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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.2 São Paulo Apr./June 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000200011 

    OLIMPÍADAS
    ARTIGOS

     

    Dinheiro público em megaeventos esportivos: a eficácia de uma justificativa inconsistente

     

     

    Arlei Sander Damo

    Antropólogo e professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

     

     

    Os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de Futebol são competições que possuem histórias próprias e são agenciadas por corporações distintas – o COI e a Fifa, respectivamente. Todavia, no que concerne à parceria entre estas agências e o Estado, tendo em vista a realização das competições, há muitos aspectos em comum. Do ponto de vista das justificativas ou das críticas ao aporte de recursos públicos para a organização de megaeventos esportivos as diferenças em termos discursivos é tênue. Isto ficou evidente no caso brasileiro, em que os eventos foram organizados consecutivamente. Já o fato da Copa e da Fifa terem recebido mais destaque, nos mídias ou mesmo nos protestos de rua ocorridos em 2013, não se explica pela discrepância entre o montante de recursos públicos aportados num e noutro evento. Mas, sobretudo, à constatação de que a mobilização em torno da Copa antecedeu os Jogos, mobilizando mais amplamente a nação e pelo fato do futebol e das copas ocuparem um espaço hegemônico na crônica esportiva e no gosto dos brasileiros.

    Polêmicas em torno da parceria entre as agências esportivas e os Estados nacionais não constituem novidade, mas o que se passou no Brasil constitui um capítulo importante na história política e econômica dessas competições. Afinal, jamais o COI e, sobretudo, a Fifa, foram objeto de contestação pública tão explícita. Tanto o COI quanto a Fifa, agências que detêm legalmente os direitos de organizar os megaeventos, dependem de parcerias, tanto privadas quanto estatais, para realizá-los.

    Desde as primeiras competições – que datam do final do século XIX e a primeira metade do século XX – houve aporte de recursos públicos para a realização dos eventos e, sem eles, nem as Olimpíadas e tampouco as Copas teriam prosperado. A parceria acompanhou o crescimento do nacionalismo triunfante da primeira metade do século XX e contribuiu para a disseminação do gosto esportivo, especialmente na Europa e nas Américas. A simbologia nacionalista tornou-se um catalizador das competições esportivas transnacionais, um diferencial que passou a ser precificado a partir da década de 1960, sobretudo depois que a tecnologia permitiu a difusão das imagens ao vivo e a cores em escala planetária.

    A Fifa primeiro, e com entusiasmo, e o COI na sequência, com certa resistência, ampliaram as parcerias privadas nas últimas décadas do século passado, consolidando o protótipo de megaevento que chegou ao Brasil (1). Na medida em que a dimensão econômica foi adquirindo maior importância e tornou-se impossível ocultar a presença ostensiva do dinheiro – até porque ele vem com a publicidade, basicamente –, houve a necessidade de aperfeiçoar os discursos acerca da razão de ser dessas competições e, sobretudo, de incrementar a justificativa para o aporte de recursos públicos.

    O discurso hegemônico do tempo do amadorismo, de que as Olimpíadas e as Copas seriam um momento de “congraçamento entre os povos”, deixou de parecer verossímil dada a presença de marcas de multinacionais por toda a parte. Com o suporte do marketing esportivo, influenciado pelo viés corporativo, emergiram novas modalidades discursivas e nelas se destacou o viés econômico. Categorias como “investimento”, “oportunidade” e “legado”, que impregnaram a divulgação dos megaeventos no Brasil, são criações do marketing e cumpriram a finalidade de auxiliar no convencimento da opinião pública, pelo menos durante a fase de escolha do Brasil como sede da Copa e dos Jogos Olímpicos.

    Não se pretende aqui apresentar qualquer denúncia contra o marketing esportivo, tampouco marcar uma posição moral acerca da relação entre política, dinheiro e esporte. Pelo contrário, parte-se do princípio que o marketing esportivo é uma frente discursiva legítima, que se enuncia publicamente – portanto sujeita à contestação – e sua finalidade é justamente criar mecanismos de sedução, imaginação e justificação para o consumo. A propósito, “o marketing de mídia social tem como principal atividade performar as redes sociais, nas quais circulam os produtos, sob a forma de discursos procurando explicitá-los e qualificá-los” (2-3). Uma das estratégias de performação – no sentido de tornar crível um ponto de vista; de constituir uma verdade sobre algo – largamente utilizadas pelo marketing esportivo são os “relatórios”, “consultorias”, “dossiês” e “pesquisas” apontando as projeções grandiloquentes sobre a Copa e os Jogos. A esses diferentes artefatos dá-se o nome de “dispositivos sociotécnicos” e este artigo pretende mostrar como eles exercem seu poder, agenciando opiniões e decisões (4).

     

    DISCURSOS COMO PRODUÇÕES SIMBÓLICAS

    Os dispositivos sociotécnicos não constituem novidade no espectro dos megaempreendimentos. Não se encontram parceiros comerciais nem se aprovam legalmente grandes instalações sem projetos bem detalhados. Em certos casos, como na construção de hidroelétricas, autoestradas e polos pretroquímicos, por exemplo, as obras só são aprovadas depois de debates públicos tendo por base relatórios de impactos e assembleias públicas. Não há, em relação aos megaeventos esportivos, um tipo de exigência equivalente, nem no Brasil e, tampouco, em outros países. E, portanto, inexiste um espaço específico no qual os megaeventos pudessem ser confrontados, ocasião em que certamente viriam à tona, não um, mas muitos dispositivos sociotécnicos. Mas isso não impediu que a aparição desses dispositivos fosse ocorrendo no decurso da preparação das competições e, tampouco, que a confrontação ocorresse, ainda que de forma caótica.

    Discursos são produções simbólicas por excelência e os dispositivos sociotécnicos poderiam ser considerados uma modalidade específica de discurso ou, para ser mais preciso, um discurso científico destinado a fins políticos, pois a verdade que tais dispositivos enunciam tem uma clara intenção de convencer as agências governamentais e a opinião pública. A noção de discurso aqui empregada tem, em parte, uma influência de Foucault (5), com uma pequena adaptação, pois utiliza o termo "frente discursiva" ao invés de "forma discursiva", para dar mais ênfase à dimensão performática desta modalidade de discurso que visa justificar ou desmistificar a grandiloquência dos megaeventos. Certos discursos agem como dispositivos que antecipam a ação, eles criam um cenário do possível, do legítimo e até mesmo do desejável (ou do interdito, abominável etc).

    Um exemplo de frente discursiva é a afirmação, repetida à exaustão e por toda a parte, de que o COI e a Fifa possuem mais filiações nacionais do que a ONU (206, 205 e 193, respectivamente). É uma afirmação verdadeira, sem dúvidas. Mas o que ela faz, os efeitos que ela produz, excede a mera enunciação da contabilidade de países membros. Ela sugere, a partir da comparação, um alinhamento em termos de importância e de propósitos entre as diferentes agências, algo muito benéfico à imagem que as entidades esportivas desejam veicular acerca de si próprias. Por que a Fifa não escreve em seu site que é uma holding multinacional presente em tantos ou mais países do que a Coca-Cola, o Visa ou o McDonald's? Efeito muito parecido tem a divulgação de dados sobre a audiência das Copas, em bilhões de espectadores. Eles podem ser verdadeiros (ainda que ordenados de maneira tal que o somatório seja o mais espetacular possível), mas repetidos à exaustão e em toda a parte - mídia, discursos políticos, textos acadêmicos - exercem um poder extraordinário, porque fazem crer que toda a humanidade é fanática pela Copa, então deve haver algo de errado com quem não é ou com quem não queira tê-la em sua cidade. Tanto um quanto outro exemplo, entre tantos que poderiam ser elencados, ajudam a compreender como a noção de grandiloquência das competições é construída e o quão eficiente pode ser esta construção, porque ela é realizada de forma quase imperceptível.

    Entretanto, essa não é a única frente discursiva acionada pelas agências esportivas. Durante a preparação da Copa 2014, repetiu-se exaustivamente que a sua realização significava uma "oportunidade" para o país sede. O termo é originário do circuito empresarial e ocupou o espaço que o termo "honra", associado ao universo da política e das relações públicas, ocupara em outros períodos. No ritual de anúncio do Brasil como sede, em 2007, o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, foi peremptório ao afirmar, de dedo em riste, que aquela era uma "oportunidade" que a Fifa estava concedendo ao Brasil (6). Blatter, Jérôme Valcke, então secretário-geral da Fifa, e na esteira deles, políticos de todas as matizes, empresários, jornalistas e tantos outros (salvo exceções) usaram, com frequência, um segundo conceito importante dessa frente discursiva: o de "investimento". O termo não é nenhuma descoberta recente, sendo amplamente utilizado na linguagem do marketing como um eufemismo para "custo" ou "gasto". Investimento, sugere não apenas a possibilidade de reaver o que foi empenhado, mas de fazê-lo com vantagem. A trilogia conceitual da Fifa tinha um terceiro termo, chamado "legado", uma espécie de contrapartida ao conceito de investimento. Quem ousasse contestar o empenho de recursos públicos para a realização dos megaeventos estava sujeito a ouvir uma "ladainha" acerca dos legados. A certa altura essa noção passou por um desdobramento, de onde surgiu o conceito de "legado intangível", um tipo de contrapartida aos investimentos impossível de ser mensurado.

    Essas frentes discursivas certamente influenciam - ou influenciaram - parte da opinião pública a aceitar o empenho estatal na realização dos megaeventos. Mas elas não parecem ser suficientemente convincentes, razão pela qual proliferam as acusações - em espaços de bastidores, normalmente - de que os megaeventos são o produto de um conluio entre elites econômicas e políticas. Em outro artigo (6) expus com mais detalhes as razões pelas quais este tipo de insinuação é inconsistente. Não se quer com isso afirmar que inexistam acordos espúrios, tramas de bastidores e favorecimentos seletivos, mas se deter neste tipo de suposição é ignorar o fato de que o universo social é permeado por disputas e o fato de que algumas envolvam estratégias tidas como ilegais ou imorais não as torna menos relevantes de serem investigadas. Todavia, o que nos interessa aqui são os modos como funcionam alguns dispositivos públicos, como é o caso dos relatórios sociotécnicos.

    Tendo um viés científico autoproclamado, funcionam como um conjunto de verdades sem as quais as frentes discursivas anteriormente referidas não se sustentariam.

     

    DIVERSIDADE DE DISPOSITIVOS DE LEGITIMAÇÃO

    A "Lei Geral da Copa" (Lei nº 12.663, de 5 de junho de 2012) (7), o "Caderno de Encargos da Fifa" ("Estadios de fútbol - recomendaciones técnicas y requisitos") (8), o dossiê de candidatura do Rio de Janeiro à sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos (9), são exemplos de documentos importantes que orientaram a preparação e realização dos megaeventos no Brasil, dando aparência de consistência, seriedade e legitimidade aos empreendimentos. Como estes, poderíamos citar dezenas de outros, pois cada estado da federação e cidade sede constituiu seu próprio documento, mobilizando um verdadeira indústria de experts na produção desses dispositivos. Todavia, aqueles que gostaria de enfatizar são de natureza um pouco distinta, pois têm por objetivo produzir, ordenar, enunciar (por vezes contestar) números e circularam com desenvoltura nas mais diversas mídias. A diversidade desses dispositivos poderia ser agrupada, para os fins deste artigo, em quatro categorias.

    a) Relatórios de agências governamentais

    Muitos órgãos estatais dispunham de documentos sociotécnicos, quase sempre encomendados de empresas de consultorias privadas. No entanto, algumas agências de governo, como foi o caso do Tribunal de Contas da União (TCU), disponibilizaram um corpo técnico de profissionais - economistas, advogados, engenheiros etc - para acompanhar o desenrolar das obras e produzir documentação. Um desses relatórios em particular, publicado no início de 2013, exerceu impacto considerável, sendo desse documento que se tirou uma cifra, de R$27 milhões de gastos com a Copa, cuja utilização foi generalizada nos protestos de junho daquele ano.

    b) Dossiês de contestação

    Documentos como o "Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil", organizado pela articulação dos Comitês Populares da Copa, constituem um bom exemplo de outra modalidade de dispositivo sociotécnico, pois o objetivo deles era oferecer um contraponto a uma visão ufanista dos megaeventos.

    c) Produções acadêmicas

    Aqui podem ser incluídos os diversos produtos com o rótulo acadêmico: papers, dissertações, teses, monografias, dentre outros, que formam um conjunto de produções forjadas no espectro das mais diversas ciências (administração, marketing, turismo, ciências do esporte, ciências humanas etc) e que seguidamente transcenderam esses espaços.

    d) Consultorias privadas

    Documentos produzidos por empresas privadas (especializadas em economia do esporte ou não), por vezes em parceria com universidades.

    Essas quatro modalidades de dispositivos sociotécnicos, dadas as diferenças em termos de produção, propósitos, usos, redes de influência e diálogos, ilustram de maneira satisfatória, um conjunto bem mais amplo. Está fora de propósito analisar aqui os conteúdos, os itinerários ou os efeitos desses documentos. Destaca-se aqui o relatório "Brasil sustentável - impactos socioeconômicos da Copa 2014" (10), pois se trata do mais performático entre todos os documentos que circularam antes da Copa 2014. A preocupação não é com a desconstrução, no sentido de explicitar suas contradições, seus erros, mesmo que isto seja fundamental para se obter certos prognósticos. Trata-se, antes, de pensar o lugar estratégico desempenhado na construção de uma justificativa para os investimentos públicos destinados ao evento enquanto tal, neste caso servindo de suporte para atestar a grandiloquência do mesmo, dando tons espetaculares a projeções que não se realizaram.

    Este relatório foi apresentado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em Porto Alegre, em evento que objetivava orientar gestores públicos e privados para melhor aproveitamento da oportunidade ensejada pela Copa de 2014. O Sebrae organizou eventos em todas as cidades-sedes, com o slogan "1000 dias para a Copa", e o seminário de Porto Alegre reuniu aproximadamente duas centenas de pessoas, em sua maioria agentes públicos vinculados ao comércio e ao turismo. As intervenções, de políticos de todas as tendências e especialistas nacionais e internacionais, reforçavam a diversidade de oportunidades com os megaeventos, valendo-se de dados de relatórios diversos, incluindo-se o da Ernst & Young em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (E&Y/FGV). Além de encorajar o empreendedorismo, o evento tinha por objetivo localizar, de modo mais preciso, o tipo de negócio que poderia prosperar - e os que não teriam chances - dadas as características do megaevento. Noutra ocasião, também em Porto Alegre, um evento organizado por uma grande rede de comunicação do sul do Brasil com o patrocínio de várias empresas privadas teve suas concorridas credenciais distribuídas, basicamente, entre empresários, jornalistas esportivos, gestores públicos e estudantes de marketing. Na programação do evento foi destaque, uma vez mais, o discurso do empreendedorismo, e o relatório da E&Y/FGV foi outra vez nomeado.

    O relatório em questão é parte da série "Brasil sustentável", que reúne 7 publicações realizadas pela parceria entre a E&Y/FGV, tratando de projeções de negócios para setores fundamentais da economia brasileira - petróleo, etanol e gás; Copa do Mundo; agroindústria; competitividade industrial; energia; consumo; mercado habitacional. Diz o anúncio que apresenta a série: "A abordagem dos temas leva em conta as potencialidades do país em sua interação com o mercado mundial, delineando cenários até o ano de 2030. O resultado é um conjunto de informações estratégicas indispensáveis para o planejamento das empresas e seu crescimento sustentável" (11).

    O artefato da E&Y/FGV sobre os impactos da Copa 2014 foi publicado em junho de 2010 com pouco mais de 50 páginas, e segue o padrão dos relatórios da série, não destoando de outros documentos do gênero: apresentação sóbria, textos e argumentos diretos, abundância de gráficos e organogramas, e muitos números. No layout da parte superior direita na página 7 uma projeção animadora, daquelas que faria qualquer cético desejar sediar não uma, mas todas as copas no Brasil: "A Copa deverá gerar 3,63 milhões de empregos/ano e R$63,48 bilhões de renda para a população no período 2010-2014, além de uma arrecadação tributária adicional de R$ 18,13 bilhões" (10).

    Próximo ao início da Copa 2014 outros prognósticos, bem menos alvissareiros daqueles da E&Y/FGV, passaram a ser divulgados. Um deles, cujos dados foram compilados pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas (Fipe), sob encomenda do Ministério do Turismo, dava conta de que a Copa geraria um aporte de R$30 bilhões à economia brasileira (0,5% do PIB). Quanto ao número de empregos, a Fipe estimou em 710 mil fixos e 200 temporários, a partir de dados do Cadastro Geral de Empregos (Caged), entre 2011 e 2014. Não há estimativas precisas de quantos empregos foram efetivamente gerados pela Copa 2014 - um cálculo deveras complexo. Em todo o caso, é possível tomar como parâmetro os dados do Caged, pelo menos para uma projeção imaginativa. O número de empregos gerados pela Copa prognosticados pela E&Y/FGV (3,63 milhões/ano) é superior ao total de novos empregos gerados no Brasil durante os anos de 2011 e 2012 - 3,4 milhões, aproximadamente (12). O relatório não explicita como fez a projeção de empregos, mas ela não parece ser o produto de uma metodologia consistente. Certo mesmo é que eles não passaram da projeção, como tantos outros prognósticos alvissareiros, dessa e de várias consultorias.

    Conforme Wladimir Andreff (13), um dos mais respeitados economistas do esporte, não existe no presente uma metodologia confiável capaz de projetar os impactos econômicos dos megaeventos esportivos, dada a quantidade de variáveis implicadas e a efemeridade dos mesmos. Os argumentos de Andreff são consistentes e, talvez por isso, não tenhamos dado a importância devida ao relatório da E&Y/FGV ao longo das suas inúmeras aparições. A mudança de perspectiva, que nos fez pensar nos efeitos desses artefatos para além da coerência dos seus conteúdos, se deu, em boa medida, pelo fato de que o relatoria da E&Y/FGV continuou sendo citada até as vésperas da Copa 2014. Uma pesquisa mais detalhada a propósito das referências ao relatório na mídia mostrou que elas decresceram depois dos protestos de junho de 2013, quando os megaeventos passaram a ser criticados e poucos se atreviam a justificá-los publicamente (14). Ainda assim, o "número mágico" (e não caberia outro adjetivo) de R$142 bilhões, a serem supostamente gerados adicionalmente pela economia (incluindo-se os aportes direitos e os efeitos indiretos), seguiu sendo citado em discursos oficiais, embora alguns jornalistas já tivessem embarcado em outro discurso, de que o Brasil havia perdido a oportunidade - este era também o discurso velado dos dirigentes da Fifa tentando se eximir de qualquer justificação diante das críticas avassaladoras (15).

     

    HEGEMONIA DISCURSIVA FAVORÁVEL AOS MEGAEVENTOS

    O anúncio da realização da Copa 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 no Brasil coincidiu com um momento singular no cenário político e econômico nacional. A Copa foi definida em tratativas de bastidores, iniciadas em 2004 e finalizadas em 2006, embora a celebração pública tenha ocorrido em novembro de 2007. Na ocasião, o Brasil passava por uma fase de crescimento econômico destacado e buscava afirmar-se internacionalmente como um ator político relevante. Sediar uma Copa não parecia despropositado, embora não houvesse tanta clareza entre os brasileiros da diferença entre jogar e organizar o evento futebolístico - até porque entre as bravatas de Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, constava que essa seria "a Copa da iniciativa privada" (16). O circuito empresarial tinha bons motivos para assimilar o discurso da oportunidade e boa parte daqueles que usualmente fazem o contraponto - partidos, organizações civis e intelectuais de esquerda - estavam comprometidos com a defesa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, salvo exceção.

    O cenário deixava pouco espaço para o contraditório e tudo parecia se encaminhar para uma grande festa. A crise que afetou quase todas as principais economias mundiais em 2008 foi assimilada sem maiores percalços pelo Brasil, de tal forma que a disputa vitoriosa pela sede dos Jogos Olímpicos de 2016, em 2009, constituiu o ponto mais elevado da euforia. O então presidente Lula estava no auge da sua popularidade, nacional e internacional, e aproveitou a ocasião para exaltar a grandeza do Brasil e criticar todos quantos subestimassem a competência da nação quaisquer que fossem os desafios. Realizar a Copa e as Olimpíadas constituía uma oportunidade merecida, ainda que tardia.

    A hipótese - e o termo não pode ser outro - é que tais eventos teriam vindo para o Brasil independente de quem estivesse no governo. Os argumentos em favor da candidatura pareciam inquestionáveis ou, quando eram, careciam de consistência. Toda a verdade aparentava estar do lado dos realizadores e da legião de entusiastas, dispersos na crônica esportiva, no mundo dos negócios, na política, entre outros. Havia uma hegemonia discursiva favorável aos megaeventos, para o qual os dispositivos sociotécnicos haviam contribuído, atualizando para a ocasião a verdade do tripé oportunidade-investimento-legado.

    De todas as polêmicas em torno da realização dos megaeventos no Brasil a mais empolgante foi sobre o questionamento público sobre o uso de aportes públicos, que efetivamente saiu das mídias e foi para as ruas. Em todo o caso, foi uma manifestação tardia, capaz de minar a reputação das agências esportivas e dos políticos locais, mas não de impedir mudanças substantivas - exceto em obras que estavam atrasadas, quase todas relacionadas à mobilidade urbana. Essa mobilização tardia não pode ser explicada por uma única variável, porque as Jornadas de Junho têm várias frentes discursivas, incluindo-se a contrariedade com os "gastos com a Copa". No entanto, o questionamento público veio à tona com tanta efervescência que minou os discursos apologéticos em torno dos megaeventos. Essa distância entre uma posição francamente favorável e outra hostil tem muito a ver com a disparidade entre o prometido e o realizado. O descompasso não foi produzido apenas pela empolgação de políticos e de dirigentes esportivos, mas também deve-se aos excessos cometidos pelos dispositivos de creditação, avalizados por empresas de consultoria que disseminaram prognósticos retratando um cenário muito diferente daquele que haveria de se concretizar.

     

    REFERÊNCIAS E NOTAS

    1. Sobre as diferenças de posicionamento da Fifa e do COI em relação à presença do dinheiro no esporte, seja através da participação de atletas remunerados (primeiro foco de conflito, década de 1930), seja de patrocinadores (1960/70), conferir Giglio, S. “COI x Fifa: A história política do futebol nos Jogos Olímpicos”. Tese de doutorado. Escola de Educação Física e Esporte, USP, São Paulo, 2013.

    2. Callon, M. “Qu'est-ce qu'un agencement marchand?”. In: Callon, M. et al. Sociologie des agencements marchands – Textes choisis. Paris: Presses des Mines, 2013, p. 325-440. p.368.

    3. No original: “Le social media marketing a pour principale activité de performer des réseaux sociaux dans lesquels circulent les produits sous la forme de discours cherchant à les expliciter et à les qualifier” (tradução do autor).

    4. Os dados aqui utilizados são resultado do projeto de pesquisa “Megaeventos esportivos no Brasil – uma perspectiva antropológica” realizado entre 2010 e 2016. Durante o biênio 2013-2014 o referido projeto contou com o financiamento do CNPq, através do edital MCTI/ CNPq/MEC/Capes nº18/2012. Este projeto resultou em diversas publicações, incluindo-se o livro Megaeventos no Brasil – um olhar antropológico, de Arlei Damo e Ruben Oliven (autores associados, 2014), no qual constam, de forma mais detalhada e documentada, alguns dos argumentos aqui utilizados.

    5. Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

    6. Damo, A. “O desejo, o direito e o dever - A trama que trouxe a Copa ao Brasil”. In: Revista Movimento, vol. 18, no. 2, abr/jun 2012, p. 41-81.

    7. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/L12663.htm. Acesso em 20/2/2016.

    8. Disponível em: http://es.slideshare.net/marcelogreuel/caderno-de-encargos-fifa. Acesso em 20/2/2016.

    9. Disponível em: http://www.rio2016.com/sites/default/files/parceiros/dossie_de_candidatura_v1.pdf. Acesso em 20/2/2016.

    10. “Brasil sustentável: impactos econômicos da Copa do Mundo 2014”. Ernest & Young Terco. Disponível online em PDF.

    11. Série de documentos disponíveis em: http://www.ey.com/BR/pt/Issues/Driving-growth. Acesso em 15/2/2016.

    12. Evolução de Emprego do CAGED – EEC. Disponível no site do Ministério do Trabalho e Trabalho em: http: http://bi.mte.gov.br/eec

    13. Andreff, W. Économie internationale du sport. Grenoble: PUG, 2010.

    14. Esta pesquisa foi realizada no âmbito do projeto “Megaeventos esportivos no Brasil – uma perspectiva antropológica”, referido na nota 4.

    15. “Coupe du Monde, Sepp Blatter: Le Brésil s'est préparé “trop tard”. 06/01/2014. Eurosport. AFP.

    16. “Verba pública financiará 94% dos estádios da Copa-2014”. Por Mariana Bastos e Paulo Cobos. 04/02/2010. Copa do Mundo 2010. Uol Notícias.