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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo  2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000100002 

     

    Reprogramação celular e medicina personalizada

    Mário André C. Saporta
    Stevens K. Rehen

     

     

    Nas últimas décadas houve uma revolução na forma como coletamos e analisamos dados. Progressos no campo da informática e da internet associados à criação das redes sociais tornaram a informação imediatamente disponível, em quantidade nunca antes imaginada.

    No campo da biologia não foi diferente. Já é possível, por exemplo, sequenciar o genoma completo de um indivíduo pelo preço de uma televisão de última geração. No momento em que escrevemos este artigo, podemos vasculhar nosso DNA em busca de pistas sobre a origem e os mecanismos de doenças. Assim, suscetibilidades individuais para doenças ou para efeitos adversos a medicamentos podem ser identificados e definirão as futuras estratégias para prevenção e tratamento individualizado.

    Novas técnicas prometem revolucionar ainda mais o conceito de medicina personalizada. A principal delas chama-se reprogramação celular. Como um código de software, a informação genética de uma célula pode ser editada através do uso de ferramentas de biologia molecular. Vírus produzidos para carregar informações genéticas específicas, por exemplo, podem realizar esta edição no código genético das células. Em 2007, o pesquisador japonês Shinya Yamanaka conseguiu, pela primeira vez, "reprogramar" células humanas, fazendo-as assumir características de células-tronco embrionárias, utilizando justamente essa estratégia.

    Apenas 5 anos se passaram para que Yamanaka fosse reconhecido com o prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia, em 2012. A grande revolução causada a partir de seus resultados advém de três características das células-tronco reprogramadas, também conhecidas como células-tronco de pluripotência induzida (iPS). Como células embrionárias, as células iPS podem se transformar em todos os tipos celulares presentes em um indivíduo adulto, incluindo neurônios, células do músculo cardíaco, células do fígado, rim, pulmões etc.

    O principal trunfo, que as coloca no topo da pirâmide dos modelos de estudo em biologia atualmente, é o fato de que preservam todas as características genéticas do indivíduo do qual foram retiradas para a reprogramação. Dessa forma, é possível estudar células do cérebro, coração, fígado ou qualquer outra parte do corpo de indivíduos das mais variadas idades, acometidos por diferentes enfermidades, preservando os fatores biológicos associados ao desenvolvimento da doença em questão. Outra vantagem é permitir o estudo de tipos celulares cuja obtenção era antes inacessível a partir de pacientes vivos. O principal exemplo são os neurônios, componentes do tecido nervoso e presentes no cérebro, tronco cerebral e medula espinhal. A retirada de neurônios de indivíduos vivos é extremamente arriscada, não só pela posição protegida que ocupam, dentro do crânio ou da coluna vertebral, mas principalmente pelo risco de sequelas graves após sua remoção dos circuitos funcionais a que estão integrados.

    Tomando-se ainda como exemplo a neurologia, poucos são os tratamentos disponíveis que vão além do controle momentâneo dos sintomas e que ofereçam a chance real de cura para os pacientes. Isso é ainda mais verdadeiro para doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson, Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) e outras formas graves de enfermidades do sistema nervoso central.

    O uso da reprogramação celular para geração e estudo de neurônios humanos promete modificar esse cenário ao oferecer um modelo para a identificação em alta escala de novos tratamentos com ação nos mecanismos causais das doenças e não apenas em seus sintomas.

    Semelhante ao que é feito atualmente para determinar qual o melhor antibiótico a ser utilizado para tratar uma infecção, quando testam-se diferentes compostos em culturas de bactéria, culturas de neurônios poderão ser utilizadas para determinar qual medicação será mais eficaz para tratar a doença de Parkinson em um paciente específico. Além disso, células musculares cardíacas derivadas de células reprogramadas poderão ser utilizadas para identificar quais fármacos são seguros, eficazes ou perigosos, de um ponto de vista cardiovascular.

    Da mesma forma, testes visando o desenvolvimento de novos tratamentos em medicina têm se concentrando no uso de grandes números de pacientes para determinar, estatisticamente, a eficácia de medicamentos. Por outro lado, o sistema é suscetível a falhas na identificação de subgrupos que poderiam se beneficiar desses mesmos tratamentos. Certos indivíduos possuem características genéticas que ajudam a prever a resposta a medicações específicas. Em oncologia, algumas medicações foram julgadas inicialmente ineficazes, mas ao se analisar subgrupos com características específicas, observou-se que o medicamento poderia ser eficaz. Com o advento das células reprogramadas, o mesmo poderá ser vislumbrado para muitas outras situações. Já há estudos sendo publicados justamente com ênfase na medicina personalizada a partir da reprogramação celular.

     

     

    A última fronteira para as células reprogramadas é o seu uso em terapia celular. No futuro, indivíduos com doenças neurodegenerativas, infarto do miocárdio, insuficiência renal ou hepática, apenas como alguns exemplos, poderão ter células reprogramadas, diferenciadas no tipo celular necessário, transplantadas no seu organismo. Este ano, o primeiro teste clínico utilizando células reprogramadas recebeu autorização do governo japonês para ter início. Neste estudo, pacientes com degeneração macular receberão injeções com células reprogramadas como forma de evitar a perda de visão.

    A reprogramação celular oferece um novo paradigma para a medicina, direcionando o tratamento não para a doença, mas para o paciente.

     

    Mário André C. Saporta é médico neurologista e pesquisador associado do Laboratório Nacional de Células-Tronco (LaNCE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fez seu pós-doutorado em neurogenética e reprogramação celular em San Francisco, EUA.
    Stevens K. Rehen é biólogo, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e pesquisador do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino. Coordenador do LaNCE/ UFRJ.