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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.68 no.2 São Paulo Apr./June 2016
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000200020
CINEMA
Emprego doméstico e a arquitetura da desigualdade
Paula Gomes
O quarto de empregada faz parte de uma tradição arquitetônica brasileira, de segregação, que remonta ao período de escravidão. Ele surge como uma solução para separar empregados e patrões que permaneceram vivendo juntos após a abolição, em 1888. A delimitação de espaços de circulação a partir da condição social vem se alterando lentamente, entre avanços e retrocessos. Um bom exemplo foi a aprovação da Lei nº 11.995/1996, que veda a discriminação no acesso aos elevadores segundo a condição social das pessoas na cidade de São Paulo. Antes de ser aprovado, o projeto de lei gerou bastante discussão e foi tema de uma coluna do jornal Folha de S. Paulo, em que a promoter Daniela Diniz dizia: “não é uma questão de discriminação, mas de respeito. Acho que cada um deve ter o seu espaço”. Outra importante conquista dos empregados domésticos veio em 2013, com a aprovação da “PEC das domésticas”, que estende os benefícios trabalhistas já existentes para essa classe de trabalhadores.
Essas mudanças acabaram por colocar a empregada doméstica também na pauta da produção audiovisual brasileira. Se até os anos 2000, era uma figura retratada quase que exclusivamente nos núcleos cômicos de telenovelas, nos últimos anos alguns filmes têm colocado a empregada em muitos outros cenários propondo interessantes reflexões sobre o tema e explorando, entre outras questões, a arquitetura da desigualdade no Brasil, caracterizado por ambientes como a “área de serviço”, o “quarto de empregada” e o “elevador de serviço”.
Como revelou Joel Zito Araújo, no livro A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira (2004), o papel da empregada era quase sempre interpretado por uma atriz negra, único espaço que elas tinham na televisão. Os primeiros sinais de mudança aparecem com o lançamento da comédia Domésticas (2001), dirigida pelo, então estreante, Fernando Meirelles e por Nando Olival. Apesar da inovação de trazer para as telas um grupo social até então ignorado, o filme foi bastante criticado por produzir um retrato estereotipado das empregadas domésticas que aparecem cometendo equívocos gramaticais e culturais. Além disso, o fato de o filme não mostrar as empregadoras foi entendido como uma maneira de poupá-las de qualquer crítica.
Após esta primeira incursão humorística, a empregada doméstica volta a protagonizar uma obra audiovisual no documentário de Gabriel Mascaro Doméstica (2013). Para produzir o filme, Mascaro adotou um procedimento inusitado: pediu para que sete adolescentes previamente selecionados filmassem as funcionárias de suas casas durante uma semana. O resultado da edição desse material é um retrato intimista e dramático da vida dessas sete pessoas e a sua relação com os “patrões-mirins”. Ainda que em muitos momentos o filme tenha um tom bem humorado, há uma grande distância do tom cômico e estereotipado que encontramos no filme de Meirelles e Olival.
Também vem de Pernambuco outras duas produções que abordaram a questão da empregada doméstica no país, sob diferentes aspectos. Recife frio e O som ao redor, ambos do diretor Kleber Mendonça Filho (2009 e 2012). Em Recife frio uma brusca alteração climática transforma a capital pernambucana em uma região de baixíssimas temperaturas. A situação inusitada provoca uma inversão de valores arquitetônicos no apartamento de uma família de classe média, na medida em que o filho passa a cobiçar o quarto da empregada, antes pequeno e com pouca ventilação, mas que passa a ser o cômodo mais quente da casa. Em O som ao redor, o protagonista, um corretor de imóveis, mostra um apartamento para um potencial comprador, dizendo, com entusiasmo, que o quarto de empregada é diferenciado, pois tem uma janela.
QUARTO DOS FUNDOS
Mas é em Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, que a relação entre a arquitetura e a desigualdade social é colocada em primeiro plano. No filme, Val, interpretada pela atriz Regina Casé, deixa sua cidade natal, em Pernambuco, para trabalhar como doméstica e babá para uma família de classe alta, em São Paulo. Ela, que mora em um quartinho nos fundos da casa, vê sua vida mudar quando a filha vem visitá-la, depois de treze anos em que foi criada pela avó. A partir desse enredo e utilizando a arquitetura da casa, Muylaert revela a desigualdade entre patrões e empregados: o contraste entre o amplo e espaçoso quarto de visitas, sempre desocupado, e o minúsculo quarto da empregada; a piscina, que surge como um importante símbolo da segregação social. Nas cenas finais do filme, ela adquire ares de metáfora visual quando Val decide pedir demissão, e, antes de se mudar, entra na piscina, transgredindo aquela fronteira física socialmente imposta.
O arquiteto e professor associado da Universidade do Texas, Fernando Luiz Lara explica que, até o final do século XIX a arquitetura das casas remontava a "mini casasgrandes". Na parte frontal ficava a área nobre e social e a área de fundo correspondia aos cômodos "de serviço", entre eles as acomodações dos empregados, muitas vezes na forma de edículas, independentes do resto da casa. Este modelo, que sofreu pequenas variações no decorrer dos anos, pode ser encontrado em muitas casas até hoje.
Com a verticalização das cidades, os prédios de apartamentos criaram soluções arquitetônicas para perpetuar essa segmentação entre patrões e empregados. Como explica Lara, os apartamentos são compostos por dois eixos: de um lado, o eixo social, formado por sala, corredor, quartos e banheiro, e do outro, o eixo de serviço, com cozinha, área de serviço e quarto de empregada. Essa área de serviço possui uma porta que a conecta com os elevadores, a chamada porta de serviço, em geral mais simples do que a porta social. Além disso, muitos prédios possuem dois tipos de elevadores, os sociais e os de serviço.
ESPAÇOS DIVIDIDOS
"Mesmo quando, por questões puramente econômicas, o quarto de empregada desaparece, permanece o preconceito expresso na porta de serviço ou na insistente separação entre cozinha e sala de jantar, que desapareceu há décadas nos países onde a desigualdade de raça e de gênero é menor que a brasileira", afirma.
Apesar do avanço da legislação trabalhista, o ambiente do trabalho do empregado doméstico está sujeito a outras dinâmicas. A condição singular do emprego doméstico, marcada pela proximidade com os empregadores acaba por gerar laços de afetividade que tendem a dissolver as distinções clássicas entre funcionário e patrão. Não é incomum o empregador afirmar que a empregada doméstica é "praticamente da família". Esse fator, somado ao perfil desse trabalhador, em geral mulheres com baixa escolaridade e remuneração, coloca essa categoria em uma situação de grande vulnerabilidade, suscetível a condições abusivas de trabalho.
Neste sentido, o filme Casa grande (2014), de Fellipe Barbosa, cujo título é uma clara referência ao livro Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, busca mostrar como essas mudanças são lentas. Na história, um adolescente de classe média alta, cuja família enfrenta graves problemas financeiros, se vê forçado a mudar de hábitos. Ao entrar em contato com outras realidades sociais, ele passa a reconhecer que a sua família é responsável por perpetuar desigualdades. Um exemplo é a demissão do motorista sem a garantia de seus direitos trabalhistas. O filme traz ainda a questão do sexo entre patrões e empregadas, assunto tratado por Freyre, que revelou a complexa dinâmica entre despotismo e intimidade que ocorria na relação entre senhores e escravas no período da escravidão. Casa grande é um filme sobre mudanças e sobre permanências. Como mostra a última cena, o rapaz apoiado no parapeito da janela do pequeno quartinho da empregada, sugere que mesmo que esse espaço deixe de existir, ainda resistirá por muito tempo como construção imaginária, pautando a relação entre patrões e empregadas.