". In: A Amazônia azul. Ministério da Educação, pp.74‑80. 2005.
4. Silveira, S.R.; Farias, S.G.S.; Silva, M.V.; Silva, L.C.; Almeida, A.V. ; Amaral, F.D. "Aspectos históricos da biologia marinha do arquipélago de São Pedro e São Paulo". Monografia de conclusão do curso de biologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). 2003.
5. Campos, T. F. C.; Neto, J. V.; Srivastava, N. K.; Petta, R. A.; Hartmann, L. A.; Moraes, J. F. S.; Mendes, L.; Silveira, S. R. M. "Soerguimento tectônico de rochas infracrustais no Oceano Atlântico". In: Arquipélago de São Pedro e São Paulo, pp.253‑265. 2005.
6. Acuto, F. A. & Zarankin, A. "Introducción: aun sedientos". In: Zarankin, A.; Acuto, F. A. (Org.). Sed non satiata: teoría social en la arqueología latinoamericana contemporánea. Buenos Aires: Ediciones del Tridente, pp.7‑15. 1999.
7. Funari, P. P. A.. "Brazilian archaeology and world archaeology: some remarks". In: World Archaeology Bulletin, n-º 3, pp.60‑68. 1989.
8. Bastos, A. C. T. Revolução e o imperialismo. Rio de Janeiro: Typ Universal Laemmert. 1866.