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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo July/Sept. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300010 

    ARTIGOS
    MARIANA

     

    O desastre na barragem de mineração da Samarco - fratura exposta dos limites do Brasil na redução de risco de desastres

     

     

    Carlos Machado de Freitas; Mariano Andrade da Silva; Fernanda Carvalho de Menezes

     

     

    Na tarde de 5 novembro de 2015 a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, uma empresa joint venture da companhia Vale do Rio Doce e da anglo-australiana BHP- Billiton, se rompeu liberando um volume estimado de 34 milhões de metros cúbicos (m3) de lama, contendo rejeitos de mineração, resultando em intensa destruição nos povoados próximos à jusante da mineradora e diversos outros impactos que se estenderam por 650 km (1). Foi o maior desastre mundial desse tipo desde os anos 1960, resultando em danos humanos e ambientais que podem ter um horizonte temporal de longo prazo, efeitos irreversíveis e de difícil gestão (2).

    Tendo como referência as prioridades do Marco de Sendai (2015), que norteiam em nível global a gestão do risco de desastres, este artigo tem como objetivo extrair lições para a redução substancial, no Brasil, dos riscos de desastres e de impactos ambientais, sanitários e socioeconômicos que os mesmos provocam. Isto requer: 1) compreensão ampla das causas e impactos ambientais, humanos e socioeconômicos desses desastres; 2) compreensão sistêmica da capacidade de governança para a redução de risco de desastres; 3) compreensão das capacidades de preparação para respostas eficazes - não como algo limitado ao período imediatamente pós-evento, mas como integrantes dos processos de recuperação, reabilitação e reconstrução após os eventos iniciais que resultam nos desastres.

     

    1) DESASTRES EM BARRAGENS DE MINERAÇÃO E SEUS RISCOS NO BRASIL

    Ao longo do século XX e, mais particularmente, nos últimos 50 anos a exposição das pessoas aos riscos de desastres vem crescendo no Brasil e no mundo mais rapidamente do que as capacidades de redução da vulnerabilidade, resultando em intensos e extensos (no tempo e no espaço) impactos. Nesta perspectiva, o desastre da Samarco deve ser compreendido não como uma excepcionalidade, mas sim como parte dos custos humanos, sociais e ambientais que esse tipo de desastre vem provocando no mundo.

    Tomando como referência a base de dados sobre desastres em barragens de mineração da organização World Information Service on Energy (Wise), que cobre os impactos humanos e ambientais da mineração de urânio e produção de energia nuclear em nível global, podemos verificar que, ao longo dos últimos 50 anos, ocorreram pelo menos 37 desastres em barragens de mineração considerados muito graves (ver Quadro 1 na versão online). O desastre da Samarco é, dentre todos, o maior em termos de quantidade de material lançado no meio ambiente e de extensão territorial dos danos.

    Rico e colaboradores (3), ao analisarem 147 incidentes em barragens de mineração, apontam um conjunto de causas, das quais destacamos: a manutenção deficiente das estruturas de drenagem; ausência de monitoramento contínuo e controle durante construção e operação; crescimento das barragens sem adequados procedimentos de segurança; a sobrecarga a partir de rejeitos de mineração. Também chamam a atenção para a falta de regulamentação sobre os critérios de projetos específicos. Combinada com políticas frágeis e instituições públicas de controle e prevenção desestruturadas, constitui cenário fértil para a ocorrência de desastres no Brasil, em que anormalidades são cotidianamente transformadas em normalidades.

    O processo de licenciamento ambiental referente à barragem de Fundão se iniciou em 2005, sendo a primeira licença de operação (LO) concedida em 2008 - licença que se encontrava em processo de renovação no dia do rompimento. Da primeira LO até o desastre várias mudanças na estrutura da barragem de Fundão ocorreram. As modificações no projeto inicial iniciaram-se em 2012, tendo como justificativa a necessidade de um dreno, devido ao material de rejeito da mineração em estado mais líquido recebido da empresa Vale. Em 2009, teve início o plano de expansão da empresa e mais modificações no projeto inicial, realizando o recuo não previsto na estrutura da barragem. Em setembro de 2014, o engenheiro projetista da barragem alertou sobre um princípio de ruptura que apareceu após a modificação da estrutura. Em junho de 2015, a mineradora recebeu as licenças prévias e de instalação (LP e LI, respectivamente) para ampliação da barragem de Fundão, que passaria da cota de 920m de altitude para 940m e posterior unificação com a barragem de Germano, que também estava sendo alterada. A LP e a LI foram aprovadas pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Minas Gerais (4).

    Após diversas modificações no projeto, a barragem se rompeu na cota de 898m. As causas do rompimento ainda estão sendo investigadas. Sem resultados conclusivos, encontram-se entre as hipóteses (5; 6; 7):

    Entupimento do sistema de drenagem de líquido da barragem que impede infiltrações e erosões de dentro para fora da estrutura.

    Existência de uma falha “princípio de ruptura”, devido ao aparecimento de uma trinca. Para o engenheiro projetista da barragem, a situação era severa e necessitava de providências além das que foram tomadas pela empresa.

    Aumento no ritmo da deposição de rejeitos. Entre 2009 e 2014, o ritmo de despejos de rejeitos cresceu 83%, chegando a 55 milhões, fator que contribuiria para desestabilização da barragem.

    A empresa Samarco informou que todas as operações estavam devidamente licenciadas e regularizadas no momento do acidente, inclusive em relação ao volume de material depositado. Após o desastre, a empresa alegou que a principal linha de investigação seria um tremor de terra (2.6 de magnitude) que ocorreu a 5 km da barragem de Fundão.

    De acordo com os dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (8) o Brasil possui 662 barragens e cavas exauridas com barramento distribuídas em 164 municípios pelo país (ver Mapa 1), destas 80% são classificadas, pela categoria de risco, como sendo de baixo risco de desastres (mesma classificação da barragem de Fundão) e apenas 5% como de alto risco. Se considerarmos que o desastre da Samarco é não só uma fratura exposta das falhas na gestão de riscos de barragem por parte da empresa mas, também, das frágeis políticas e instituições existentes para a redução de riscos, podemos considerar que temos um grande conjunto de sérias ameaças e riscos de desastres em barragens de mineração espalhado pelo país.

     

     

    2) IMPACTOS DO DESASTRE

    O impacto do desastre foi classificado pela força tarefa do governo do estado de Minas Gerais em duas escalas: A primeira microrregional, relacionada aos impactos com maior efeito destrutivo, por extrapolar a calha dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce atingindo quatro municípios mineiros: Mariana, Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado em um trecho de aproximadamente 77 km. No município de Rio Doce, a lama foi retida pela barragem da Usina Hidrelétrica de Candonga e, após essa barreira, o material seguiu pela calha do rio Doce. A segunda escala macrorregional relacionada aos impactos nos municípios ao longo de mais de 570 km da calha do rio Doce até a foz no oceano Atlântico, envolvendo comunidades de outros 31 municípios em Minas Gerais e 3 municípios no Espírito Santo, incluindo uma reserva indígena de etnia Krenak (9; 1).

    2.1. Impactos ambientais

    Na escala microrregional, a grande quantidade de lama provocou impactos intensos comprometendo solo, cobertura vegetal e rios, dos quais destacamos alguns.

    Degradação da qualidade do solo. Mesmo não sendo tóxico os rejeitos, quando sedimentados, comprometem a infiltração de água e o nível de matéria orgânica necessário para a vida microbiana do solo, afetando as condições para a germinação de sementes e o desenvolvimento radicular das plantas, comprometendo a variabilidade genética das áreas ciliares (10). Na área rural de Barra Longa, a mais diretamente afetada, devido à composição da lama, a reconstituição do solo pode levar até centenas de anos, que é a escala geológica para a formação de um novo solo (11).

    Aumento da intensidade dos processos erosivos resultante do ravinamento (depressão do solo), elevando o risco de ocorrência de possíveis deslocamentos de massas de terra no período chuvoso, com potencial de intensificar o processo de assoreamento nos rios, para além da própria lama que atingiu os mesmos (9).

    Assoreamento dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e parte do rio Doce até a barragem de Candonga (numa extensão de 77 km), comprometendo áreas de preservação permanente nas faixas marginais dos mesmos. Uma área de 1.587 hectares (ha), dos quais 1.026,65 ha de cobertura vegetal, sendo que 511,08 ha de Mata Atlântica foi muito danificada nesse trecho. As modificações, registradas no curso das bacias, causadas pela enxurrada de lama, foram degressivas, alterando o curso do rio e, com isso, a dinâmica fluvial (9; 12).

    Na escala macrorregional no longo prazo, as alterações físicoquímicas no rio Doce impactaram toda a cadeia trófica que envolve desde a comunidade planctônica, invertebrados aquáticos, peixes, anfíbios, répteis e mamíferos que dependem direta e indiretamente das águas do mesmo (12).

    Em relação aos contaminantes inorgânicos associadas à lama de rejeitos, foram aferidos elevados teores de óxido de ferro, manganês e sílica. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA) (1), a força da passagem da lama revolveu e colocou em suspensão os sedimentos contaminados dos processos de mineração do passado, contribuindo para elevações significativas nas concentrações de metais pesados como alumínio, arsênio, cádmio, cobre, cromo, manganês e níquel, sendo que alguns destes, como chumbo e mercúrio com níveis superiores ao limite da legislação de 165 e 1465 vezes, respectivamente (12; 1). Identificou-se que o padrão de acumulação dos metais nos zooplânctons coincidem com o padrão dos níveis de contaminação da água, observado para todos os metais analisados, indicando que os metais associados à foz do rio Doce encontram-se disponíveis para assimilação pela fauna planctônica, organismos que estão na base da cadeia alimentar. E, resultados de análises em amostras de peixes (roncador, linguado e peroá) e crustáceos (camarão rosa e camarão sete barbas) apresentaram grande parte das amostras com níveis de arsênio, cádmio e chumbo acima da legislação (13).

    Dessa forma, evidencia-se que a mortalidade instantânea da fauna aquática é apenas um dos impactos causados pelo desastre. Os processos ecológicos foram alterados, os danos provocados no ecossistema podem ser ainda maiores considerando que os peixes e crustáceos encontram-se no período de reprodução (1). O resultado é a potencial extinção de algumas espécies típicas do rio, exigindo décadas para a recuperação da biodiversidade e do assoreamento em muitos trechos do leito do rio Doce (11).

    2.2. Impactos sobre a saúde da população

    Os impactos mais diretos sobre a vida e saúde da população exposta ao desastre se concentraram nos municípios situados na escala microrregional. Foram 19 óbitos, concentrados em Mariana, sendo dois terços de trabalhadores terceirizados. Os outros óbitos envolveram crianças entre 5 e 7 anos e idosos entre 60 e 73 anos. Em relação aos lesionados e feridos, concentraram-se em Mariana (231) e Barra Longa (305) (9).

    Do total de 10.482 afetados, Barra Longa não teve só mais da metade (5.745) da população total afetada, mas a quase totalidade da mesma nessa condição. Para os outros municípios o percentual variou entre 6% (Mariana) e pouco mais de 10% (Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado).

    Estes mais de 10 mil foram afetados de diferentes modos, simples ou combinados, para além da perda de parentes e amigos ou ter sofrido alguma lesão ou dano direto à saúde, perdas materiais e imateriais, podem sofrer diferentes impactos sobre a saúde, simples ou combinados, dos quais destacamos: a) comprometimento dos serviços de provisão de alimentos e água potável; b) de regulação do clima (destruição de mais de mil hectares de cobertura vegetal) e dos ciclos das águas (contribuindo para enchentes nos períodos chuvosos), contribuindo para alteração nos ciclos de vetores e de hospedeiros de doenças (dengue, chikungunya e zika, além de outras doenças como esquistossomose, doenças de Chagas, leishmaniose, que podem surgir meses após o período inicial do desastre); c) animais peçonhentos, que também tiveram seus habitats completamente alterados ou destruídos; d) doenças respiratórias e contaminação dos organismos com a transformação da lama de rejeitos em grande fonte de poeiras e material particulado (contendo óxido de ferro, sílica e matéria orgânica, além da hipótese de outros metais como alumínio e manganês) inalado pelas pessoas (14); e) impactos psicossociais e na saúde mental, resultantes do comprometimento das heranças culturais e da perda da sensação de lugar, bem como a sensação de insegurança e medo da violência para os que foram deslocados para abrigos ou casas temporárias, contribuindo para futuras doenças crônicas, como as cardiovasculares. Não menos grave foram também os impactos sobre os índios Krenak, que tiveram seus modos de vida, cultura e religião afetados pelo desastre.

    Na escala macrorregional os impactos mais evidentes se relacionam à qualidade da água para consumo humano em diferentes escalas de tempo. No curto prazo os valores dos parâmetros alteraram a potabilidade da água para uso humano, impedindo o consumo da mesma (9). Este impacto traz o potencial de aumento de casos de diarreias e outras doenças transmitidas pelo uso de água não adequada para o consumo humano, principalmente nos municípios onde a busca de fontes alternativas de água e o fornecimento de água através de caminhões pipa contratados não forem acompanhados de fiscalização e vigilância de qualidade.

    Para além dos riscos de curto e médio prazo relacionados ao abastecimento de água, no longo prazo os impactos ambientais ocorridos nos mananciais foram graves e envolvem, como já descrito, metais pesados. Seus efeitos se apresentarão no tempo, nas águas, solo e cadeia alimentar, resultando também em efeitos sobre a saúde que, se não forem monitorados, simplesmente se tornarão invisíveis e esquecidos.

    2.3. Impactos socioeconômicos

    Na escala microrregional, no trecho compreendido entre a barragem e a foz do rio do Carmo (77 km), a lama extravasou o leito do rio causando a destruição de edificações (foram destruídas 389 unidades habitacionais, 2 instalações públicas de saúde e 6 de ensino, principalmente em Mariana), pontes, vias e demais equipamentos urbanos. Com relação aos prejuízos econômicos públicos, relacionados a ações emergenciais de garantia ao funcionamento dos serviços públicos municipais, bem como estimativas para a sua retomada plena, os valores totais, assumidos pelos municípios da microrregião analisada representam R$5 milhões, sendo 36,5% concentrados no município de Barra Longa (9).

    Prejuízos imensos impactaram os serviços públicos essenciais, como geração e distribuição de energia (40% dos prejuízos econômicos totais), seguidos de serviços de tratamento de esgotos, saúde pública, limpeza urbana e destinação dos resíduos, transporte e educação, entre outros. Também resultou em impactos e prejuízos econômicos no setor privado, na ordem de R$253 milhões, concentrados principalmente nas atividades industriais (84%) e no município de Mariana (88%) (9).

    A retração na base tributária após a abrupta paralisação da atividade de mineração da empresa Samarco e de sua economia de entorno, ocasionou o colapso da economia regional. Nas localidades que apresentaram os maiores impactos, este foi devido ao sistema econômico pouco diversificado e com forte minério-dependência (95% da atividade econômica baseada em extração de minério de ferro) (9).

    Em relação às atividades agropecuárias, apesar do percentual e abundância deste setor não ser expressivo na economia da microrregião, parte significativa do sustento da população na área rural provinha do mesmo, sendo os prejuízos estimados em aproximadamente R$23 milhões. Por outro lado, setores de comércio e serviço também registraram danos diretos, além das perdas indiretas influenciadas pela redução do turismo e do poder de compra, existindo a tendência de decaimento no faturamento por períodos prolongados (9).

    Na escala macrorregional os danos socioeconômicos causados na bacia do rio Doce estão basicamente relacionados à dificuldade do uso e captação da água do manancial. Em 15 dos 31 municípios da macrorregião os prejuízos giram em torno de R$287 milhões em danos diretos e indiretos. As atividades industriais, agrícolas e pecuárias relataram danos em torno de R$230 milhões, sendo o setor industrial responsável por 90% do total. Em relação aos danos indiretos, os setores de comércio e serviço respondem por 18% do total (9).

    Os prejuízos econômicos públicos ocorreram em menor escala na região, sendo os maiores prejuízos concentrados no abastecimento de água, ultrapassando R$80 milhões e, em menor escala, serviços de geração e distribuição de energia, na ordem de R$2 milhões. O sistema de esgoto de água pluvial e o sistema de esgotamento sanitário foram impactados, no entanto apenas 7 municípios do estado de Minas Gerais declararam prejuízos públicos nesse setor (9).

     

    3) AÇÕES DE MITIGAÇÃO E RECUPERAÇÃO APÓ O DESASTRE

    3.1. Ações de mitigação e recuperação ambientais

    Dentre o conjunto dessas ações, destacamos cinco, tendo como principal fonte o relatório da força tarefa de MG (9).

    A primeira está relacionada à elaboração de um plano emergencial de recuperação da bacia do rio Doce contento estratégias de soluções para o abastecimento de água. Envolvem a recuperação da qualidade e disponibilidade da água e o monitoramento contínuo das águas brutas e tratadas, considerando-se a contaminação por substâncias químicas, particularmente metais pesados. No curto prazo, a definição de fontes alternativas de água prevendo a vigilância da qualidade para consumo humano.

    A segunda ação está relacionada ao zoneamento ecológico ambiental dos rios e suas margens e recomposição da mata ciliar em toda a bacia, principalmente em âmbito microrregional, devido ao grande acúmulo de material depositado às margens dos rios, que provoca a continuidade de entrada de sedimentos nos cursos d'água.

    A terceira ação relaciona-se à concepção de um sistema de previsão de eventos críticos (cheias e poluição ambiental) na bacia do rio Doce, mitigação dos efeitos da cheia e enfrentamento de desastres. Esse sistema envolve o levantamento batimétrico dos rios, prevendo: a modelagem hidrológica, hidráulica, hidrosedimentalógica e de ruptura de barragens considerando-se seus impactos.

    A quarta ação se relaciona ao monitoramento e recuperação do solo, envolvendo: 1) estudos e pesquisas sobre a nova dinâmica do solo que teve sua fertilidade comprometida, de modo a subsidiar as comunidades locais no manejo do mesmo; 2) zoneamento da área em que as margens estão recobertas por rejeitos (trecho entre o complexo de Germano e a Usina Hidrelétrica de Candonga) com a caracterização geotécnica, para subsidiar a elaboração de um plano de correção priorizando as áreas mais afetadas, plano de deposição final dos rejeitos, passíveis ou não de serem retirados.

    E a quinta ação envolve o levantamento de fauna e flora para avaliação dos impactos e para subsidiar medidas para a proteção e recuperação da biodiversidade. Esse levantamento deve ser acompanhado do monitoramento e análise toxicológica da água, solo e vegetação para avaliar o impacto dos rejeitos na dinâmica biológica da região.

    3.2. Ações de mitigação e recuperação para a saúde

    No curto prazo foi estruturado um protocolo assistencial contendo informações sobre atendimento às vítimas (cadastro, triagem, vacinação, assistência psicológica e social) e acionamento do plano de crise do hospital João XXIII em Belo Horizonte, além de recomendações para atenção e vigilância em saúde (15). Do curto ao médio prazos a estruturação de planos de contingência envolvendo a criação de comitês operativos, protocolos de atenção (psicossocial e para doenças e agravos, comunidades afetadas e trabalhadores envolvidos, direta e indiretamente, como bombeiros, policiais, trabalhadores da saúde) e vigilância (incluindo o suporte laboratorial para monitoramento da qualidade da água e alimentos; controle de pragas e vetores de doenças; investigação de doenças e agravos relacionados ao desastre), estruturação das unidades de saúde e fluxos de atendimento (16; 17; 9).

    Nas escalas micro e macrorregional, foram propostos quatro con-juntos de medidas, sendo no curto prazo: 1) o contínuo recolhimento e limpeza dos leitos e margens dos rios, uma vez que a mortandade de peixes aumenta os riscos relacionados aos insetos que são vetores de doenças; 2) conscientização da população para limpeza de reservatórios de água, de modo a reduzir os riscos de sedimentação de poluentes/ contaminantes nos mesmos. No médio e longo prazos duas ações foram propostas. A primeira, o monitoramento epidemiológico da população exposta na bacia do rio Doce articulado com o monitoramento contínuo das águas brutas e tratadas, considerando-se a contaminação por substâncias químicas, particularmente metais pesados, além da realização de um inquérito de saúde. A segunda é a estruturação de planos de contingências nos municípios, acoplado ao fortalecimento dos serviços de saúde locais e capacitação dos agentes locais de saúde (9).

    3.3. Ações de mitigação e recuperação socioeconômica

    Em relação às ações de mitigação e recuperação socioeconômica, tomamos como principal referência o relatório da força tarefa de MG (9). Entre essas ações, foi destacada a priorização da sustentabilidade da economia microrregional em um cenário sem a retomada da mineração, que resulta em impactos fiscais e nas condições de vida (perda de empregos e renda) nos curto e médio prazos para as populações afetadas.

    Como objetivo imediato foi apontada a manutenção do emprego e da renda. Como primeira iniciativa de curto prazo, foi proposto que os munícipios que tiveram estruturas danificadas invistam prioritariamente em obras de recuperação e reconstrução das mesmas, considerando-se que a construção civil é capaz de absorver rapidamente a mão de obra ociosa.

    Em médio prazo, na perspectiva de investimentos futuros, propõe-se estudar a retomada das atividades econômicas paralisadas, bem como o desenvolvimento de outras atividades que podem iniciar um processo de maior inserção de capitais na economia regional - como o fortalecimento do comércio e outros serviços, como a exploração da atividade turística -, bastante impactada com o desastre.

    Em relação às atividades relacionadas à mineração, que fortemente integram a economia regional, propõem-se a retomada das mesmas em bases sustentáveis, com implantação de novas tecnologias e processos. Ao mesmo tempo, propõe-se que essa retomada envolva maior integração da mineração com outras atividades como, por exemplo, o desenvolvimento de atividades de beneficiamento mais complexas.

    Na escala macrorregional é proposto o imediato mapeamento e estudo detalhado das atividades econômicas prejudicadas, ao longo da calha do rio Doce, de modo a minimizar, o mais rapidamente possível, os processos crônicos de degradação das economias no nível local. Propõem-se priorizar as atividades agropecuárias, pesca, areeiros, além de atividades de serviços relacionadas ao uso do rio Doce e o turismo, levando em conta que as comunidades relacionadas às mesmas tiveram, de modo parcial ou integral, suas condições de vida, produção e trabalho impactadas pelo desastre.

     

    4) DESAFIOS PRESENTES E FUTUROS PARA A REDUÇÃO DE RISCOS DE DESASTRES COMO O DA SAMARCO

    Tendo como referência o Marco de Sendai, a primeira lição que podemos extrair do desastre provocado pela empresa Samarco é que o Brasil será incapaz de avançar nas políticas e ações de redução de risco de desastre em barragens de mineração, sem que se estabeleça uma clara compreensão integral sobre suas causas nas dimensões temporais (horas, dias, semanas, meses e anos anteriores ao desastre) e de seus determinantes e condicionantes socioeconômicos. Para tanto, é preciso que se considere desde o papel que o Brasil ocupa no mercado global no fornecimento de minérios e os aumentos na demanda desta matéria-prima; o modo como os órgãos públicos, nos seus diferentes níveis - federal e estadual - encontram-se estruturados (ou melhor, cada vez mais desestruturados), para cumprir suas funções básicas de controle e prevenção de riscos; a estrutura e dinâmica das atividades econômicas nas escalas microrregional (fortemente dependente da mineração) e macrorregional. As decisões da Samarco que levaram ao maior desastre desse tipo foram tomadas seguindo as orientações da política da empresa atendendo as demandas, pressões e variações no mercado global de minérios sem que os diferentes órgãos públicos envolvidos na regulação, controle e prevenção de riscos nos níveis federal e estadual (meio ambiente, recursos minerais, recursos hídricos, só para citar alguns) fossem capazes de cumprir seu papel de regulação. Aos criadores de riscos foi permitido que suas decisões privadas e relacionadas aos seus negócios se sobrepusessem aos interesses e bens públicos, resultando em óbitos, danos e destruição. Investimentos privados que geram riscos para a vida e bens públicos têm de ser efetivamente regulados e controlados pelos órgãos, com permanente transparência e participação da sociedade (principalmente comunidades sob riscos e trabalhadores diretos e indiretos, principais vítimas fatais)

    Também seremos incapazes de aprender lições desse desastre se não analisarmos e compreendermos os impactos de modo sistêmico, pois os impactos socioeconômicos se mesclam com as alterações ecológicas e nos serviços dos ecossistemas, assim como o surgimento de doenças e agravos na saúde da população nas diferentes escalas de espaço (local, microrregional e macrorregional) e tempo (curto, médio e longo prazos). As diferentes escalas espaciais e temporais envolvem diferentes tempos para a reabilitação e recuperação ecológica, na saúde e na esfera socioeconômica. Além disso, encontra-se como grande desafio incorporar os diferentes conhecimentos e saberes no nível local, possibilitando compreender que se os aspectos macro e microrregionais apontam para padrões comuns, existem também diversidades expressas no nível local e que envolvem suas populações que devem ser consideradas, não só como objetos de pesquisas e intervenções, mas como atores fundamentais para ações de recuperação e reconstrução.

    Uma compreensão sistêmica das causas e impactos desse desastre aponta diretamente para os desafios que estão colocados em termos da governança para a redução de risco de desastres. Esta envolve desde as políticas e ações de prevenção até as de preparação e respostas, como integrantes dos processos de recuperação, reabilitação e reconstrução após os eventos iniciais que resultam nos desastres. A governança envolve tanto a estruturação e integração dos setores de governo nos diferentes níveis (minas e energia, meio ambiente, defesa civil e saúde, para citar alguns), como também a transparência dos mesmos e a participação da sociedade. O que vimos nesse desastre foi não só uma fragmentação dessas políticas e ações, como um conjunto de anormalidades transformadas em normalidades que permitiram e permitem que a barragem de mineração onde se deu o maior desastre desse tipo no mundo, nos últimos 50 anos, fosse classificada como de baixo risco, como tantas outras centenas de barragens, conforme exemplificado no Mapa 1. Anormalidades tão normalizadas que tornaram aceitável a ausência de um requisito básico, como um plano de emergência e de um sistema de alerta e alarme envolvendo defesa civil e sistema de saúde, com a participação das comunidades locais (18). Planos de emergência no papel, quando não exercitados e atualizados pelos atores diretamente envolvidos e potencialmente afetados, não são nada mais do que planos que, no máximo, cumprem requisitos burocráticos para os órgãos de governo, mas que não cumprem, em nada, sua função de proteger e salvar vidas, assim como não evitam os danos e a destruição ambiental.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. ANA, Agência Nacional de Águas. Encarte Especial Sobre a Bacia do Rio Doce-Rompimento da Barragem em Mariana MG. (Superintendência de Planejamento de Recursos Hídricos - SPR/Ministério de Meio Ambiente, Brasília DF, 2016)

    2. Funtowicz, S.; De Marchi, B.. "Ciencia posnormal, complejidad reflexiva y sustentabilidad", In: Enrique Leff. La complejidad ambiental. Cidade do México: PNUMA e Siglo Veintiuno, 54 -84, 2000.

    3. Rico, M.; Benito, G.; Salgueiro, A.R.; D'iez-Herrero A.; Pereira, H.G.. "Reported tailings dam failures. A review of the european incidents in the worldwide contexto". Journal of Hazardous Materials, vol.152, pp.846-852, 2008.

    4. Cexbarra. Relatório Preliminar. (Comissão Externa do Rompimento de Barragem na R=região de Mariana MG/Câmara dos Deputados Federal, Brasília DF, 2015)

    5. Kawaguti, L.. "Um tremor de terra pode ter destruído as barragens em Mariana?" BBC Brasil, 06/11/2015. Disponível online.

    6. Bertoni E.. "Engenheiro que projetou barragem diz que alertou Samarco sobre risco". Folha de S. Paulo, 16/01/2016. Disponível online.

    7. Parreiras M.. "Samarco acelerou deposição de rejeitos na barragem de Fundão". EM Notícias, 04/12/2015. Disponível online.

    8. DNPM. Cadastro Nacional das Barragens da Mineração (Departamento Nacional de Produção Mineral) Ministério de Minas e Energia. 2016. http://www.dnpm.gov.br/assuntos/barragens/arquivos-barragens/BARRAGENS_PNSB_04_2014.pdf/view.

    9. Força-tarefa, Avaliação dos efeitos e desdobramentos do rompimento da barragem de Fundão em Mariana-MG. (Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana-Governo de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016)

    10. Embrapa, Avaliação dos impactos causados ao solo pelo rompimento de barragem de rejeito de mineração em Mariana, MG: Apoio ao plano de recuperação agropecuária (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, 2015)

    11. Matos R.. "A tragédia do rio Doce a lama, o povo e a água". Universidade Federal de Minas Gerais; Universidade Federal de Juiz de Fora. Belo Horizonte, 2016.

    12. Ibama, Laudo Técnico Preliminar: Impactos ambientais decorrentes do desastre envolvendo o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais. Ministério do Meio Ambiente, Brasília, Brasil, 2015)

    13. ICM-BIO, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade- Ofício nº 22/2016-GABIN/PRESI/ICMBio (Ministério do Meio Ambiente, Brasília, 2016) http://www.mpf.mp.br/es/sala-de-imprensa/docs/doc-3_20160036149-1-ibama.pdf/view

    14. Como noticiado pelo jornal Folha de S.Paulo e segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Barra Longa, quase seis meses depois, a prolongada estiagem vinha resultando no aumento expressivo dos casos de insuficiência respiratória, doenças de pele e diarreias. Marques, J. "Seis meses após tragédia, poeira de lama da Samarco invade cidade de MG". Folha de S.Paulo, 26/04/2016.

    15. (SMSM). O protocolo assistencial para abordagem ambulatorial e orientações sobre as ações de vigilância em saúde às vítimas do desastre ambiental decorrente do rompimento das barragens de rejeito da mineradora Samarco (Secretaria Municipal de Saúde de Mariana) Prefeitura de Mariana/MG., 2015a).

    16. (SMSM). Plano Municipal de planejamento e gerenciamento de ações de recuperação em saúde após o rompimento da barragem de rejeitos da Samarco em Bento Rodrigues, Mariana –MG (Secretaria Municipal de Saúde de Mariana) Prefeitura de Mariana, (2015b)

    17. MS. Informe especial Mariana/MG [Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde - 13/11/2015 (2015)]

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