Services on Demand
Journal
Article
Indicators
Related links
- Cited by Google
- Similars in SciELO
Share
Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.68 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2016
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000400018
ARTES PLÁSTICAS
Olhares transformando o lixo
Adriana Menezes
A arte e o lixo se relacionam como a desafiar o sentido de tudo. Se no passado ambos tinham bem definidos seus significados, cada qual em seus lugares estabelecidos, em certo momento da era moderna esses conceitos se transformam: a arte pode virar lixo e o lixo pode virar arte. E quando o lixo é tema da obra de arte há sempre uma missão: transgredir ou advertir.
O dadaísmo, movimento artístico do início do século XX, encontrou no lixo o elemento de transgressão que procurava criticar as guerras e a insensatez humana. Em 1913, o francês Marcel Duchamp instalou uma roda de bicicleta sobre um banquinho. É dele também A fonte, um urinol de porcelana, considerada uma das obras mais representativas desse movimento artístico. Com essas obras, Duchamp desafiava os valores estéticos e artísticos da época. Para os dadaístas, qualquer objeto jogado na rua poderia se transformar em peça artística, lembra Ricardo Cruzeiro, artista gráfico e escultor. "Há um bom tempo existe esta relação de amor e ódio entre arte e lixo", diz Cruzeiro. "Inicialmente, ela significava uma severa crítica ao fazer artístico, mas foi se tornando uma tendência e, logo em seguida, um movimento, e depois uma verdadeira ditadura do reducionismo".
Em 1961, o artista Pietro Manzoni chegou a enlatar as próprias fezes e criou uma embalagem a que deu o título de A merda do artista. "Vendeu por uma pequena fortuna", lembra Cruzeiro, sem esquecer ainda da arte povera italiana (arte pobre), do final da década de 1960, que, com a utilização de sucata, provocava a reflexão sobre como a sociedade usa e descarta os objetos.
Hoje, exemplos de artistas que introduzem o lixo na arte aparecem em todo canto do mundo. Alguns, como o sergipano Arthur Bispo (1909-1898), mais conhecido como Bispo do Rosário, fazia essa opção muito mais devido à carência de recursos. Era no lixo que ele encontrava inspiração e sua matéria-prima. Com diagnóstico de insanidade mental, ele pegava materiais descartados na clínica onde ficou internado por muitos anos para criar roupas e instalações.
No período em que escolheu viver de sua própria arte, nos subúrbios de Nova York nos anos 1970 e 80, o norte-americano Jean-Michel Basquiat (filho de mãe porto-riquenha e pai haitiano, ex-primeiro ministro daquele país) buscava no lixo as telas para suas obras. Pintou em papelão, madeira de refugo e papel reaproveitado.
DESAFIO EXTRAORDINÁRIO
No início do século XXI, a razão do lixo ser utilizado na produção artística relaciona-se principalmente às discussões mundiais sobre meio ambiente. É nesse contexto que ele passa a ser o foco do olhar do artista que quer mostrar as deformações da sociedade, é uma forma de protesto e de conscientização por meio da arte. Um desses artistas é o brasileiro Vik Muniz, conhecido por combinar o material que usa com o tema de suas obras. Em um de seus trabalhos ele criou uma série de imagens de grande porte com objetos coletados no aterro de Gramacho, na cidade de Duque de Caxias (RJ). Fechado em 2012, era o maior aterro sanitário a céu aberto do mundo. O trabalho artístico de Vik Muniz transbordou os limites da obra de arte, transformando-se em um projeto social com os catadores. A história dessas pessoas foi tema do documentário anglo-brasileiro Lixo extraordinário, de 2010. Indicado ao Oscar em 2011 na categoria "Melhor Documentário" e vencedor em importantes festivais de cinema, como Sundance e Berlim, o filme chamou a atenção do mundo para as péssimas condições de vida dos catadores, ao mesmo tempo em que deu visibilidade para os desafios da deposição de resíduos sólidos.
O impacto do lixo no meio ambiente também é mote da megainstalação True rouge (1997), do artista pernambucano Tunga, exposta em uma das galerias do Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. A obra impressiona o espectador pela grandiosidade: um conjunto de redes suspensas no teto, recheadas de vidro soprado, pérolas de vidro, esponjas do mar, bolas de sinuca, escovas de limpar garrafas, feltro e bolas de cristal, tudo banhado em vermelho que respinga no chão como gotas de sangue. Dramaticidade para lembrar o visitante das feridas no planeta feitas pelo homem e seu lixo. Na obra os objetos parecem ecoar um choro, em uma evocação às crenças xintoístas japonesas que contam que todas as coisas têm espírito e aquelas que são jogadas fora "choram à noite na lata de lixo".
Outros artistas brasileiros que se destacam na prática de utilizar o material descartado são Jaime Prades e Henrique Oliveira. Pioneiro na arte urbana brasileira, Prades constrói esculturas que evocam árvores, utilizando restos de madeira que ele recolhe em caçambas e na rua. As obras compõem um projeto que o artista chama Natureza humana. Henrique Oliveira também usa a madeira sucateada. Em obras feitas para ocupar grandes espaços, ele trabalha com texturas, por meio das quais confere às suas instalações movimento e volume, como se quisesse devolver vida aos materiais descartados.
Fora do Brasil, é possível destacar outros oito artistas, a maioria deles jovens que criam a partir do lixo. A artista japonesa Sayaka Kajita Ganz faz esculturas de animais com plásticos descartáveis, como copos e colheres. A norte-americana Ann P.Smith reutiliza peças de eletroeletrônicos e eletrodomésticos descartados para criar esculturas-robô com as quais produz vídeos em slow motion. Também dos Estados Unidos, Erika Iris Simmons faz uma arte figurativa - e menos conceitual - utilizando fitas cassetes para produzir quadros de músicos como John Lennon e Michael Jackson. Já Sandhi Schimmel Gold usa resíduos de papel e lixo eletrônico como matéria-prima em seus mosaicos também figurativos e coloridos - sempre com tinta não tóxica. O fotógrafo californiano Chris Jordan produz belas imagens com tampas de garrafa, latas de alumínio, lâmpadas e qualquer tipo de sucata. Na foto Plastic cups ele utilizou um milhão de copos de plástico, o mesmo volume descartado pelas companhias aéreas americanas em apenas seis horas.
Na Europa, o pintor alemão Nils-Udo e o escultor britânico Andy Goldsworthy optaram por usar resíduos orgânicos e elementos da natureza como folhas, galhos, pétalas, pedras, gelo e até frutos. Na França, Bernard Pras reproduz obras de grandes artistas ou imagens marcantes com objetos encontrados em aterros, assim como Vik Muniz.
A relação entre arte e lixo mostra como o lixo pode ser transformado a partir do olhar artístico, tanto para questionar o próprio fazer artístico como para provocar reflexões sobre as consequências da geração de lixo para o meio ambiente. Tudo pode ser transformado em arte, o desafio maior é transformar o modo como nos relacionamos com os objetos, como consumimos e como descartamos o que não serve mais.