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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2016
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400002
TENDÊNCIAS
Conflitos pela posse de terras indígenas em Mato Grosso do Sul
Jorge Eremites de Oliveira
Antropólogo social, arqueólogo e historiador; professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e bolsista produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
O Mato Grosso Sul foi criado em 1977 e implantado em 1979, durante o regime militar (19641985), a partir do desmembramento de 357.145,532 km2 de Mato Grosso. Nesta parte do Centro-Oeste estão estabelecidas comunidades Atikum, Guarani (Ñandeva), Guató, Kadiwéu, Kaiowá, Kamba, Kinikinau, Ofaié e Terena, dentre outras. Segundo censo oficial realizado em 2010, a população indígena no estado totalizaria 73.295 pessoas, a segunda maior no país. Paradoxalmente, a grande maioria vive em espaços diminutos e insuficientes para sua reprodução física e cultural.
A realidade apontada favorece ao confinamento de milhares de famílias em pequenas extensões de terra, como ocorre em reservas criadas nos anos 1910 e 1920. A situação é tão grave que na reserva indígena de Dourados, instituída em 1917, há uma população multiétnica de aproximadamente 14 mil pessoas para 3.475 hectares. Trata-se de uma área com alto índice de violência, cujas origens não estão relacionadas à cultura tradicional indígena, mas a ações do Estado brasileiro no processo de territorialização dos coletivos ali assentados. Refiro-me à sua responsabilidade na imposição de práticas de opressão e discriminação etnicorracial como forma de disciplinamento, exploração, subjugação, tentativas de assimilação por meio da aculturação etc.
Por estes e outros motivos, os problemas que atingem os povos indígenas em Mato Grosso do Sul ganham destaque nas redes sociais e na imprensa nacional e internacional. Ano após ano, ininterruptamente, dezenas de pessoas são mortas durante conflitos pela posse de terras indígenas e nada é feito de objetivo para evitar os massacres e solucionar o problema. Vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, prefeitos e governador, mandato após mandato, salvo honrosas excessões, simplificam o problema. Rechaçam o enfrentamento da questão fundiária, causa maior dos conflitos, e recorrem à estratégia de culpabilizar instituições alhures a eles pelo genocídio em andamento, especialmente contra os Guarani e Kaiowá: Supremo Tribunal Federal, governo federal, Ministério da Justiça, Presidência da República, Ministério Público Federal, Conselho Indigenista Missionário, associações científicas, universidades, forças alienígenas que desejariam se apoderar do aquífero Guarani etc. Utilizam-se de sofismas dos mais variados para distorcer a realidade e formar opinião pública contrária à regularização das terras indígenas (e quilombolas) no país. Buscam ainda criminalizar pessoas e instituições nacionais e internacionais ligadas à defesa dos direitos humanos. Amiúde afirmam que é a União, e mais ninguém, que pode solucionar os conflitos, desde que o faça a favor dos fazendeiros, os quais não raramente financiam suas campanhas eleitorais e projetos de poder.
A questão fundiária, por sua vez, é um antigo problema que remonta aos séculos XVIII, XIX e XX, quando teve origem a propriedade privada da terra na região. Com o final da guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (18641870), o antigo sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul, passou a ser mais rapidamente colonizado por migrantes oriundos de várias partes do Brasil, além de pessoas vindas de além-mar e países vizinhos, tidos como os "pioneiros". A partir de então, o espaço regional passou a ser marcado pela violência armada, sobretudo quando comunidades indígenas tiveram seus territórios invadidos por fazendeiros e militares desmobilizados do exército imperial. Contudo, sem os povos originários, essa parte da bacia platina não estaria incorporada ao território nacional. Foi graças às alianças com os indígenas - verdadeiras muralhas do sertão, articuladas desde a segunda metade do século XVIII -, que Portugal estabeleceu sua hegemonia para além dos limites do Tratado de Tordesilhas, de 1494. No século XIX, quando o Brasil se tornou Estado nacional, as alianças permaneceram. Exemplo disso foi o protagonismo que os antepassados dos atuais Guató, Kadiwéu e Terena tiveram na defesa do território brasileiro durante o referido conflito bélico, haja vista que parte da então província esteve sob invasão de tropas paraguaias, entre fins de 1864 e parte de 1867.
Após a guerra, sobremaneira entre as décadas de 1870 e 1940, houve a expansão de frentes econômicas da sociedade nacional e, consequentemente, o aumento da titulação dolosa de territórios indígenas a favor de terceiros. Povos originários passaram a ter suas terras usurpadas e, via de regra, não tinham a quem recorrer na esfera governamental. Nesse contexto, foi ainda imposto aos Guarani, Kaiowá, Terena e outros indígenas uma forma perversa de exploração da força de trabalho, baseado no sistema do barracão, espécie de escravidão por dívidas. Nessa condição, trabalharam na derrubada da mata, criação de bovinos, produção comercial de erva-mate e outras atividades. Depois de formadas as propriedades rurais, muitas delas entre as décadas de 1950 e 1970, impulsionadas pela expansão do agronegócio no Brasil profundo, a mão de obra nativa foi dispensada de muitas fazendas.
No horizonte da constituição do Estado brasileiro e da formação da sociedade nacional, portanto, são registradas sucessivas tentativas de exploração, dominação e extermínio dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul. Em síntese, à medida que ali se estabeleceram, fazendeiros incorporaram terras de ocupação tradicional ao seu patrimônio e fizeram fortunas com a exploração das áreas e da mão de obra nativa. À frente deles emergiu um grupo de proprietários de terra que, aproveitando-se da influência obtida nos governos municipais, estadual e federal, ganhou poderes sobre pessoas e coisas. Constituiu-se, assim, um establishment ruralista com grande influência no Estado brasileiro, inclusive dentro do movimento divisionista que culminou com a fundação da unidade federativa. O mesmo grupo está ligado ao agrobanditismo local: planeja e executa ações de grupos armados contra comunidades em situação de vulnerabilidade social, especialmente Guarani e Kaiowá. A seu favor está a certeza da impunidade, ratificada historicamente nos poderes da República, que estimula a promoção de crimes tipificados como genocídio.
Um dos resultados disso tudo tem sido o assassinato de centenas de pessoas nos últimos anos, ocorrido durante a retomada de terras indígenas: Marcos Veron, Kaiowá, 72 anos (Juti, 13/01/2003); Genivaldo Verá, 21 anos, e Rolindo Verá, 23 anos, ambos Guarani (Paranhos, 31/10/2009); Oziel Gabriel, Terena, 35 anos (Sidrolândia, 30/05/2013); Nísio Gomes, Kaiowá, 69 anos (Aral Moreira, 18/11/2011); Marinalva Manoel, Kaiowá, 27 anos (Dourados, 01/11/2014); Simeão Fernandes Vilhalba, Kaiowá, 24 anos (Antônio João, 29/08/2015); Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, Kaiowá, 26 anos (Caarapó, 14/06/2016). Somam-se à lista outros tantos homicídios, como o do Kaiowá Nelson Franco, em 1952, e do Guarani Marçal de Souza, no dia 25/11/1983, em Antônio João. O alvo principal dos pistoleiros, organizados ou não em milícias armadas, tem sido as lideranças indígenas.
A situação tende a piorar em decorrência dos recentes retrocessos políticos verificados no país e, consequentemente, do maior empoderamento de grupos que atentam contra os direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Tais forças, cujas ideias ecoam no Palácio do Planalto, defendem a Proposta de Emenda Constitucional nº. 215/2000 e outras tentativas de ceifar direitos assegurados na Lei Maior. Neste cenário, Mato Grosso do Sul segue como o mais anti-indígena dos estados brasileiros e, anualmente, disputa a liderança na classificação dos lugares com o maior número de mortes de índios no país e no mundo, dentre outras formas de violência.