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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.3 São Paulo July/Sept. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300011 

    ARTIGOS
    MARIANA

     

    Desastre da Samarco/Vale/BHP no Vale do Rio Doce: aspectos econômicos , políticos e socio ambientais

     

     

    Luiz Jardim WanderleyI; Maíra Sertã MansurII; Bruno MilanezIII; Raquel Giffoni PintoIV

    IProfessor do Departamento de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS)
    IIDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ) e integrante do Grupo PoEMAS
    IIIProfessor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica e do Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenador do Grupo PoEMAS
    IVProfessora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e integrante do Grupo PoEMAS

     

     

    O presente artigo sobre o desastre da Samarco/Vale/BHP Billinton tem como base as hipóteses, indícios e dados formulados e levantados no âmbito do relatório coletivo do grupo de pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS) (1). Pretendemos aqui elucidar alguns pontos que consideramos essenciais para compreender os processos e antecedentes econômicos e políticos que culminaram com o rompimento da barragem de Fundão em 5 de novembro de 2015, no município de Mariana (MG), e seus efeitos socioambientais na bacia do rio Doce.

    O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, caminha para se tornar um símbolo do fim do megaciclo das commodities e, em particular, da forma com que o Brasil se inseriu nele. O megaciclo pode ser associado ao período entre 2003 e 2013, quando as importações globais de minérios saltaram de US$38 bilhões para US$277 bilhões (um aumento de 630%). E, em particular, quando a tonelada do minério de ferro passou de US$32 (jan./2003) ao pico de US$196 (abr./2008) e, a partir de 2011, iniciou uma tendência de queda, chegando a US$53 (out./2015) (2).

    No entanto, a crescente demanda por minérios recaiu sobre poucos países e regiões. Em 2013, apenas cinco países foram responsáveis por dois terços das exportações globais de minérios, tendo o Brasil ocupado o segundo lugar, respondendo por 14,3% das exportações de minério no mundo. Nesse período, aprofundou-se a dependência econômica do Brasil com relação ao setor mínero-exportador. A participação dos minérios na exportação do país passou de 5% para 14,5%, tendo o minério de ferro correspondido a 92,6% desse total (3).

    A Samarco pode ser identificada como um ícone desse modelo de inserção global no megaciclo. O complexo mina-mineroduto-pelotizadora-porto da empresa tem como principal função abastecer o mercado global com bens naturais semitransformados extraídos do território nacional. Além disso, seu comportamento empresarial durante os últimos anos se enquadra perfeitamente no modelo que explica o caráter estrutural do rompimento da barragem dentro da dinâmica cíclica do setor mineral.

    Segundo a hipótese de Davies e Martin (4), há um aumento da ocorrência dos rompimentos de barragens de rejeitos durante o processo recessivo dos ciclos de preços dos minérios. Para os autores, as causas para esse comportamento são várias, entre elas: a pressa para iniciar as operações no período de preços elevados, levando ao uso de tecnologias inapropriadas e à escolha de locais não adequados para a instalação dos projetos; a pressão sobre as agências ambientais pela celeridade no licenciamento, o que pode gerar avaliações incompletas ou inadequadas dos reais riscos e impactos dos projetos; movimento setorial de expansão, também durante o período de alta, causando contratação de serviços de engenharia e consultoria a preços mais elevados (aumentando o endividamento das firmas), contratação de técnicos menos experientes ou sobrecarga dos mais experientes (comprometendo a qualidade dos projetos ou a execução das obras); e a intensificação da produção e pressão por redução nos custos a partir do momento de retração dos preços.

    O problema se torna ainda mais contundente ao considerarmos a análise de Bowker e Chambers (5). Ao avaliar rompimentos de barragens ocorridos entre 1910 e 2010, eles notam o crescimento da ocorrência de rompimentos graves e muito graves, identificando mais de 30 rompimentos após a década de 1990 no mundo. Os auto-res argumentam que tal tendência é um reflexo das tecnologias modernas de mineração, que permitem a implantação de megaminas, construídas para extrair minérios a partir de reservas caracterizadas por concentrações minerais cada vez menores. À medida que a qualidade dos minérios diminui, aumenta a quantidade de rejeitos e, consequentemente, o tamanho das barragens. Os autores preveem, ainda, para o período 2010-2019, custos totais para a sociedade de US$6 bilhões devido ao rompimento de grandes barragens, e alertam para a necessidade de mudanças nos sistemas regulatórios para se adequar a essa projeção.

    Ambas as hipóteses acima podem ser associadas ao processo de construção e rompimento da barragem de Fundão e do comportamento da Samarco durante o megaciclo, como pretendemos demonstrar neste artigo. Assumindo suas plausibilidades, deve-se considerar que, se a volatilidade dos preços é uma característica intrínseca ao mercado de minérios, assim também seria o rompimento das barragens. Dessa forma, os diversos episódios de rompimento das barragens de rejeitos, em particular os de elevada gravidade, não deveriam ser vistos como eventos fortuitos, mas como elementos inerentes à dinâmica econômica do setor mineral, internos aos processos capitalistas de acumulação por espoliação e de reprodução ampliada do capital.

     

    COMPORTAMENTO ECONÔMICO DA SAMARCO DURANTE O MEGACICLO

    A Samarco Mineração S.A. é uma sociedade de economia fechada, fundada em 1973 para promover o conjunto de operações que vai desde a extração mineral, passando pelo processamento secundário, até o transporte transoceânico de pellet feed e, principalmente, de pelotas de minério de ferro.

    A Samarco se organiza como joint venture societária - uma associação entre duas empresas independentes dotada de personalidade jurídica. Desde 2000, ela é dividida igualitariamente entre Vale (50%) e BHP Billiton Brasil Ltda. (50%), a subsidiária brasileira do grupo anglo-australiano BHP Billiton. Entretanto, o formato organizacional específico da Samarco assumiu para a anglo-australiano o caráter de uma non operated joint venture, de maneira que a responsabilidade operacional recai sobre a Vale.

    Os arranjos de propriedade e controle de ambos os grupos apresentam estruturas acionárias pulverizadas e financeirizadas, revelando uma rede ampla de responsabilidade sobre o desastre tecnológico da Samarco/Vale/BHP. A cadeia de controle operacional da Vale, que se estende à Valepar S.A. e à Litel Participações S.A., explicita esses elos de responsabilidade, abrangendo grupos financeiros nacionais (Bradesco), intermediários comerciais internacionais (Mitsui), o Estado brasileiro (BNDESPar e Tesouro Nacional) e fundos de pensão de trabalhadores (Previ, Petros e Funcef).

    As operações da Samarco envolvem as atividades: de extração (em três cavas principais no complexo de Alegria, em Mariana); de beneficiamento primário (envolvendo três usinas de concentração mineral); de logística dutoviária (com três minerodutos); de pelotização (em quatro unidades localizadas no Espírito Santo); e de transporte transoceânico (por meio do terminal de Uso Privativo de Ponta Ubu) de pelotas, principalmente, e finos de minério de ferro, direcionados a mercados da África e Oriente Médio (23,1%), Ásia - exceto China - (22,4%), Europa (21%), Américas (17%) e China (16,5%).

    As estratégias de investimento e financiamento da Samarco, nos últimos anos, explicita bem a centralidade da dimensão financeira e dos acionistas na configuração das operações da empresa. A mudança no macrocenário econômico da mineração de uma fase de boom para uma de pós-boom das commodities induziu uma "aposta" por parte das principais empresas do setor na criação e ampliação de economias de escala (6). Na Samarco, o Projeto Quarta Pelotização (P4P), concluído em 2014, representou uma expansão significativa da capacidade instalada da empresa (37%), assim como a redução de descontinuidades no processo de produção, diminuindo os custos operacionais relativamente às demais empresas do setor.

    Nesse sentido, a ampliação dos investimentos dependeu adicionalmente de práticas de elevação da produtividade (do capital, do trabalho e do uso de recursos naturais), que implicam na pressão contínua sobre os trabalhadores pela ampliação dos níveis de produção e qualidade. É importante notar, contudo, que a aposta em ganhos de escala foi decisiva na elevação expressiva do endividamento absoluto da Samarco a partir de 2009, alcançando R$11,65 bilhões, em 2014. A confrontação entre o endividamento e a receita operacional da companhia aponta para uma pressão crescente pela elevação da produtividade como forma de manutenção dos níveis de remuneração aos acionistas.

    Três elementos merecem maior ênfase no que tange ao ganho de escala de produção para compreendermos os antecedentes do rompimento da barragem: 1) a ampliação da escala operacional da empresa nos últimos anos condicionou e interagiu com os determinantes fisiográficos da reserva, intensificando sua depleção mineral quantitativa e qualitativa e, portanto, impulsionando a expansão significativa da geração de estéril e rejeitos de minério; 2) essa expansão demandou, consequentemente, ampliações correspondentes da capacidade de disposição de estéril e, principalmente, rejeitos, determinando o aumento significativo do uso de recursos naturais (em especial da água, nos processos de beneficiamento primário e disposição) e da escala dos riscos associados à opção preferencial por barragens; 3) finalmente, esses elementos mantêm uma orientação exclusivamente exportadora, definida em função de estratégias privadas e públicas de acesso a recursos minerais, assim como do próprio Estado brasileiro na entrada de divisas e equilíbrio da balança comercial.

    Além disso, observou-se entre 2011 e 2014 uma elevação em 260% do número de acidentes de trabalhos (7), indicando uma tendência de deterioração ampliada das condições de trabalho. Possíveis explicações para tal fato seriam ações que visariam à diminuição de gastos operacionais, causando precarização do trabalho e redução de segurança das operações.

    Ainda, entre 2013 e 2014, a Samarco aumentou em 50% seu consumo de água - o que já era apontado nos relatórios da empresa na análise de suas operações de beneficiamento primário e disposição de rejeitos - diminuindo os níveis de eficiência em sua utilização nos processos de extração, produção e transporte (7). No mesmo período, o município de Mariana viveu uma situação crítica de escassez hídrica, que culminou no estabelecimento e intensificação de uma política de rodízio de abastecimento (8), o que demonstra um privilégio ao uso industrial em detrimento do consumo humano.

    Do ponto de vista do retorno financeiro aos acionistas da Samarco, Vale e BHP Billinton, as estratégias financeiras e gerenciais trouxeram resultados substancialmente positivos, possibilitando a manutenção de altos lucros líquidos, mesmo em um cenário recessivo, de retração dos preços e recuo da demanda por minério de ferro e derivados. Desde 2011, a empresa manteve ganhos de lucratividade superiores a R$2,5 bilhões, sendo o último registrado, em 2014, da ordem de R$2,81 bilhões (9).

     

    ROMPIMENTO DA BARRAGEM E OS PROBLEMAS INSTITUCIONAIS

    É fundamental enquadrarmos a ruptura da barragem de Fundão em uma trajetória de desastres de barragens em Minas Gerais e sua relação com procedimentos de licenciamento e monitoramento precários, o que também vale para o restante do país. Desde 1986 foram registrados, apenas no estado de Minas Gerais, sete casos de rompimento de barragens de rejeito (10). O monitoramento e controle da segurança de barragens são de responsabilidade da Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam), que os realizam em conjunto com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Anualmente, a Feam publica o "Inventário de barragens do estado de Minas Gerais", no qual essas estruturas são classificadas de acordo com seu tamanho e estabilidade. No inventário de 2014, a barragem de Fundão foi considerada estável. Entretanto, o mesmo documento apontava 27 barragens cuja estabilidade não estava garantida (sendo sete consideradas de grande impacto social e ambiental), sendo duas não estáveis desde 2012 (11). O sistema de monitoramento apresenta limitações estruturais, associadas à incapacidade e inação dos órgãos estatais em garantir níveis mínimos de segurança às populações e ecossistemas a jusante das barragens de rejeito em operação.

    A catástrofe socioambiental causada à bacia do rio Doce explicita também, de maneira ampla, a ineficácia dos estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA-Rimas) e dos processos de licenciamento ambiental em prognosticar e avaliar possíveis efeitos de grande magnitude. Análises deficientes e/ou práticas profissionais antiéticas na elaboração dos estudos têm produzido a subestimação dos impactos negativos e a superestimação dos efeitos positivos de grandes empreendimentos sobre as sociedades e o meio ambiente.

    O processo de licenciamento ambiental referente à barragem de Fundão se iniciou em 2005, sendo a primeira licença de operação do empreendimento concedida em 2008 - licença que se encontrava em processo de renovação no dia do rompimento. O EIA-Rima da barragem possui sérios problemas técnicos, o que impossibilitou a previsão da catástrofe provocada pelo rompimento da barragem e agravou os impactos sobre as comunidades atingidas.

    A opção pelo vale do córrego Fundão era a única das três alternativas locacionais que produzia impactos e efeitos cumulativos diretos sobre as barragens de Germano e Santarém, podendo gerar um efeito dominó ainda mais catastrófico no rompimento, além de ser também a única opção que drenava de maneira frontal em direção à comunidade rural de Bento Rodrigues, em Mariana, ampliando ainda mais o potencial de risco socioambiental e de morte. A análise das justificativas locacionais apresentadas no EIA-Rima indicam que a escolha por essa opção foi prioritariamente operacional, aproveitando-se do sistema de barragens de Germano-Santarém em funcionamento e diminuindo os custos da obra e operação para a destinação do rejeito. Ainda, a análise de risco do EIA-Rima classificou a possibilidade de rompimento da barragem no grau mais baixo, "improvável" (12), desconsiderando o histórico de repetidos rompimentos em Minas Gerais, no Brasil e no mundo.

    Em relação à escolha tecnológica, em nenhum momento o documento apresentou outra tecnologia alternativa para gestão e tratamento de resíduos da mineração, apesar de já existirem outros métodos de tratamento no mercado e até mesmo possibilidades de reuso da lama. A disposição do rejeito em barragem é compreendida no estudo como uma técnica dada, como se não houvesse outras opções para solucionar o problema dos rejeitos. Nesse sentido, nem mesmo a possibilidade de outros métodos construtivos foi considerada.

    O rompimento de Fundão tornou notória a negligência pela Samarco, no que se refere à implantação de um sistema de alarme sonoro e à disponibilização de pessoas treinadas para assessorar a comunidade em casos de emergência. Sem um plano de emergência efetivo, a população de Bento Rodrigues tomou conhecimento da necessidade de evacuar os imóveis e se organizou para deslocar-se em direção a um local seguro por conta própria. A lama de rejeitos contaminou o rio Doce, fazendo com que diversos municípios interrompessem a captação de água do rio, criando crises de abastecimento. Mesmo assim, a mineradora, sete dias após o rompimento, não havia executado um plano de fornecimento de água potável para os municípios afetados.

    As primeiras ações da Samarco demonstram, além da ausência de um plano de emergência estruturado, uma inoperância acompanhada de um total desconhecimento ou compreensão das possíveis proporções e magnitudes do rompimento de uma barragem daquele porte. O EIA-Rima que seria o documento responsável por projetar os cenários e eventuais efeitos de um evento extremo não o fez, deixando, portanto, lacunas fundamentais e perigosas, que, de algum modo, se reflete na inexistência de ações emergenciais efetivas.

     

    DIMENSÃO DOS IMPACTOS DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO

    Diferentemente do que estipulava o EIA-Rima, o impacto do rompimento de Fundão não se restringiu às áreas de influência preestabelecidas tecnicamente (a área das barragens da empresa mais o povoado de Bento Rodrigues). A lama produziu destruição socioambiental por 663 km nos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce até chegar na foz do último, onde adentrou 80 km2 ao mar (Mapa 1).

    Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Gesteira, a cidade de Barra Longa e outros cinco povoados no distrito de Camargo, em Mariana, foram arrasados pela lama, causando inclusive perdas humanas em Bento Rodrigues. Mortos e desaparecidos, trabalhadores da Samarco, em grande maioria subcontratados, e moradores de Bento Rodrigues, totalizaram 19 pessoas. Mais de 1.200 pessoas ficaram desabrigadas. Pelo menos 1.469 hectares de terras ficaram destruídos, incluindo áreas de proteção permanente (APPs) e unidades de conservação (UCs) - como o Parque Estadual do Rio Doce; o Parque Estadual Sete Salões; a Floresta Nacional Goytacazes; e o Corredor da Biodiversidade Sete Salões-Aymoré.

    Houve prejuízo a pescadores, ribeirinhos, agricultores, assentados da reforma agrária e populações tradicionais, como os indígenas do povo Krenak, na zona rural, e aos moradores das cidades ao longo dos rios atingidos. Sete cidades mineiras e duas capixabas tiveram que interromper o abastecimento de água. Trinta e cinco municípios de Minas Gerais ficaram em situação de emergência ou calamidade pública e quatro do Espírito Santo sofreram com os impactos do rompimento da barragem. Os efeitos da lama e da falta de água refletiram sobre residências, e prejudicaram atividades econômicas, de geração de energia e industriais (13).

    Em uma primeira análise sobre a conduta da Samarco nos momentos que se seguiram ao rompimento, as medidas fundamentais e urgentes para a garantia dos direitos humanos dos atingidos, como, sistema de avisos sonoros e um plano de emergência, estadia para os desabrigados e o fornecimento de água potável são três exemplos da conduta violadora de direitos da empresa. Medidas só foram tomadas após solicitação das equipes de resgate, pressão popular e intercessão judicial, embora a empresa as tenha divulgado como ações assistenciais e voluntárias (veja o Mapa 1).

    Deve-se ressaltar que a lama liberada pelo rompimento da barragem de Fundão provocou um rastro de destruição sobre territórios coletivos ocupados por populações rurais e ribeirinhas no vale do rio Doce e seus afluentes. As condições cotidianas de vida e trabalho dessas populações foram arruinadas comprometendo fontes locais de geração de renda e ameaçando as condições materiais e imateriais de sobrevivência. Há indícios de que o desastre possa ser enquadrado ainda, na condição de racismo ambiental, tendo em vista que há uma tendência de intensificação das situações de risco sobre comunidades predominantemente negras. Foram, sobretudo, estas comunidades negras rurais, com destaque para Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, as que sofreram perdas humanas e maior impacto material, simbólico e psicológico com o rompimento (15).

    Nesse sentido, a presença de grupos étnicos politicamente minoritários, economicamente vulneráveis e, por isso, com pequenas possibilidades de fazer ouvir suas demandas por direitos na esfera pública, pode ser compreendida enquanto elemento central na localização das barragens de rejeitos, bem como em sua sobrecarga, a ausência de controle e de fiscalização estatal, no descaso com a implantação de alertas sonoros e planos de emergência e na forma como foi conduzido o atendimento às vítimas. Essa correspondência pode ser explicada pelas injustiças e indícios de racismo ambiental presentes nos processos de flexibilização do licenciamento ambiental.

    O rompimento da barragem de rejeitos tende a causar, ainda, uma série de impactos socioambientais de curto, médio e longo prazos. O principal impacto imediato foi a total destruição de residências, infraestrutura e ainda de áreas de pastagem, roças e floresta. Além da perda de vidas humanas, houve também a morte de animais domésticos e silvestres. Uma parte considerável da calha do rio Doce foi assoreada, o que deverá aumentar os riscos de enchentes nos próximos anos e mudar a dinâmica de inundações nas cidades, com partes que antes não eram ocupadas pelas águas durante as cheias passando a ser atingidas.

    Diferentes estudos têm apresentado evidências variadas sobre a presença de metais pesados no rio, tanto na água quanto nos sedimentos (estes misturados à água, depositados nas margens e planícies de inundação ou ainda no fundo do leito). Estudos anteriores já mostravam a contaminação do rio por metais, decorrente do beneficiamento mineral no alto rio Doce. A presença desses materiais exigirá esforços consideráveis na recuperação ambiental e colocam em risco a saúde das pessoas no longo prazo, com a possibilidade de um aumento considerável de doenças crônicas (16).

    A lama de rejeito pode ter comprometido também a água dos rios e áreas de solos férteis por onde passou. Propriedades rurais, dependentes da criação de gado e dos rios próximos foram diretamente afetadas. Até o momento de elaboração deste artigo não havia laudos claros e definitivos referente à qualidade da água, à fertilidade dos solos e aos prováveis riscos de contaminação aos animais (aquáticos em particular) e aos humanos. Deste modo, a condição de vida dos agricultores, ribeirinhos, pescadores, indígenas e populações urbanas que vivem ao longo de toda a extensão afetada pela lama se encontra sob risco grave de comprometimento por tempo ainda indeterminado.

     

    CONCLUSÃO

    A barragem de Fundão entrou em operação em 2008, exatamente quando o preço do minério de ferro alcançava o seu ápice. Seu licenciamento ambiental foi realizado por instituições que passam por intenso processo de precarização e interferência política, sendo, mesmo assim, sua aprovação vinculada a uma série de condicionantes, nem sempre cumpridas de forma efetiva. Da mesma forma, a empresa passou por um processo de elevação considerável de endividamento, sem o correspondente aumento de receita, dentro de um contexto de crescente pressão de investidores pela manutenção dos níveis de rentabilidade (17). Há indícios, principalmente associados ao aumento significativo dos acidentes de trabalho e à não execução de planos de segurança, de que tal pressão causou uma intensificação no processo produtivo e, possivelmente, negligência com aspectos de segurança.

    As operações de disposição de rejeitos na indústria extrativa mineral no Brasil, em geral, e na Samarco, em particular, constituem uma opção política e tecnológica determinada por incentivos de mercado, práticas corporativas inadequadas e intensificadoras de riscos socioambientais e da inação estatal no que concerne à fiscalização e controle. Em grande medida, a indústria de extração mineral no Brasil sofre de uma espécie de "dependência de barragens" que configura um horizonte de risco ampliado para populações e ecossistemas no entorno dessas estruturas de disposição.

    De um lado, prevalecem no setor práticas corporativas orientadas à redução de custos operacionais quanto à disposição de rejeitos, exemplificadas pela ausência e/ou deficiência de projetos de engenharia, automatização e/ou subcontratação de atividades de inspeção etc. De outro, o reforço do marco regulatório de barragens no Brasil e em Minas Gerais não se faz acompanhar de responsabilidades definidas e capacidades tecno-operacionais ao nível dos sistemas de controle e fiscalização de barragens, em especial no que se refere aos papéis da Agência Nacional de Águas (ANA), do DNPM e dos órgãos ambientais estaduais e federais.

    De maneira geral, a (in)ação do Estado, no que diz respeito a um entendimento amplo e democrático da matriz de disposição e recuperação de rejeitos de mineração no Brasil, provoca uma armadilha de elevação exponencial dos riscos para os grupos sociais, econômica e politicamente vulneráveis. De modo fundamental, tecnologias de disposição de resíduos voltadas à expansão de densidade e redução de conteúdo líquido (elemento crucial na definição de riscos socioambientais em barragens) se encontram plenamente difundidas e devem ser o objeto central de uma política pública ambiental e socialmente referenciada de disposição de rejeitos de mineração, implicando inclusive em restrições limitadas a processos tecnológicos (barragens de rejeito, em especial) e suas escalas operacionais.

    Luiz Jardim Wanderley é professor do Departamento de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS). Maíra Sertã Mansur é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ) e integrante do Grupo PoEMAS. Bruno Milanez é professor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica e do Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenador do Grupo PoEMAS. Raquel Giffoni Pinto é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e integrante do Grupo PoEMAS.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. PoEMAS. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). Mimeo. 2015.

    2. World Bank. Commodity Markets. Disponível em: http://www.worldbank.org/en/research/commodity-markets [Acesso em: 22/11/2015] .

    3. ITC. “Trade Map: trade statistics for international business development”. Disponível em: http://www.trademap.org/ [Acesso em: 22/11/2015].

    4. Davies, M.; Martin, T.. “Mining market cycles and tailings dam incidents”. In: 13th International Conference on Tailings and Mine Waste, Banff, AB, 2009.

    5. Bowker, L.; Chambers, D. “The risk, public liability & economics of tailings storage facility failures”. Research Paper. Stonington, ME, 2015.

    6. Santos, R. “Mineração e a conjuntura do pós-boom das commodities”. In: Audiência Pública da Comissão Especial – PL 37/11 – Mineração Brasília, 2015.

    7. Samarco Mineração, 2010, 2011, 2012, 2013a, 2014a, 2015d Apud PoEMAS op. Cit

    8. Prefeitura de Mariana. “Estiagem afeta abastecimento de água”. (27/08/2014) Disponível online.

    9. Samarco Mineração, 2014d, 2015e Apud PoEMAS, op. cit.

    10. Sobre rompimento de barragens em Minas Gerais ver: Faria, M. 2015; Ibama, 2009; Oliveira, N. 2015; Souza, S. 2008, apud PoEMAS op. cit.

    11. Feam. Inventário de Barragem do Estado de Minas Gerais. Ano 2014. Belo Horizonte: FEAM. Fundação Estadual do Meio Ambiente, 2014.

    12. Brandt Meio Ambiente. Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Barragem de Rejeito do Fundão. Nova Lima, 2005. p. 214.

    13. Sobre o conjunto de danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, ver as seguintes notícias, todas disponíveis online: “Barragem se rompe, e enxurrada de lama destrói distrito de Mariana”, G1 (05/11/2015); “Imagens da Nasa mostram caminho da lama até foz do rio Doce”. O Globo. (02/12/2015); Mota, T.. “Rompimento de barragem deixa 35 cidades mineiras em situação de emergência”. R7 Notícias (27/11/2015).

    14. Barcelos, E. (Cartógrafo). O rastro da destruição. O caminho da lama... na bacia do Rio Doce, elaborado em 2015.

    15. Wanderley, L. J.. “Indícios de racismo ambiental na tragédia de Mariana”, 2015. Relatório preliminar. Grupo PoEMAS. Disponível no site: http://www.ufjf.br/poemas/

    16. Sobre as informações referentes à presença de químicos no rio Doce ver: Bonella, M.. “Lama de rompimento de barragens contamina água da região”. Jornal Hoje. (11/09/2015); Costa, A.; Nalini Jr., H.; Lena, J.; Mages, M.; Friese, K.. “Surface water quality parameters in an iron mine region, Quadrilátero Ferrífero, Minas Gerais, Brazil”. In: International Mine Water Association (IMWA) Symposium, Belo Horizonte, 2001; Cunha, F.. Resultados analíticos de metais em amostras de sedimentos de corrente (18 nov 2015). Rio de Janeiro: Companhia de Pesquisa em Recursos Minerais, 2015; IGAM. Monitoramento da qualidade das águas superficiais do rio Doce no estado de Minas Gerais (30/nov/2015). Belo Horizonte: Instituto Mineiro de Gestão das Águas, 2015; Governador Valadares. SAAE analisa regularmente água do Rio Doce. Prefeitura de Governador Valadares. (11/13/2015), 2015. Tommasi Analítica. Relatório analítico parcial 002-63866-96-01. Vila Velha: Tommasi Analítica, 2015.

    17. Nieponice, G.; Vogt, T.; Koch, A.; Middleton, R.. Value creation in mining 2015: beyond basic productivity. Boston: BCG. The Boston Consulting Group, 2015.