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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.69 no.2 São Paulo Apr./Jun. 2017

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000200010 

    ARTIGOS
    AGROECOLOGIA
    APRESENTAÇÃO

     

    Agroecologia: abordagens na busca da autonomia do campesinato brasileiro

     

     

    Fernando Fleury CuradoI; Edson Diogo TavaresII

    IPesquisador na Embrapa Tabuleiros Costeiros, doutor em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB). Email: fernando.curado@embrapa.br
    IIPesquisador na Embrapa Tabuleiros Costeiros, doutor em desenvolvimento sustentável pela UnB, membro da diretoria da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia). Email: edson.diogo@embrapa.br

     

     

    A trajetória de ascensão da agroecologia está associada ao conjunto de respostas ao modelo de agricultura baseado na revolução verde, implementado a partir dos anos 1950 e 1960 no Brasil, e se materializou com contribuições de diversos campos de intervenção. Assim, no campo da ciência, alguns estudos forneceram novas perspectivas sobre os impactos da modernização da agricultura nos agroecossistemas, contribuindo para uma compreensão mais ampla sobre os efeitos do uso dos agrotóxicos, a complexidade do manejo dos solos, as interações solo-insetos-plantas em suas diversas relações ecológicas, além da influência do ambiente nessas relações.

    Áreas de conhecimento como a geografia, a sociologia rural, a biologia, as ciências agrárias e, principalmente, a ecologia, garantiram, a partir das pesquisas desenvolvidas, a ampliação das abordagens que contribuíram no entendimento sobre as paisagens, os territórios, os sistemas de produção, a agrobiodiversidade, o funcionamento dos campos de produção, o papel da matéria orgânica e da nutrição das plantas.

    Também no campo da pesquisa, estudos relacionados com o desenvolvimento rural, sobre as consequências dos estilos de produção, sobre o processo de industrialização da agricultura e a concentração do capital, permitiram a reflexão sobre as relações sociais e econômicas que se evidenciavam nesse modelo capitalista e excludente, quando analisado sob a perspectiva do campesinato no Brasil.

    No campo dos movimentos sociais destacam-se duas frentes de grande importância na consolidação da agroecologia também como um movimento social que emerge dos interesses populares: o movimento ambientalista e os movimentos sociais no campo. Ambos estão inseridos no amplo e plural processo de reflexão política e ambiental que se destaca a partir dos anos 1970, mas principalmente nos anos 1980, e que aponta para uma nova postura da sociedade civil na luta pelos direitos sociais, econômicos, ambientais e políticos, neste caso, na luta pela participação política (1).

    O movimento agroecológico (2) foi inicialmente denominado agricultura alternativa (3), reunindo diversas correntes como a agricultura biodinâmica, a agricultura orgânica, a permacultura, a agricultura ecológica, dentre outras, que, desde então, apesar das diferentes origens, concepções e especificidades, contribuíram na construção das chamadas "agriculturas sustentáveis", convergindo no sentido da conformação de um estilo de agricultura que se contrapõe ao modelo agroquímico e concentrador de capitais, mas dissonantes no sentido da dimensão social, seja nas críticas aos impactos sociais desse modelo hegemônico baseado na revolução verde, seja na ausência da participação do campesinato nos processos decisórios, seja na assessoria técnica, ou no processo de experimentação e intercâmbio de conhecimentos.

    Nesta direção, as ações da Igreja Católica de cunho progressista, fundamentadas na teologia da libertação e, mais tarde, nas teologias da terra e da água, com as ações mobilizadoras das Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs), as reflexões sobre a educação popular, e a conformação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), proporcionando o desenho de diversas experiências de reforma agrária no país, também conferiram, ao longo dos anos seguintes, mais efetivamente nos anos 1990, outra perspectiva de desenvolvimento com profundo diálogo entre os movimentos sociais no campo (Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, MST, Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais, mulheres trabalhadoras, pastorais rurais, Movimento dos Pequenos Agricultores- MPA, dentre outros), e o movimento agroecológico, fortalecido pela criação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) em 2002 e 2003, respectivamente.

    Outro campo de análise da estruturação da agroecologia também se destaca gradativamente no contexto em questão. Trata-se da leitura que concede visibilidade às práticas das camponesas e dos camponeses e que compreende a agroecologia como o conjunto das experiências de resistência desses atores sociais ao ideário da agricultura moderna e de todas as consequências advindas da sua propagação no meio rural. Assim, a agroecologia, além de ciência e movimento social, passa também a ser reconhecida como o resultado das práticas do campesinato nos diversos agroecossistemas, estruturadas por seus conhecimentos e vivências históricas, pelas relações sociais e culturais que as sustentam ao longo de várias gerações.

    Na atualidade, essa leitura permite a compreensão da presença marcante de temas como educação do campo, feminismo, relações de reciprocidade no campo, autonomia na conservação das variedades crioulas e da agrobiodiversidade em geral, diálogo de conhecimentos, segurança alimentar e nutricional (soberania alimentar), comunicação popular, sistematização de experiências agroecológicas, assim como da presença dos camponeses e camponesas na pesquisa (agricultores/as experimentadores/as). Da mesma forma, explica as articulações em torno do papel estratégico das políticas públicas, seja no apoio à estruturação de experiências locais de comercialização (como as feiras agroecológicas) ou na participação desses atores no mercado institucional (Programa de Aquisição de Alimentos, PAA, e Programa Nacional de Alimentação Escolar, PNAE) ou em redes locais de comercialização solidária, também com a certificação dos produtos orgânicos, assim como da assistência técnica e extensão rural (ATER) agroecológica.

    Da mesma forma, tem permitido a conformação de alguns projetos de pesquisa de base ecológica (pela Embrapa) (4) e de núcleos de agroecologia (Neas) em instituições de ensino superior e de pesquisa a partir de editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além da criação de diversos cursos e grupos de agroecologia e também das diferentes expressões da educação do campo como as Escolas Família Agrícola, Residências Agrárias, Projovem Campo, dentre outras que dialogam profundamente com os princípios agroecológicos.

    Mais recentemente, a partir de 2012, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) (5) garantiu a presença do Estado na proposição de ações institucionalizadas direcionadas para a integração, articulação e adequação de políticas, programas e ações que promovam a transição agroecológica, a produção orgânica e de base ecológica. A conquista não se deu, no entanto, sem a pressão e contribuições da sociedade civil organizada.

    A partir desta breve contextualização que abarca apenas alguns aspectos da diversidade de perspectivas que o tema apresenta, a revista Ciência e Cultura, por meio deste Núcleo Temático, estimula a reflexão sobre a agroecologia, disponibilizando algumas abordagens que não esgotam o assunto, mas que evidenciam a centralidade da busca da autonomia do campesinato brasileiro no processo plural de construção desse campo de conhecimento.

    O primeiro artigo foi elaborado pelo engenheiro agrônomo Romier da Paixão Sousa, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, campus Castanhal, e vice-presidente norte da Associação Brasileira de Agroecologia. O autor analisa o avanço da educação em agroecologia no Brasil, advinda das pautas dos movimentos sociais e consubstanciada no paradigma da educação do campo, situando-a como um processo de resistência contra-hegemônica de educação.

    O segundo artigo tem a autoria da agroecóloga Maria José Ramos da Silva, do agrônomo e professor Felipe Silveira Marini, da mestranda Aline Carneiro Cunha de Paula (todos da Universidade Federal da Paraíba), do tecnólogo em agroecologia e agricultor experimentador Alexsandro Alves Coelho e do agrônomo Amaury da Silva dos Santos, pesquisador da Embrapa Tabuleiros Costeiros. O texto aborda o papel estratégico da pesquisa participativa, alicerçada no diálogo de saberes (técnicocientífico e popular) a partir da experimentação agroecológica relacionada com a conservação da agrobiodiversidade no semiárido paraibano, valorizando e impulsionando a autonomia camponesa por meio do uso e intercâmbio de variedades crioulas de milho no estado da Paraíba.

    No terceiro artigo, a agrônoma Ana Paula Lopes Ferreira, coordenadora do programa de direitos das mulheres na ActionAid Brasil e o agrônomo Luis Cláudio Mattos, doutorando em ciências sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) refletem sobre a aproximação crescente nas últimas décadas entre a agroecologia e os processos emancipatórios das mulheres camponesas, analisando a realidade ainda marcante no meio rural no que diz respeito às ausências da autonomia e do poder feminino, assim como da sua invisibilidade diante de uma sociedade ainda fortemente marcada pelo patriarcalismo.

    No quarto artigo, as jornalistas Maria Clara Guaraldo Notaroberto, assessora de imprensa da Embrapa Informação Tecnológica, Fernanda Cruz de Oliveira Falcão, coordenadora de comunicação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Natália Almeida Souza, mestre em ciências sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o radialista e jornalista Daniel Lamir de Freitas Ferreira, integrante do Coletivo Terral de Comunicação e a pedagoga Juliana Andrea Oliveira Batista, analista da Embrapa Informação Tecnológica, mostram a importância da reflexão acerca do protagonismo e da autonomia individual e coletiva do campesinato na comunicação para o desenvolvimento, ao apresentarem o contexto das oficinas de comunicação popular e comunitária realizadas nos estados de Sergipe e Alagoas. O texto afirma como as experiências agroecológicas desenvolvidas pelo campesinato fortalecem os processos comunicativos nas comunidades.

    O Núcleo Temático se encerra com o artigo da engenheira de pesca Juliana Schober Gonçalves Lima, professora da Universidade Federal de Sergipe, que discorre sobre a segurança alimentar e nutricional no mundo, demonstrando a importância dos sistemas agroecológicos em processos endógenos, que não passam pela simples decisão sobre as práticas ou técnicas agrícolas ou pela valorização de indicadores que estejam pautados exclusivamente na produtividade, como aponta a perspectiva da intensificação ecológica.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Padula, J.; Cardoso, I. M.; Ferrari, E. A.; Dal Soglio, F. K. "Os caminhos da agroecologia no Brasil". In: Agroecologia: princípios e reflexões conceituais. Brasília: Embrapa, 2013. 245 p.

    2. Tavares de Lima, J. R. Agroecologia e movimentos sociais. Recife: Edições Bagaço, 2011. 272 p.

    3. Altiere, M. A. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/Fase, 1989. 240 p.

    4. Embrapa. Marco referencial em agroecologia Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2006.70 p. A partir deste documento a Embrapa confere o caráter científico para a agroecologia, o que favoreceu a implementação de projetos de pesquisa e desenvolvimento relacionados a esta área do conhecimento.

    5. Brasil. Decreto n. 7.794, de 20 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo). Diário Oficial da União, Brasília: Câmara dos Deputados, 2012.