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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.69 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100012
ARTIGOS
GÊNERO
Apresentação: gênero - vicissitudes de uma categoria e seus "problemas"
Eliane GonçalvesI; Luiz MelloII
IProfessora adjunta da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), com atuação no programa de pós-graduação em sociologia e no Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade. É doutora em ciências sociais e co-fundadora e colaboradora permanente do Grupo Transas do Corpo, organização feminista, desde 1987. Email: elianego@uol.com.br
IIProfessor associado da Faculdade de Ciências Sociais da UFG, com atuação no Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade. É doutor em sociologia, com pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid, Espanha. Email: luizman@gmail.com
Há muitas coisas já ditas sobre gênero. Alguns acordos e alguns desacordos. Em três décadas de circulação, o verbete, que não estava dicionarizado, e continua ausente dos principais dicionários de língua portuguesa, está espalhado em dicionários de diversas disciplinas, inclusive um específico do feminismo (1). Em 1983, a bióloga e epistemóloga feminista estadunidense Donna Haraway foi convidada a escrever este verbete para um dicionário marxista alemão e a empreitada lhe consumiu seis anos! (2). A existência deste conceito tem produzido efeitos interessantes e desdobramentos políticos inesperados. Vejamos como gênero se desloca de um conceito explanans (3) que promete explicar muitas coisas, que é bem recebido nos círculos acadêmicos por ser aparentemente mais neutro do que "mulheres" ou "feminismo", para o atual debate em torno da "ideologia de gênero" que o reputa como categoria satânica. Antes, porém, é necessário revisitar alguns acordos sobre este conceito.
Em termos de sua historicidade enquanto conceito e categoria na teoria social, tem se tornado lugar comum a menção aos trabalhos de Robert Stoller e John Money nos Estados Unidos entre os anos 1950 e 1960 (2), quando ambos defendiam a separação entre sexo, dado da natureza ou biologia, e gênero, construto social. Essa sedutora separação foi proposta para justificar as cirurgias de mudança (ou redesignação, em termos médicos) de sexo em pessoas nascidas com ambiguidade sexual (intersexos, entre outras), que resultava na "fabricação" de um sexo definido pelo cirurgião em acordo com a família e que seria convenientemente adequado às normas de gênero daquela cultura, ou seja, aos padrões de feminilidade e de masculinidade. Neste paradigma, o axioma é que sexo é anterior ao gênero, já que nascemos com ele, a diferença sexual primária é da ordem da natureza, enquanto o gênero é aprendido. Assim, a cultura organiza e distribui feminilidades e masculinidades em termos de expectativas que são aprendidas e fixadas pelas normas sociais (6).
O pensamento feminista dos anos 1970 pareceu acolher, com bons olhos, essa proposição, afinal ela trazia promessas de uma desconstrução possível nos papéis definidos socialmente para homens e mulheres. A separação natureza/cultura encontra seu ápice com a publicação do célebre texto de Gayle Rubin, The traffic in women, em 1975, quando cunhou o "sistema sexo/gênero". Pelas lentes de Rubin somos levadas/os a uma revisão dos clássicos - Levi Strauss, Engels/Marx, Lacan e Freud - para entender a origem da subordinação universal das mulheres através das teorias do parentesco: circulação das mulheres, divisão sexual do trabalho, tabu do incesto e da homossexualidade. Esse seria o quadro geral que imporia o gênero binário, a heterossexualidade compulsória e a ordenação da família como instituição central da organização social, lugar de confinamento das mulheres à esfera doméstica. Bem, esta é uma história altamente disputada, contestada e a literatura sobre ela, vastíssima. Localizamos alguns desacordos para prosseguir na discussão sobre o conceito.
Como dissemos anteriormente, no sistema sexo/gênero (natureza/cultura) o sexo antecede o gênero e é significado por este, a natureza funcionando como recurso para a cultura (4). Neste esquema, o feminino e o masculino, definidos culturalmente, "vestem" os corpos sexuados de mulheres e homens numa operação coerente. Homens e mulheres se constroem como seres marcados pela diferença sexual binária cuja orientação erótica se volta para o sexo oposto, forjando a ideia de complementaridade, mais tarde alimentada pelo amor romântico. Esta matriz heterossexual dá inteligibilidade às normas de gênero e pela socialização que nós reproduzimos como natural. Uma vez naturalizada, todos os outros arranjos ficam de fora, são considerados anormais. Mas o que define uma mulher ou um homem? Como não há um único padrão cultural universal, respostas a essa pergunta podem ser extremamente variadas. Para Judith Butler, a identidade de gênero é produzida num quadro de normas rígidas, mas os processos que resultam dessa produção são altamente imprevisíveis, já que, para a autora, gênero é feito e desfeito performaticamente, não é uma atividade mecânica ou automática, mas "uma prática de improvisação em um cenário constritivo" (5). Esta ideia de "performatividade" tem sido mal interpretada por setores conservadores ou fundamentalistas como uma ameaça à segurança e estabilidade do "eu", da família e da própria vida social.
PALAVRAS QUE AMEAÇAM: BREVE INCURSÃO SOBRE A ATUAL "GENEROFOBIA" NO BRASIL
Se antes a palavra sexo ou sexualidade era a ameaça, porque fazia pensar em liberação, prazer, transgressão às normas e identidades, nos discursos correntes que se opõem às políticas da igualdade e à diversidade/pluralidade no âmbito da democracia, há uma inversão e gênero passa ser a palavra demonizada. Dizemos inversão porque, ao ser cunhado e disseminado como conceito científico, gênero parecia ser capaz de neutralizar as potenciais más influências das palavras "mulher" ou feminismo (6) no ambiente acadêmico. Já sexualidade e sexo sempre receberam investidas de grupos conservadores cada vez que políticas visando à introdução de educação sexual na escola eram sugeridas e demandadas (7). O que se observa hoje, porém, é que, para as mentes mais conservadoras, dizer que gênero é performativo é crer que podemos escolher variações quase instantâneas, o que é uma visão inocente dos processos de mudança social. Se gênero antecede e informa a diferença sexual, porque está no campo do simbólico, funcionando com uma estrutura estruturante (8), parece ser mais ameaçador.
Como dito anteriormente, as identidades (não apenas de gênero) são socialmente construídas em contextos de constrangimentos, opressões, assujeitamentos. No entanto, não se trata de uma estrutura rígida ao ponto de impedir brechas, escapes, fraturas, aberturas para a agência (capacidade de agir dos sujeitos) que, por sua vez, impulsionam a mudança nos próprios padrões normativos. Tendemos a ver o social como aquilo que muda, mas nos esquecemos de que o social é lenta e tenazmente inculcado, tornando-se nossa "segunda natureza" e assim sendo pode levar considerável tempo para mudar (9). As tentativas de desfazer e refazer a norma podem ser frustradas, já que não há caminho seguro. Mas a mudança social é a única constante que conhecemos, mesmo quando levamos em conta a afirmação de Daniele Kergoat: "tudo muda, mas tudo permanece igual" (10), referindo-se à estabilidade e longevidade das desigualdades de gênero, sexualidade, raça e classe.
Essas desigualdades que se interconectam, interseccionam ou estão articuladas requerem ainda algumas palavras. Gênero tem sido considerado a categoria da diferença com anterioridade sobre as demais, por informar, desde muito cedo, as expectativas em torno dos seres humanos, sendo, segundo Joan Scott, uma forma primária de significar o poder (11). "É menino ou menina?" é uma interpelação recorrente que parece romper fronteiras de classe e raça, língua e nacionalidade. No entanto, em sociedades como a brasileira, marcadas pela existência de agudas segregações de classe, raça e sexualidade, gênero jamais deve ser tratado isoladamente, sendo necessárias leituras com enfoques que privilegiam esse entrelaçamento na perspectiva de ver como aquelas funcionam e quais as formas de enfrentá-las (12). Quando movimentos sociais ligados às causas da igualdade e defesa da diversidade se manifestam, colocam em questão os privilégios que se perpetuam historicamente no país.
Quando o Estado se nega a tratar com equidade e justiça os seres humanos em virtude de suas marcas constitutivas, ele atenta contra a democracia. O Brasil vive esta crise profunda.
Segundo Bonetti (13), os discursos sobre "ideologia de gênero", que inflacionaram a mídia nos últimos tempos no Brasil, têm praticamente todos uma origem comum. Trata-se de um livro (The gender agenda ou a Agenda de gênero) publicado pela jornalista católica estadunidense Dale O'Leary em 1997, com o objetivo de denunciar uma "concertação mundial voltada à destruição da família". No livro, de acordo com Bonetti, O'Leary culpa as feministas por trocar a palavra sexo por gênero para negarem as "diferenças naturais" e promoverem a homossexualidade. Essa obra teria sido a grande fonte de sustentação dos argumentos que levaram ao debate sobre "gênero" e "ideologia de gênero" quando da apreciação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei (PL) nº 8.035/2010, apresentado pelo poder executivo, que estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado na forma da Lei nº 13.005, de 25/06/14, e de vários de seus corolários nas esferas estadual e municipal.
As expressões "orientação sexual" e " identidade de gênero", previstas uma única vez no PL em questão, nos termos da Meta 3.9 "Implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação à orientação sexual ou à identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão", foram suprimidas quando da definição, agora na Lei nº 13.005/14, da Meta 3.13, a saber: "Implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão". Essa sutil, mas expressiva supressão, promovida a partir da atuação de parlamentares, majoritariamente homens, ligadas/os à bancada evangélica no Congresso Nacional, foi suficiente para que a possibilidade de formação escolar, voltada ao combate às formas de discriminação relativas à orientação sexual e identidade de gênero, se tornasse objeto de uma batalha entre perspectivas laicas e religiosas da vida em sociedade. Nesse cenário, a expressão "ideologia de gênero" foi estabelecida pelos detratores do direito à cidadania de pessoas LGBT como alvo de um imperativo divino que fundamentaria o combate à homossexualização da sociedade, a partir da atuação deliberada de professoras/es engajadas/os no fim da heterossexualidade compulsória.
Nos debates travados em câmaras municipais, assembleias legislativas, redes sociais e, especialmente, nos meios de comunicação vinculados a grupos religiosos, as categorias analíticas "ideologia" e "gênero" foram dessubstancializadas de seus sentidos histórico, socioantropológico e político e passaram a ser utilizadas indiscriminadamente, na forma da expressão "ideologia de gênero", como o novo "lobo mau" a ser combatido pelas/os defensoras/es da moral e dos bons costumes. Secundarizou-se, antes de tudo, que gênero é conceito estruturante para a compreensão da dominação de homens sobre mulheres - e de cisgêneros sobre transgêneros e de heterossexuais sobre homossexuais -, fundamental para a compreensão da violência endêmica produzida por homens, especialmente heterossexuais, contra mulheres (incluindo as lésbicas), pessoas trans e homens gays, e para o histórico contexto de desigualdade social e econômica entre homens e mulheres, especialmente quando fundada também em outros atributos legitimadores de opressão e exclusão social, como raça/cor e idade.
Nesse contexto, a compreensão da dinâmica de funcionamento das casas legislativas no Brasil, especialmente no que diz respeito a debates públicos de temas que de alguma maneira se conectam à categoria gênero, passa pela análise das implicações do machismo, da misoginia e da LGBTfobia intrínsecos a parlamentos constituídos majoritamente por homens, a exemplo do Congresso Nacional, no qual menos de 10% de seus integrantes são mulheres. Talvez essa seja uma das razões por que a grande maioria de autores de projetos de leis, nas esferas municipal, estadual e federal, relacionados à instituição do "Programa Escola sem Partido", também sejam homens. Tais projetos têm como uma de suas prioridades vedar, em sala de aula, a prática de "doutrinação política e ideológica", na forma de atividades e/ou conteúdos, que "possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes", especialmente no que diz respeito à "ideologia de gênero", conforme disposto em diferentes versões de proposições legislativas que tratam da instituição do "Programa Escola sem Partido".
Se hoje tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal projetos de lei distintos, mas praticamente idênticos, com o objetivo de incluir, entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o "Programa Escola sem Partido", as primeiras iniciativas nesse sentido foram apresentadas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 2014, nos mesmos moldes dos projetos que tramitam no Congresso Nacional, antes referidos. Mas foi o estado de Alagoas o primeiro, e até agora único, em que a Assembleia Legislativa aprovou a Lei nº 7.800, de 05/05/16, que "institui, no âmbito do sistema estadual de ensino, o programa 'Escola Livre"" - por "Escola Livre" leia-se "Escola sem Partido" -, após derrubar o veto total aposto ao projeto pelo governador do estado. A lei alagoana foi objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Advocacia-Geral da União no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o qual concluiu pela plausibilidade jurídica necessária para o fim de suspender, cautelarmente, sua eficácia, por ferir preceitos constitucionais.
Os debates acerca do "Programa Escola sem Partido" e do PNE, no âmbito do Congresso Nacional e de casas legislativas em níveis estadual e municipal, são exemplos de como a garantia da equidade de gênero e da não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero ainda estão sob uma mirada fortemente conservadora, em que o viés religioso, especialmente de cunho fundamentalista, nos coloca frente aos riscos da universalização de visões de mundo parciais, em que os privilégios de gênero são tidos como uma prerrogativa natural, sagrada e inconteste do mundo dos homens. Tal entendimento também pareceu evidenciado ao longo do processo de linchamento androcêntrico que culminou com o impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef e com a constituição de um novo governo, comandado por um vice não legitimado pelo crivo das urnas, que compôs um ministério integralmente constituído por homens, brancos, e com a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.
É nesse cenário generofóbico e de pouca tangibilidade da cidadania e dos direitos humanos de grupos historicamente oprimidos no Brasil que este dossiê se situa. Reúne cinco textos de autoras/es com diferentes vinculações institucionais e trajetórias intelectuais, refletindo sobre a centralidade do gênero e de suas interseccionalidades com outros atributos identitários para pensar a democracia no contexto do Brasil atual.
Carla Rodrigues abre este Núcleo Temático promovendo uma reflexão em torno dos limites e das possibilidades de ampliação da democracia com o artigo "Problemas de gênero na e para a democracia". Tecendo com Judith Butler, Jacques Rancière e Jacques Derrida, a autora demonstra como o corpo é elemento que atravessa a democracia como o elo mais vulnerável em virtude de suas marcas de diferença (différence) ou diferenciação (différance). A democracia não saiu ainda da sua circunscrição classe dominante (corpos dominantes) sobre classes dominadas (corpos dominados). A democracia radical como a possibilidade de todos serem partícipes - ser ouvido, falar, governar e ser governado - está por vir, é uma construção sem pausa à qual devemos estar atentas/os. Enquanto isso, os grupos e corpos marcados como diferentes e percebidos como subordinados e excluídos das esferas de poder e decisão não deixarão de causar "problemas", uma alusão aos pobres, às mulheres, aos indígenas, negros, homossexuais, transgêneros, e povos colonizados e oprimidos de todas as "marcas" em todos os tempos da nossa história.
Talvez seja necessário morrer para voltar à vida, na dialética que povoa tanto o argumento de Carla Rodrigues quanto o de Maíra Kubík Mano, no segundo artigo deste Núcleo Temático, "Da suspeição à suspensão: reflexões sobre os caminhos recentes da democracia brasileira sob uma perspectiva de gênero". A democracia por vir, de Derrida, e tantos outros, atesta a falibilidade do estatuto atual da democracia brasileira que, literalmente, parece morrer. Tendo experimentado um breve período de ampliação de direitos do ponto de vista da justiça de gênero a exemplo da PEC das domésticas (Proposta de Emenda à Constituição nº 478/2010, posteriormente Emenda Constitucional nº 72/2013), o país retoma sua política dominante - feita majoritariamente por homens brancos, adultos, cisgêneros, heterossexuais, das classes abastadas. De 2016 em diante, apenas interrogações pairam no ar sem qualquer indício de que estejamos minimamente trilhando um caminho pró-igualdade de gênero, ou seja, de democratizar a democracia para além de vagas "reformas", como listas fechadas com alternância de "sexo" e financiamento público de campanha. Resta-nos resistir à morte prematura, escavar fundo e fazer emergir a potência, a vontade de viver e de continuar lutando, criando problemas em busca de uma democracia radical, a partir de referenciais anticolonialistas, antirracistas e antipatriarcais, numa cena política em que debates sobre "ideologia de gênero" e "escola sem partido" são manifestações dos riscos do fascismo social e do fascismo político.
Um ponto forte na dimensão segregacionista da democracia brasileira se expressa no cruzamento gênero/raça. Flavia Rios, Ana Claudia Pereira e Patricia Rangel, no artigo "Paradoxo da igualdade: gênero, raça e democracia", examinam o perfil da Câmara dos Deputados na 55ª legislatura (2015-2019), considerando os grupos de homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras, à luz da produção bibliográfica acerca da sub-representação racial e de gênero. Enquanto estudos trataram abundantemente das ausências das mulheres na política e na produção acadêmica, não se observam com a mesma frequência investimentos intelectuais que busquem compreender a matriz da própria exclusão de negras/os da política. As autoras observam que a sub-representação política na esfera parlamentar contrasta com ativa participação nos movimentos feminista e negro. Há a histórica estratificação social na qual negros e negras estão em posições desvantajosas em termos de letramento, trabalho e renda, como há, também, aspectos culturais que só se explicam pelo racismo. De que outra forma soariam compreensíveis as afrontas, injúrias e ofensas sofridas por parlamentares negras/os quando se pronunciam publicamente nos espaços institucionais? Desigualdade social e desigualdade política funcionam e se estabilizam num continuado processo que se retroalimenta, como enfatizam as autoras.
Em "Democracia e direito da antidiscriminação: interseccionalidade e discriminação múltipla no direito brasileiro", Roger Raupp Rios e Rodrigo da Silva ressaltam como a construção democrática e a afirmação dos direitos humanos são processos concomitantes e desafiadores, particularmente em sociedades com tradição autoritária e excludente. Essa compreensão aponta para a complexificação da realidade social e de sua abordagem quando se observa o caráter interseccional dos processos discriminatórios, concebidos no universo jurídico como "discriminação múltipla", fenômeno irredutível ao somatório de critérios proibidos de discriminação simultânea. No texto, a reflexão sobre a interseccionalidade e seus efeitos jurídicos é problematizada a partir de uma perspectiva que recorre ao direito internacional dos direitos humanos, bem como da análise de dois casos emblemáticos, um apreciado no âmbito do Comitê de Eliminação de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) e outro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Conceito-chave para pensar gênero e democracia na contemporaneidade, interseccionalidade sem dúvida é hoje uma das categorias mais promissoras para compreender as complexas lógicas de discriminação, exclusão e opressão que estão a caracterizar a globalização do machismo, do racismo, da xenobobia e da LGBTfobia, entre outras formas de destruição da alteridade.
Por fim, Fabiano Gontijo, no artigo "As experiências da diversidade sexual e de gênero no interior da Amazônia: apontamentos para estudos nas ciências sociais" destaca como são incipientes os estudos relativos a gênero, sexualidade e temas afins em contextos rurais e interioranos e/ou em situações etnicamente diferenciadas e, quando existentes, também focados em realidades urbanas, brancas e masculinas, como também prevalece no caso da maioria dos estudos feitos no Centro-Sul do Brasil. O autor também chama a atenção para o fato de os estudos amazônicos, rurais e sobre etnicidade pouco tratarem de diversidade sexual e de gênero, incluindo experiências homossexuais. A partir dessa constatação, o artigo apresenta um conjunto de importantes, porém incipientes, estudos socioantropológicos sobre gênero e sexualidade em contextos rurais, ao mesmo tempo em que ressalta que os estudos rurais ignoram os temas afins à sexualidade e, quando muito, abordam gênero a partir de questões morais relativas à família e aos arranjos familiares camponeses, com ênfase no lugar da mulher trabalhadora e/ou militante. Na perspectiva do autor, sexualidade, e seus corolários, ainda não seria categoria problematizada de maneira substantiva quando se pensa o mundo rural em uma perspectiva de opressões interseccionadas.
NOTAS E REFERÊNCIAS
* Gostaríamos de agradecer a Márcia Sardinha da Costa, graduada em ciências sociais, habilitação em políticas públicas (UFG, 2015), atualmente cursando a licenciatura em ciências sociais na mesma instituição, por seu inestimável trabalho de assistente na elaboração deste dossiê. Agradecemos às autoras e aos autores a atenção, disponibilidade e receptividade ao nosso convite.
1. Hirata, H. at all. Dicionário Crítico do Feminismo. Unesp, 2009.
2. Haraway, D. "Gênero" para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cad. Pagu, Campinas, nº. 22, 2004, p. 201-246.
3. Hawkesworth, M. "Confounding gender". In: Debate Feminista: Género (n. 20). México: Metis, 1999, p. 3-48.
4. Ortner, S. B. "Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?". In: Rosaldo, M. e Lamphere, L. (orgs.), A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 95-120.
5. Butler, J. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006.
6. Piscitelli, A. "(Re)criando a categoria mulher?". In: Algranti, L. M. (org.), "A prática feminista e o conceito de gênero". Campinas-SP: Textos Didáticos, nº. 48, 2002, p. 7-42.
7. Gonçalves, E." Educação sexual em contexto escolar: da formação de professores/as à sala de aula". Goiânia: FE/UFG, 1998, dissertação de mestrado.
8. Bourdieu, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
9. Rubin, G.; Butler, J. "Tráfico sexual: entrevista". Cad. Pagu, Campinas nº. 21, 2003, p. 157-209.
10. Kergoat, D. "Consubstancialidade das relações sociais". Novos Estudos (84), 2010, p.93-103.
11. Scott, J. "Gênero: uma categoria útil de análise histórica". Educação & Realidade, vol. 20, nº. 2, 1995, p. 71-99.
12. Crenshaw, K. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Estudos Feministas, ano 10, 1º semestre 2002, p. 171-88.
13. Bonetti, A. "Entre armadilhas ideológicas e confusões propositais: reflexões sobre a polêmica em torno da 'ideologia de gênero'". In: Bonetti, A.; Silva, F. F. da (orgs.). Gênero, interseccionalidades e feminismos: desafios contemporâneos para a educação. São Leopoldo, RS: Oikos, 2015, p.47-62.