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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100010
MUNDO
CIÊNCIAS DA TERRA
O Antropoceno em disputa
Meghie Rodrigues
Estamos vivendo no limiar de uma nova época. Muitos geólogos e especialistas em estratigrafia, e de outras áreas, com o argumento de que a ação humana tem mudado enormemente o funcionamento e os fluxos do planeta, afirmam que entramos em uma nova época geológica, o Antropoceno. E suas marcas são bastante visíveis em todos os lugares por onde a espécie humana transita ou já esteve. Poluição de rios e oceanos por micro plásticos e um sem fim de substâncias químicas, a alteração nos fluxos de nitrogênio pelo uso extensivo de fertilizantes na agricultura e, principalmente, as mudanças climáticas discutidas nas altas esferas da política mundial são algumas evidências de uma "época dos humanos".
A nomenclatura tem sido objeto de intensa discussão nos círculos científicos - em especial entre geólogos. Cunhado pelo biólogo Eugene Stoermer na década de 1980 e popularizado pelo Nobel de Química Paul Crutzen, o termo deriva de raízes gregas: "anthropos" (homem) e "cenos" (novo), sufixo usado em geologia para todas as épocas dentro do período Quaternário, em que estamos atualmente. No momento, vivemos no Holoceno, iniciado há cerca de 11.700 anos, logo após os efeitos da última glaciação - nele, a humanidade cresceu e se desenvolveu até chegar onde está. Esta é, também, a última época do período Quaternário. A transição de Holoceno para Antropoceno na denominação de uma nova época implica uma escolha - não apenas científica, mas também política - que coloca a alteração do funcionamento do planeta na conta da espécie humana.
EVIDÊNCIAS E DISPUTAS
Muitos ambientalistas usam o termo para chamar a atenção para os efeitos do aquecimento global em curso e o aumento da taxa de extinção de espécies da fauna e da flora mundiais - muitas delas extintas antes mesmo de podermos identificá-las e estudá-las. O conceito, segundo o professor e pesquisador em geografia humana no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), Wagner Costa Ribeiro, diz respeito à possibilidade de identificar nas ações humanas "uma capacidade de transformação importante que afeta processos de origem natural no planeta" - principalmente no tocante a processos geológicos. Por isso, "não por acaso, a polêmica vem desse campo do conhecimento e vemos a União Internacional de Ciências Geológicas discutindo o assunto", observa. A controvérsia acerca do Antropoceno gira ao redor da formalização científica do termo, cuja utilização é ampla, porém informal. Se formalizado, o Antropoceno entra para a tabela cronoestratigráfica internacional - que fatia a escala temporal geológica em éons, eras, períodos, épocas e idades. A palavra final pertence à Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS, na sigla em Inglês), braço da União Internacional de Ciências Geológicas.
O principal defensor da entrada do Antropoceno na escala geológica é o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno (AWG, na sigla em inglês), coordenado pelo paleobiólogo Jan Zalasiewicz, professor e pesquisador do Departamento de Geologia da Universidade de Leicester, no Reino Unido. A proposta do AWG, abrigado pela Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário - ela mesma uma ramificação da ICS - é a de que o ponto de início da nova época seja a década de 1950, ocasião que muitos estudiosos chamam de "Grande Aceleração" - quando a atividade humana provoca um salto em gráficos de concentração de dióxido de carbono na atmosfera, de volume de desmatamento, perda de biodiversidade e diversos outros indícios que sugerem que o funcionamento do planeta já não seria como em um passado de mais de 60 anos atrás.
No entanto, a decisão sobre se o Antropoceno será ou não parte da nomenclatura formal em ciências da Terra ainda deve levar alguns anos para sair. O grupo de trabalho sobre o Antropoceno precisa submeter oficialmente o pedido de formalização do termo à Comissão Internacional de Estratigrafia, que votará o pedido em assembleia - muito provavelmente em um congresso geológico internacional, que acontece a cada quatro anos.
BUSCANDO MARCAS
De acordo com John Andrews, professor emérito do Instituto de Pesquisa Ártica e Alpina da Universidade do Colorado, em Boulder, nos Estados Unidos, para que um impacto tenha peso de uma nova época geológica é preciso que tenha uma significância ou ocorrência global - "e, idealmente, um 'golden spike' que marque o estratotipo globalmente".
Este "golden spike" seria, mais precisamente, um "global stratotype section and point", ou GSSP ("ponto e seção de estratotipo de limite global"), um ponto que marca o limite entre tempos geológicos diferentes. É um registro nas rochas que deixa visível, por exemplo, em que camada estratigráfica termina o Pleistoceno e se inicia o Holoceno - as duas últimas épocas do período Quaternário. O grande desafio é encontrar um GSSP que determine o início do Antropoceno para que o termo passe a fazer parte do rol de nomenclaturas da geologia mundial. Andrews acredita ser "difícil medir a extensão da influência humana sobre o planeta". Ele lembra que há pesquisadores que consideram que o impacto começa a ser notado no advento da agricultura, que já modificava as concentrações de diversos gases na atmosfera. Outros, no entanto, consideram que a industrialização acelerada é capaz de fornecer pistas para o "golden spike". "Sinto que o maior impacto está relacionado ao crescimento populacional e ao aumento do uso de recursos naturais", pondera.
É uma disputa complexa. Quem advoga pela revolução agrícola de cerca de 10 mil anos atrás como ponto de início considera, segundo Wagner Ribeiro, que desmatar e revolver o solo, introduzindo culturas que não estão presentes na área de plantio são forte indício da ação humana modificando o planeta. Isso impulsionaria o transporte de sedimentos de um lugar a outro em larga escala, de uma forma que não aconteceria não fosse a intervenção humana. Há também pesquisadores que defendem que a Revolução Industrial, iniciada no Reino Unido em meados do século XVIII, seja esse ponto de início - foi quando passamos a usar combustíveis fósseis massivamente. "Esses elementos, antes acondicionados na litosfera, passaram a se disseminar pela atmosfera, contribuindo para elevar os índices de aquecimento global", explica Ribeiro.
Há um outro grupo de pesquisadores que, tal como os do AWG, creem que a aceleração intensa a partir da Segunda Guerra Mundial seria esse ponto de ruptura entre Holoceno e Antropoceno. Essa fase de ampliação da sociedade de consumo é, conta Ribeiro, "a época em que se tem processos de urbanização acelerados, mercantilização em larga escala, fazendo com que a quantidade de objetos que produzimos cresça enormemente, gerando resíduos e alterando drasticamente a superfície terrestre". Os anos 1950 marcam um salto em progressão geométrica nos gráficos que mostram consumo de recursos naturais, aumento populacional, produção de materiais sintéticos como plástico - além da emissão e concentração de dióxido de carbono na atmosfera, um dos maiores responsáveis pelas mudanças climáticas.
"As três posições são muito defensáveis", diz o professor da USP. "Mas as primeiras ações da agricultura foram muito localizadas. Embora tenham causado grande impacto no ambiente, não ocorreram na escala que tiveram as plantations que os portugueses introduziram no Brasil depois, por exemplo". Ele acredita que a vasta utilização de carvão, durante a Revolução Industrial, e de petróleo, pouco depois, seriam o início do Antropoceno. E vê que o problema em considerar a Grande Aceleração da década de 1950 como "globalização" é fundamentalmente uma falha conceitual. "São geólogos em sua maioria, e acho que falta um pouco de formação histórica aos meus colegas, um pouco do ponto de vista das ciências humanas", alfineta Ribeiro. Segundo ele, o que pesquisadores do AWG tomam por "globalização" seria melhor definido como "periferização do fordismo". O conceito, articulado pelo economista francês Alain Lipietz, considera que o fordismo - que transformava massas trabalhadoras em consumidoras, no início do século XX em países desenvolvidos - se espalhou por países periféricos da década de 1950 em diante, aumentando a capacidade de compra das classes mais baixas. A globalização, por outro lado, seria o casamento entre capital financeiro e capital produtivo tempos depois, lá pela metade da década de 1980. O processo vai além do aumento do poder de compra de trabalhadores porque "inclui a pessoa que não tem capacidade de renda - que consegue ter um smartphone devido a uma série de subsídios. Ainda que não tenha renda, tem crédito para comprar", conta Ribeiro.
Lucy Edwards, pesquisadora especialista em estratigrafia no US Geological Survey, também considera que encontrar um ponto estratigráfico que delimite esta nova época é delicado: "se formos tomar vestígios da era romana por base, chamaríamos isso de Antropoceno ou não?". Ela diz que, quando se fala do termo sob um ponto de vista "científico", é preciso levar em conta de que ciência se está falando - se estratigrafia, arqueologia, geologia, química atmosférica, ciências sociais ou outro campo. São todos válidos na discussão do termo.
"Um grupo de pesquisadores pode usar o Antropoceno para falar de como os humanos estão mudando o planeta. Outro, para dizer que as rochas foram impactadas depois dos anos 1950 e outro, ainda, para falar de tais mudanças nas rochas independentemente de quando foram feitas - e qualquer um desses conceitos seria científico. Mas seriam especialistas diferentes falando de coisas diferentes", ressalta.
Se a discussão sobre o Antropoceno levar o mesmo tempo que outros termos geológicos para se estabilizar, é possível que a disputa esteja bem longe do fim. Edwards lembra que o Holoceno, enquanto termo, vem do século XIX, mas só foi formalizado em 2008 - e as outras camadas estratigráficas começaram a ser formalizadas na década de 1970 pela ICS, mesmo que já tivessem um nome há muito mais tempo. "O Cretáceo, por exemplo, é um termo científico, mas algumas partes de seus limites estratigráficos não foram formalmente estabelecidos ainda", observa.
Todo o processo, no entanto, é inerente ao funcionamento do campo científico: "as palavras se originam antes que o conceito se estabilize - é assim que a terminologia científica se desenvolve", pontua a pesquisadora.