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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.70 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000100007
MUNDO
ENGENHARIA GENÉTICA
Tecnologia inova na edição de genes e desafia limites éticos
Jean-Frédéric Pluvinage; Octávio Fonseca; Raphaela Velho
Em julho de 2017, a revista MIT Technology Review revelou que cientistas da Oregon Health and Science University, nos Estados Unidos, modificaram o DNA de embriões humanos por meio da ferramenta CRISPR-Cas9, uma tecnologia voltada para a edição de genes. Os cientistas afirmaram que os embriões permaneceram vivos apenas por alguns dias e que não havia intenção de implantá-los em útero. O uso da ferramenta CRISPR em embriões humanos gerou muitas críticas, mas o dilema ético aumentou ainda mais quando três meses depois, em outubro de 2017, Josiah Zayner, conhecido como um biohacker e ex-funcionário da Nasa, de 36 anos, usou uma seringa em seu braço diante de auditório da conferência SynBioBeta, em São Francisco, na Califórnia, para editar seus próprios genes. Ou seja, enquanto se discute o que seria e o que não seria ético, temos visto, nesse curto período de tempo, as aplicações saírem do campo teórico antes mesmo do estabelecimento de normas de segurança para serem realizadas na prática.
TESOURAS GENÉTICAS
O CRISPR é um sistema de defesa das bactérias que permite que elas possam encontrar e degradar sequências específicas de DNA de um vírus invasor. Quando um vírus invade o interior das bactérias e introduz seu material genético, elas conseguem inserir esse DNA viral entre determinadas sequências repetidas de bases nitrogenadas do seu próprio DNA. Essas repetições foram denominadas CRISPR, sigla em inglês para repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas. Em seguida, a bactéria infectada produz um RNA daquela sequência viral específica. Esse RNA é então acoplado a mais um RNA e a uma proteína nuclease (capaz de cortar material genético) chamada Cas. Esse complexo de dois RNAs e nuclease "inspecionam" a célula da bactéria até encontrar um DNA viral semelhante ao que já a havia infectado. Quando isso acontece, o RNA do complexo consegue reconhecer o DNA invasor e ativar a proteína Cas que o corta, destruindo o vírus. A descoberta do funcionamento desse sistema "antivírus" fez com que ele recebesse o apelido de "tesouras genéticas".
Com base nesse sistema de defesa, duas cientistas, a norte-americana Jennifer Doudna e a francesa Emmanuelle Charpentier, criaram uma ferramenta genética baseada na modificação e simplificação do complexo RNAs+Cas9 (que usa um tipo mais simples de proteína Cas). A técnica batizada de CRISPR-Cas9, ou simplesmente CRISPR, é capaz de cortar DNA a um custo muito menor do que nos modelos anteriores, de forma mais precisa e em um tempo reduzido.
APLICAÇÕES
O CRISPR-Cas9 está sendo estudado intensivamente para aplicações no agronegócio. A técnica gera organismos diferentes dos transgênicos, já que nos alimentos transgênicos são implantados genes de outras espécies. Por meio da ferramenta, os genes de plantas e animais poderão ser editados livremente para criar plantas mais produtivas, resistentes a doenças, alimentos mais nutritivos e mais saborosos. A gigante DuPont, por exemplo, está investindo na produção de milho ceroso de melhor qualidade. O laboratório americano Cold Spring Harbor está a caminho de produzir tomates mais doces e em maior quantidade. Doran Dhanapala, da Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation (CSIRO), por sua vez, busca criar ovos de galinha que não sejam alergênicos.
Já existem pesquisas em andamento - principalmente em universidades e laboratórios de companhias norte-americanas - para edição do genoma da vaca e do salmão, com a finalidade de obter animais de maior porte em tempo reduzido. Há também aplicações que visam modificar insetos geneticamente para que deixem de ser vetores de doenças como malária ou dengue.
A tecnologia apresenta ainda um enorme potencial para o tratamento de diversas doenças genéticas, como distrofias musculares, câncer, cegueira congênita, fibrose cística e doença falciforme. O câncer é um dos exemplos mais recorrentes: em 2017, o Massachusetts General Hospital fez uma parceria com a empresa norte-americana CRISPR Therapeutics para estudar as aplicações da ferramenta na área da oncologia, particularmente nas terapias com células T. Marcela Maus, diretora do Programa de Imunoterapia Celular do hospital, em entrevista para a agência de notícias Globe Newswire, explicou as expectativas da parceria: "nós já vimos o profundo benefício que a terapia com células T podem ter em certos pacientes com um conjunto específico de tipos de tumores. Agora com a edição genética, e especialmente com a CRISPR-Cas9, existe o potencial para criar versões melhoradas dessas células, que podem funcionar para uma variedade maior de tumores", relatou ela.
Também há perspectiva de que o CRISPR viabilize a cura da Aids em humanos. Em um experimento conduzido por pesquisadores da Lewis Katz School of Medicine (LKSOM), da Temple University, em parceria com a Universidade de Pittsburgh e publicado em maio do ano passado no periódico Molecular Therapy, camundongos tiveram o HIV-1 eliminado de seu organismo. "O próximo passo é repetir o estudo em primatas, onde a infecção por HIV-1 se transforma em doença", explicou Kamel Khalili, professor do Departamento de Neurociência da LKSOM, à agência de notícias da Temple University.
A edição genética de plantas e animais alimenta controvérsias porque não é simples determinar se um organismo sofreu mudanças em seus genes devido a mutações genéticas naturais ou à manipulação pelo CRISPR, ao contrário de organismos transgênicos, que podem ser detectados com mais facilidade. Isso representa um desafio em termos de regulação e fiscalização dos alimentos produzidos por meio dessa ferramenta.
Outra controvérsia é a falta de conhecimento sobre as consequências dessas edições na biodiversidade, que já permeia a polêmica em torno dos alimentos transgênicos.
Há ainda discussões em torno da possibilidade de edição de embriões humanos. A posição da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), por exemplo, manifestada em 2015, é de que a técnica seja utilizada apenas com finalidades terapêuticas, diagnósticas e preventivas e não para tratamentos que gerem modificações hereditárias - ou seja, que gerem indivíduos geneticamente modificados.
Nas aplicações terapêuticas embrionárias, a controvérsia é dupla: primeiramente pelas implicações, ainda pouco conhecidas, que essas alterações em embriões poderiam trazer para futuras gerações. Além disso, mesmo se bem-sucedidos, há o risco desses tratamentos se tornarem pouco acessíveis, possibilitando uma espécie de elitismo genético no qual apenas os mais ricos possam gerar linhagens livres de doenças genéticas. Quanto às aplicações não terapêuticas, há o temor de que sejam realizadas modificações genéticas em seres humanos por motivos puramente estéticos, como a cor dos olhos, cabelos etc., características capazes de gerar distorções sociais e reduzir a diversidade.
Mas uma das maiores polêmicas é a facilidade de uso e aplicação do CRISPR fora de um ambiente profissional. O uso amador dessa ferramenta, sem qualquer norma de segurança, implica em novos riscos biológicos, como os que envolvem as atividades de biohackers como Josiah Zayner, citado no início deste texto. Ele montou uma loja para venda online de de kits "faça você mesmo" para clientes interessados em alterar o DNA de certos microorganismos com CRISPR/cas9, em casa.