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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2016

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400017 

    ARTIGOS & ENSAIOS

     

    Lagoa Santa: em busca dos primeiros americanos

     

     

    Walter A. NevesI; Pedro Da-GloriaII; Mark HubbeIII

    IProfessor titular do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva e coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos, ambos no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: waneves@ib.usp.br
    IIFormado em biologia pela USP e doutor em antropologia pela The Ohio State University (EUA). Atualmente é pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos da USP. E-mail: da-gloria@ib.usp.br
    IIIDoutor em antropologia biológica pela USP. Atualmente, é professor associado do Departamento de Antropologia da The Ohio State University. E-mail: hubbe.1@osu.edu

     

     

    A região de Lagoa Santa, a cerca de 50 km ao norte de Belo Horizonte, Minas Gerais (figura 1), tem tido especial destaque no cenário científico brasileiro por ser um dos primeiros locais de investigação sistemática do material arqueológico e paleontológico no nosso território, abarcando mais de 180 anos de pesquisas. Os achados na região cruzaram as fronteiras nacionais, impactando diretamente as concepções sobre a antiguidade e o modo de ocupação do continente americano. Todavia, entender essa longa história de pesquisa em Lagoa Santa sempre demandou um esforço enorme para o pesquisador. Entre outras coisas, porque as fontes primárias estão distribuídas em arquivos em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Copenhague, sendo algumas delas apenas manuscritos ou relatórios internos dessas instituições.

    Neste artigo, buscamos contar a história de pesquisas arqueológicas e paleontológicas em Lagoa Santa, incluindo estudos das múltiplas instituições que contribuíram para a pesquisa na região, tais como no cenário nacional o Museu Nacional do Rio de Janeiro, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de São Paulo (USP), e no cenário internacional as missões americana e francesa.

    Os estudos em Lagoa Santa sempre se caracterizaram por sua multidisciplinaridade, incluindo diálogos entre biologia, arqueologia e antropologia. Dessa forma, este artigo cumpre o papel de mostrar uma área de pesquisa que é movida por questões científicas específicas ao invés de se enquadrar em uma disciplina tradicional. Muitas das perguntas, tais como sobre a antiguidade do homem nas Américas, são legados de Peter Lund, naturalista dinamarquês que trabalhou na região no século XIX, em uma época em que os naturalistas transitavam livremente por campos científicos bastante diversos (1).

     

     

    Os estudos em Lagoa Santa apresentam também uma grande relevância para o patrimônio nacional. Durante muito tempo a região atraiu mineradoras em busca de calcário, cujas atividades ameaçavam a preservação de grutas e abrigos. A destruição de sítios arqueológicos por depredação ou por escavações não controladas, essas últimas realizadas até mesmo nos anos 1970, impactaram muito significativamente o material arqueológico da região. Dentro desse contexto de preservação do patrimônio brasileiro, nada mais crucial do que divulgar a riqueza de conhecimentos produzidos em Lagoa Santa, que conta com coleções armazenadas em museus e universidades públicas nacionais e internacionais.

    O trabalho pioneiro de Peter Lund em Lagoa Santa ocorreu entre 1835 e 1844. Das centenas de grutas e abrigos localizados pelo naturalista dinamarquês com potencial fossilífero, ele explorou aproximadamente 80 deles, localizando mais de 12 mil fósseis. Entretanto, o sítio mais polêmico escavado por Lund foi a Gruta do Sumidouro. Nela, Lund encontrou restos de megafauna associados a restos humanos. A partir dessa associação, Lund propôs que a ocupação do continente americano tinha sido muito anterior ao que se pensava e que o homem e a megafauna tinham convivido em Lagoa Santa. Todas as missões que sucederam o trabalho de Lund na região tiveram, em alguma medida, o objetivo de testar essas propostas.

    Porém, as grutas de Lagoa Santa voltaram a ser pesquisadas sistematicamente somente no início do século XX, quando duas grandes equipes se dedicaram a novas escavações: do Museu Nacional do Rio de Janeiro e da Academia de Ciências de Minas Gerais. Essas pesquisas levaram a um acirrado debate entre os pesquisadores dessas duas instituições. Aqueles ligados ao Museu Nacional não encontraram evidências da contemporaneidade entre o homem e a megafauna. Já os especialistas da Academia de Ciências defenderam ferozmente a visão lundiana: o homem e a megafauna de fato teriam convivido em Lagoa Santa. Essa posição era sustentada principalmente pela associação entre restos de megafauna e o célebre Homem de Confins, encontrado pelos pesquisadores da Academia de Ciências na câmara interna da Lapa Mortuária de Confins (2).

    O problema de ambas as intervenções é que na época em que foram realizadas não se dispunha de métodos de datação absoluta para os restos encontrados, como, por exemplo, o método do carbono-14. Esse quadro só viria a se modificar nos anos 1950 com a missão americana na região. Das minuciosas escavações realizadas por essa missão, com controle estratigráfico rígido, sobretudo em sete abrigos e grutas no complexo de Cerca Grande, duas respostas às hipóteses de Lund emergiram: primeiro, ao contrário do que Lund acreditava, não teria havido uma convivência entre homem e megafauna em Lagoa Santa, já que nenhum osso de megamamífero foi encontrado nos sítios escavados; segundo, Lund estava correto quanto a uma de suas hipóteses: a ocupação humana na região era de fato muito antiga (3). Na década de 1960, a missão americana produziu as primeiras datações por carbono-14 para Lagoa Santa, tendo encontrado ali vestígios de ocupação humana desde aproximadamente 10 mil anos (4).

     

     

    Essa data recuada no tempo estimulou Annette Laming-Emperaire, destacada arqueóloga francesa, a estabelecer em Lagoa Santa a famosa missão franco-brasileira, durante a década de 1970. Além de poços-testes realizados em vários sítios da região, a missão dedicou-se, sobretudo, à escavação do sítio Lapa Vermelha IV (5). Duas importantes constatações foram feitas pela missão: a ocupação humana em Lagoa Santa podia ser recuada até 11 mil anos e um esqueleto humano encontrado a cerca de 12 metros de profundidade tinha idade estimada entre 11 e 12 mil anos. Na década de 1990, esse esqueleto foi batizado de Luzia pelo bioantropólogo Walter Neves, coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Ainda hoje, Luzia é um dos esqueletos mais antigos encontrados no continente americano (6). Entretanto, a missão francesa também não encontrou vestígios inequívocos de contemporaneidade entre homem e megafauna na região. Em outros termos, mais uma vez, apenas uma das hipóteses de Lund foi confirmada.

    Várias décadas se passaram até que novas escavações foram estabelecidas em Lagoa Santa por meio do projeto "Origens" (7). A equipe do projeto, coordenada por Walter Neves, realizou várias escavações arqueológicas e paleontológicas em vários abrigos e grutas da região (figura 2) no período entre 2000 e 2009. O objetivo do projeto era testar uma série de hipóteses, algumas ainda remetendo às ideias de Lund. Dentre elas, se destacam: 1. que houve na região uma ocupação recuada no Pleistoceno, ou seja, com mais de 11 mil anos; 2. que o homem e a megafauna conviveram na região; 3. que a subsistência dessas primeiras populações caçadoras-coletoras não era baseada na caça de grandes animais; 4. que os grupos que ocuparam Lagoa Santa na transição Pleistoceno/Holoceno também ocuparam locais em campo aberto, além das grutas e abrigos; 5. que os abrigos foram usados como cemitérios desde o início da ocupação da região; e, 6. que os sepultamentos antigos de Lagoa Santa eram simples e homogêneos.

    Nossas pesquisas foram incapazes de encontrar vestígios arqueológicos em Lagoa Santa com mais de 11 mil anos. Com referência à segunda hipótese, o projeto, pela primeira vez, confirmou de forma inequívoca a ideia de Lund sobre a megafauna. Com a obtenção de datas ao redor de nove mil anos para uma preguiça gigante e para um tigre dentes-de-sabre, ficou claro que de fato o homem e a megafauna conviveram na região por pelo menos dois milênios. Por outro lado, não encontramos evidências de que os primeiros habitantes da região caçaram esses grandes animais. Em realidade, o alto índice de cáries dentárias e a ausência de ossos de grandes mamíferos nos sítios arqueológicos nos levam a pensar em uma dieta com ênfase em plantas não domesticadas, tais como as frutas jatobá e pequi (8).

    A quarta hipótese também foi apoiada. Os primeiros sítios antigos em campo aberto foram identificados em Lagoa Santa através das prospecções do projeto "Origens". Escavações concentradas no entorno da Lagoa do Sumidouro, uma das maiores da região, revelaram ali sítios arqueológicos datados de até 10 mil anos. Já a hipótese de que as cavidades naturais de Lagoa Santa foram usadas como cemitérios desde o início da ocupação humana na região não foi confirmada. Apesar dos humanos terem ali chegado por volta de 11 mil anos, os primeiros sepultamentos não ultrapassam os nove mil anos, com exceção de Luzia (que talvez nem seja um sepultamento deliberado). Além disso, através de dezenas de datações realizadas sobre restos ósseos humanos depositados em museus ou exumados no contexto do "Origens", ficou claro que os abrigos e grutas foram intensivamente usados como cemitérios até sete mil anos.

    Finalmente, a hipótese de que esses sepultamentos eram simples e homogêneos também não acolheu confirmação. Um estudo detalhado sobre os padrões mortuários encontrados na Lapa do Santo, o principal sítio escavado pelos pesquisadores do projeto "Origens", mostrou, muito pelo contrário, que os lagoassantenses do início do Holoceno tinham um elaborado sistema funerário. Essa complexidade, entretanto, não se expressava através de uma preparação meticulosa da cova, ou da deposição de oferendas mortuárias, como costuma ocorrer, por exemplo, nos sambaquis da costa brasileira. O que encontramos foi um intrincado sistema de manipulação dos corpos logo após a morte do indivíduo. Entre outros tipos de manipulação do cadáver, destacam-se a remoção sistemática de partes dos ossos longos quando os membros ainda estavam cobertos por músculos, calotas cranianas pintadas por ocre vermelho (pó de hematita) contendo vários ossos do resto do corpo de um ou mais indivíduos e até mesmo um exemplo de decapitação (9).

    Outro objetivo sempre percolou o projeto "Origens": exumar novos esqueletos humanos de grande antiguidade através de escavações minuciosas e bem datadas. Nesse sentido o projeto obteve grande êxito. Cerca de 30 novos esqueletos dos sítios Lapa das Boleiras e Lapa do Santo, sobretudo do segundo, foram exumados. Cabe relembrar que a maioria dos cerca de 250 esqueletos antigos de Lagoa Santa, até então depositados em museus no Brasil e no exterior, emergiram de escavações sem controle estratigráfico rígido. Ainda mais, as escavações do projeto "Origens" deixaram um legado riquíssimo para estudos de fauna, flora e tecnologia das primeiras ocupações na região.

    O estudo desses novos esqueletos, em particular de seus crânios, permitiu confirmar aquilo que, desde 1989, Neves vem defendendo, juntamente com vários colaboradores: que a América foi ocupada por duas migrações distintas. A primeira teria sido realizada por populações não mongoloides (com crânios alongados e faces baixas) e a segunda por povos mongoloides (com crânios arredondados e faces altas), muito similares aos povos que hoje ocupam o noroeste da Ásia. Esses últimos teriam dado origem aos indígenas atuais. A primeira população, por outro lado, apresentava características cranianas muito similares aos africanos e australianos atuais. O fato dos primeiros migrantes apresentarem uma morfologia similar a dos africanos e australianos não significa que esses povos tenham vindo diretamente da Austrália ou da África para as Américas. Esses povos também ocupavam a Ásia até 10 mil anos atrás e, portanto, também entraram no Novo Mundo pelo norte, através do estreito de Bering (10).

    A questão da morfologia craniana peculiar dos antigos habitantes de Lagoa Santa também remete a Lund. O naturalista dinamarquês, observando os crânios do Sumidouro, já sugeria que sua morfologia era diferente da dos indígenas atuais. Antropólogos do Museu Nacional do Rio de Janeiro chegaram à mesma conclusão, na década de 1870, examinando o único crânio de Lagoa Santa que Lund deixou no Brasil (11). Na primeira metade do século XX, Paul Rivet, célebre antropólogo francês, também notou que os crânios antigos da América do Sul, aí incluídos os de Lagoa Santa, apresentavam uma morfologia australo-melanésica (12). Caiu em desgraça, entretanto, por sugerir que teria havido uma migração direta da Austrália para o continente americano. Na sua época ainda não se sabia que povos não-mongoloides também teriam habitado o nordeste da Ásia no final do Pleistoceno.

    Enfim, esperamos ter demonstrado que Lagoa Santa foi extensiva e intensivamente explorada nos últimos 180 anos, fazendo dela uma região única nas Américas pela presença de grande quantidade de material arqueológico e paleontológico antigo. Mas por que essa singularidade? Por uma confluência de fatores: em primeiro lugar, ao fato da região ter sido densamente ocupada na transição Pleistoceno/Holoceno. Em segundo lugar, porque os mortos eram enterrados em abrigos e, portanto, mais fáceis de serem encontrados; e, finalmente, porque, sendo uma região calcária, os restos orgânicos, incluindo os ossos humanos, são excelentemente preservados. Por isso, qualquer interessado em estudar a biologia e o comportamento dos primeiros americanos tem que passar necessariamente por Lagoa Santa.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Holten, B.; Sterll, M. P.W. Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

    2. Walter, H.V.; Cathoud, A.; Mattos, A. "The Confins Man: a contribuition to the study of early man in South America". In: Early Man. Philadelphia: J. B. Lippincott, p 341-348. 1937.

    3. Hurt, W.; Blasi, O. Arquivos do Museu Paranaense, NS, Arqueologia, 4, 1-63. 1969.

    4. Hurt, W. American Antiquity, 113, 3-10. 1964.

    5. Laming-Emperaire, A. Revista de Pré-História, 1, 54-89. 1979.

    6. Neves, W. A.; Powell, J. F.; Ozolins, E.G. Homo, 50, 263-282. 1999.

    7. Araujo, A. G. M.; Neves, W. A.; Kipnis, R. Latin American Antiquity, 23, 533-550. 2012.

    8. Da-Gloria, P.; Larsen, C. S. American Journal of Physical Anthropology, 154, 11-26. 2014.

    9. Strauss, A.; De-Oliveira, R.; Bernardo, D.; Garcia, D. C. S.; Talamo, S.; Jaouen, K.; Hubbe, M.; Black, S.; Wilkinson, C.; Richards, M.; Araujo, A.; Kipnis, R.; Neves, W. PLoS ONE, 10(9), e0137456. 2015.

    10. Neves, W. A.; Hubbe, M. Proceedings of the National Academy of Science of USA, 102, 18309-18314. 2005.

    11. Lacerda, J. B.; Peixoto, R. Archivos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, 1, 47-79. 1876.

    12. Rivet, P. Bulletins et Mémoires de la Société D'Anthropologie de Paris, 19, 209-275. 1908.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Da-Gloria P.; Neves, W. A.; Hubbe, M. Lagoa Santa: História das pesquisas arqueológicas e paleontológicas. São Paulo: Editora Annablume. 2016.

    Neves, W.; Piló, L. B. O povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Editora Globo. 2008.