SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 issue3 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.67 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602015000300008 

    MUNDO
    REVITALIZAÇÃO URBANA

     

    Nem tudo lixo, nem tudo flores: a transformação do bairro colombiano Moravia

     

     

    A segunda maior cidade da Colômbia, Medellín, com 2,5 milhões de habitantes, que carrega na sua história episódios de narcotráfico com intensas reverberações mundiais, adquiriu o título de "Innovative City of the Year 2013", em concurso promovido pelo Citi Group, pelo jornal The Wall Street e pelo Urban Land Institute.

    Em detrimento da imagem que a caracterizava como uma das cidades mais violentas do mundo, Medellín passou a ser reconhecida pela transformação decorrente de ações sociais empreitadas. Algumas medidas, por exemplo, inspiraram uma série de iniciativas implementadas pelo governo do Rio de Janeiro no processo de "pacificação" de algumas regiões da capital fluminense.

    "Moravia guarda em seu interior parte da história da cidade de Medellín, porque, como bem disse um morador, seu solo é o passado de toda a cidade. Ali, no setor do 'morro', foram depositados desde 1977 até 1984 os resíduos da cidade [...] Este fato desencandeou um fenômeno social e cultural sem precendentes, o qual se converteu em um elemento de identificação e representação urbana, tão marcado que o nome Moravia ainda é associado mentalmente ao antigo lixão", afirmam Eduardo Barrera, Erika Arias e Herman Gil em "Moravia: memorias de un puerto de urbano", trabalho resultante da pesquisa desenvolvida pela equipe de Memória e Patrimônio da Secretaria de Cultura Cidadã, de Medellín, em 2005.

    O bairro de Moravia, por ser um setor estratégico em Medellín em virtude de sua localização no contexto urbano, de sua dinâmica econômica e de sua acelerada transformação espacial é um dos principais representantes desse processo e da própria história da cidade, descrevem Barrera e colegas.Localizado na parte norte do centro da cidade, com 45 mil hectares e 45 mil habitantes, aproximadamente, Moravia desperta curiosidade mundialmente. A fama da região advém por ser símbolo de revitalização urbana após ser palco de um imenso lixão a céu aberto e por já ter sido cenário de enfretamentos e disputas entre Estado, grupos armados e milícias; um passado recente caro à Colômbia.

    Como toda grande intervenção urbana, a de Moravia traz à tona marcas que narram processos de ocupação, resistência, luta, falta de planejamento, descaso, disputas políticas, jogos de interesses, mas também um movimento que pode parecer avesso às transformações humanas no ambiente: de lixão à área verde. Como é comum na maioria dos lixões a céu aberto, Moravia não contava com nenhum sistema de drenagem ou de tratamento de lixiviados, além das demais precariedades urbanas intrínsecas a esse contexto.

     


    Clique para ampliar

     

    Moravia foi decretada como bairro em 1993, mas sua ocupação informal e irregular remonta a meados de 1950, decorrente da desregrada migração campo-cidade causada pela urbanização e pela violência no campo. A região já era carente de serviços básicos quando, em 1977, nela intensificou-se o despejo de resíduos e foi iniciada a criação de um grande morro de lixo, conhecido como El Morro. Esse fato provocou um aumento maciço no seu processo ocupacional. Em 1984, foi dado como encerrado o lixão, mas El Morro já estava em média com 35 metros de altura, uma base de 10 hectares, onde eram depositados mais de 500 mil quilos de lixo por dia e com 15 mil pessoas vivendo no seu entorno.

     

     

    Na história do bairro colombiano há várias tentativas de aproximação entre a comunidade e o Estado, interrompidas pela falta de continuidade das políticas e dos acordos iniciados ou pelas estremecidas ações públicas na região. Os resultados eram levantes populares, enfrentamentos violentos e o surgimento de grupos de poder paralelo. Dentre eles, está um dos principais protagonistas do narcotráfico colombiano, Pablo Escobar, que teve grande empoderamento ao intervir na constituição do bairro, respaldar grupos locais e oferecer melhorias em geral, como as luminárias do campinho de futebol. Na década de 1980, Escobar foi responsável também por transladar cerca de 300 famílias de Moravia para outro assentamento por ele financiado - Medellín sin Tugurios, conhecido informalmente por Pablo Escobar -, após um episódio de repressão do Estado à comunidade quando do assassinato do então ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, cuja autoria é atribuída ao grupo do narcotraficante.

    Para a implementação do Plano Parcial de Melhoramento Integral do Moravia (2004-2011), desenvolvido pela prefeitura, retomou-se um processo de aproximação com a comunidade para dar início a ações no âmbito de desenvolvimento urbano, social, econômico, cultural e ambiental na região. Dentre as ações propostas está "Moravia florece para la vida", realizada em parceria com 17 entidades, como o Parque Explora e a Cátedra da Unesco de Sustentabilidade, que prevê uma intervenção socioambiental e o tratamento do lixiviado por meio de fitorremediação via participação ativa da comunidade.

    Somente em 2006, Moravia foi decretada como zona de calamidade pública pelo Ministério do Interior e da Justiça. Segundo a pesquisa "Moravia como ejemplo de transformación de áreas urbanas degradadas: tecnologías apropriadas para la restauración integral de cuencas hidrográficas", da Cátedra Unesco de Sustentabilidade, Tecnológico de Antioquia e ONU-Habitat, a herança de anos de uma montanha de lixo é a instabilidade do solo; construções habitacionais precárias; resíduos domésticos, clínicos e hospitalares e a contínua emanação de gases tóxicos e lixiviados, que submetem os moradores da região a um elevado e constante risco de contaminação quimíca e microbiólogica. Mais uma vez a região passou por um processo de remoção de grupos familiares, de forma involutária em muitos casos, que carregam consigo um tenso histórico de reassentamento e de esquecimento por parte do poder público.

    Depois de mais um episódio turbulento no bairro, hoje, sobre os 35 metros de lixo há um jardim de 30 mil metros quadrados com diversas espécies cultivadas pela Cooperativa de Jardineiras de Moravia (Cojadircom). O denominado Parque de Moravia foi inaugurado em abril de 2014, durante o VII Fórum Urbano Mundial, mas ainda não está finalizado.

    A subida à antiga montanha de lixo à céu aberto é também um caminhar por narrativas que constroem a história de Moravia. Tudo ainda está ali, entranhado entre os resíduos, como os gases que se dissipam, nem submerso, nem aterrado, mas em camadas de sobreposição. No percurso, há o Corredor de Arte e Memória com obras plásticas produzidas de resíduos do lixão; painéis com fotos da região no passado e no presente; além de nomes de protagonistas, de influências políticas e palavras de luta. Na chegada ao topo a visão é de uma cidade que teve sua construção irregular, irrefreável, tal como outras tantas no cenário da América Latina.

    El Morro é o arquétipo de Moravia, de Medellín, que pode ter o seu processo de inovação assentado sobre toneladas de lixo, em um passado recente e ainda premente no imaginário da cidade.

     

    Carol Gama
    Colaboração Marcela Salazar