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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo Apr./June 2018
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200008
MUNDO
GEOGRAFIA
Cartografia e as novas representações de tempo e espaço
Adriana Lopes Rodrigues
"Naquele império, a arte da cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma única província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do império uma província inteira. Com o tempo, estes mapas desmedidos não bastaram e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do império que tinha o tamanho do império e coincidia com ele ponto por ponto". No trecho dessa fábula de Jorge Luis Borges, publicada no livro História universal da infâmia (1935), o escritor argentino fala do empenho em criar mapas detalhados. Se coincidente ponto a ponto deixaria ele de ser uma representação. O mapa passaria a ser perfeito, a própria coisa do mundo.
A arte da cartografia existe na medida em que não se dispõe a um saber absoluto, mas se propõe a criar uma representação do real. Os cartógrafos usam termos como projeção e distorção. Enquanto a projeção procura ser uma relação matemática de proporções para a transposição daquilo que está no mundo físico para um plano no papel, a distorção seria um lembrete de que algo ficou de fora. Ambos os termos, projeção - enquanto transferência - e distorção - enquanto equívoco - reafirmam que o mapa precisa ser interpretado, é dependente de leitura atenta às suas condições de produção. Um mapa que coincidisse com a realidade condenaria a própria representação, resultando no apagamento do símbolo pelo real, a ausência de significado por ser algo em si. O que diria Borges diante do nível de detalhamento que temos hoje que, com a tecnologia que envolve satélites, confere aos mapas precisão de centímetros?
Atualmente, a densidade de informações possibilita correlações de dados via sensoriamento remoto que vão para além do alcance do olho humano, alterando profundamente nossas percepções do mundo e adicionando uma nova dimensão de linguagem para a representação do espaço. Assim, das verdadeiras obras de arte que eram os mapas medievais e renascentistas, chegamos à cartografia contemporânea, com mapas gerados por softwares capazes de analisar grandes massas de informação.
MUNDO NOVO
O sistema de informações geográficas (SIG), por exemplo, gera mapas com alto grau de detalhamento por meio de fotos aéreas, sensoriamento remoto, imagens de satélites, entre outros. No entanto, a percepção de que o mundo está sendo apreendido por meio dessas tecnologias da informação pode criar um efeito de transparência, de que, afinal, essa cartografia tecnológica, ao trazer maior detalhamento do mundo, seria capaz de desvelar o real. Mas, não se pode perder de vista a dimensão humana que envolve a interpretação.
No caso de imagens de satélite, por exemplo, há processos pelos quais tais imagens ganham sentido. Como explica Marko Monteiro, antropólogo e professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (DPCT/ Unicamp), na forma "bruta", a imagem de satélite é um pacote extenso de dados: sobre a quantidade de vegetação em determinada área, presença de determinados minerais, tipos de solos etc. No entanto, "a construção de evidências a partir de imagens de satélite depende da interação de especialistas com esse pacote de informações, uma relação mediada por protocolos de análise, softwares de processamento de imagem e a própria sensibilidade do cientista em perceber determinados fenômenos pelo olhar (sensibilidade construída pela experiência, formação e pela interação com outros cientistas)", afirmou em artigo em que discutiu a construção de imagens por meio do sensoriamento remoto (História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v.22, n.2, 2015). "Cada imagem de satélite é sempre mais do que uma imagem: ela é um conjunto de informações que, processado pelo cientista com o auxílio de ferramentas computacionais, torna-se uma imagem significativa", escreveu.
MAPAS NA DISPUTA POLÍTICA
O geógrafo britânico David Harvey ressalta que a representação cartográfica da Renascença desempenhou um papel fundamental para uma nova compreensão do espaço e do tempo. Em seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992), ele afirma: "De uma perspectiva etnocêntrica, as viagens de descoberta produziram um assombroso fluxo de conhecimento acerca de um mundo mais amplo que teve de ser, de alguma maneira, absorvido e representado. Elas indicavam um globo que era finito e potencialmente apreensível. O saber geográfico se tornou uma mercadoria valiosa numa sociedade que assumia uma consciência cada vez maior do lucro. A acumulação de riqueza, de poder e de capital passou a ter um vínculo com o conhecimento personalizado do espaço e o domínio individual dele. Do mesmo modo, todos os lugares ficaram vulneráveis à influência direta do mundo mais amplo graças ao comércio, à competição intraterritorial, à ação militar, ao fluxo de novas mercadorias, ao ouro e à prata", escreveu.
É possível afirmar que as novas tecnologias cartográficas determinam novas relações de domínio do espaço e, ao mesmo tempo em que fornecem novas informações, abrem espaço para novas disputas. O monitoramento por imagens de satélite de áreas de desmatamento no Brasil exemplifica como a nova cartografia se insere nas disputas por territórios. No debate sobre a alteração do código florestal brasileiro, em 2011, o (então) senador Blairo Maggi (Partido Progressista) desqualificou os dados levantados pelo Instituto Nacional de Pesquisas, Inpe, argumentando que não tinha certeza de que os dados apurados pelo satélite estavam certos. Na época ele contratou técnicos para produção de novas informações. "O apagamento ou não dos aspectos humanos do monitoramento é sempre objeto de disputa", afirmou Monteiro. "Quando Blairo Maggi acusou o Inpe de mentir, o que estava em jogo era se as imagens eram politizadas ou objetivas. Quando ele sugere medidas alternativas de desmate, ou quando o Inpe busca reiterar a robustez do seu sistema, está em jogo aí também se o fator humano distorce ou não as imagens", completa. Na opinião do pesquisador não há como separar o fator humano do científico, desde o processo de produção das imagens até o momento em que elas circulam socialmente e tornam-se também objeto de debate e controvérsia social.