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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.70 no.2 São Paulo Apr./June 2018
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000200014
ARTIGOS
ENSAIOS
Arte e inovação: reflexões a partir do filme Nise, o coração da loucura
Lecy Sartori
Antropóloga e pós-doutoranda do Instituto de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E- mail: lecysartori@gmail.com
A partir da "arte do inconsciente" apresento o modo como o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira possibilitou a invenção de outra relação com os internos do hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, em meados da década de 1940. O ponto de partida são algumas reflexões sobre o filme Nise, o coração da loucura (2015). De forma geral, destaco as intervenções psiquiátricas operadas na época para mostrar um contraste entre os tratamentos que eram prescritos no hospital e as práticas implementadas por ela. A ideia principal é apresentar o trabalho de Nise, sua contribuição para a teoria psicanalítica e seu reconhecimento por meio da fundação do Museu do Inconsciente.
O filme Nise, o coração da loucura é dirigido por Roberto Berliner, formado pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi produtor de filmes como: Bruna Surfistinha (2011) e Gabriel e a montanha (2017). Atuou no centro de documentação da TV Globo e foi diretor de reportagem do seriado Juba e Lula, na mesma emissora. Além de dirigir videoclipes premiados e conduzir a produtora TVZero, Berliner dirigiu a série Free jazz, que estreou em 1996 e documentou tendências musicais em diferentes cidades. Em 1997, inaugurou o projeto "Som da rua" e registrou, em minidocumentários, a vida de artistas de rua em todo o país. Dirigiu os documentários Angola (1991) e Todos os corações do mundo (1995). Parece-me que o seu reconhecimento foi intenso após o documentário A pessoa é para o que nasce, de 2003, que angariou prêmios em festivais nacionais (melhor filme no 15º Cine Ceará) e internacionais (melhor filme no festival Play Doc, Espanha). Emocionou o público com o documentário Hebert de perto (2009). Em 2008, lançou Pindorama - a verdadeira história dos sete anões. Seu último documentário foi a A farra do circo, que estreou em 2014 - mesmo ano do lançamento do longa-metragem Julio sumiu.
Em 2015, estreou o filme Nise, o coração da loucura, que narra a experiência de Nise da Silveira (interpretada pela atriz Gloria Pires) no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro (primeiro hospício do Brasil, inaugurado com o nome de Pedro II, em 1852), na cidade do Rio de Janeiro. Após oito anos de exílio, entre os anos de 1936 e 1944, que decorreram aos 18 meses de detenção pelo porte de livros marxistas, Nise retoma o exercício de sua função como psiquiatra na instituição. Nesse contexto, a médica se depara com os procedimentos considerados "modernos" (como a eletroconvulsoterapia [1], o choque insulínico e a lobotomia), que atestavam a cientificidade da psiquiatria como um saber médico. Impedida de clinicar, depois da recusa em prescrever tais procedimentos aos pacientes do hospital, ela foi realocada para o setor de terapia ocupacional. Nesse espaço, Nise constrói o ateliê de pintura e desenvolve a sua assistência aos clientes (forma como eram denominados os pacientes) por meio de recursos artísticos, abolindo intervenções violentas, incentivando as relações de afeto e o convívio com animais domésticos. As cenas do longa-metragem foram filmadas, durante dois meses, no Instituto Nise da Silveira, antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II.
PSICOCIRURGIA
O filme suscita algumas discussões interessantes, por exemplo, sobre o discurso de cientificidade da psiquiatria vigente na década de 1950, que afirmava a efetividade de métodos como a lobotomia (ou psicocirurgia ou leucotomia pré-frontal) e a eletroconvulsoterapia a partir da constatação de que os pacientes deixavam de ser agressivos e, assim, poderiam receber a alta hospitalar. Na história da psiquiatria, o procedimento da leucotomia foi considerado uma técnica inovadora e seus entusiastas procuravam minimizar os impactos negativos (ou sequelas). A psicocirurgia era indicada para paciente que apresentavam sintomas delirantes, tensão obsessiva compulsiva e síndromes de ansiedade crônica [2].
No Brasil, a psicocirurgia recebeu um grande apoio dos psiquiatras e neurocirurgiões, sendo que alguns deles participaram de um conclave para eleger o neurologista português Antônio Egas Moniz (inventor da técnica da leucotomia em 1935 [3]) ao prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949 (indicado pela invenção da técnica da encefalografía arterial). Um desses médicos foi o neuro-cirurgião Aloysio Mattos Pimenta, que realizou a primeira leucotomia no hospital psiquiátrico do Juqueri, em 1936. Segundo Pimenta, a eficácia da psicocirurgia era medida por meio dos resultados clínicos "bastante favoráveis" [2], que foram constatados em uma pesquisa realizada com o neurologista Paulino Longo e com o psiquiatra Joy Arruda. Conforme o resultado da pesquisa, das 21 pessoas operadas 1/3 não melhoraram, cinco pessoas melhoraram um pouco, três melhoraram, seis foram curadas; ainda, sete continuaram hospitalizadas, oito receberam alta e seis receberam alta e se tornaram incapacitadas para o trabalho. Para os pesquisadores, o sucesso da lobotomia era maior quando executada de forma precoce ou "antes que a doença mental determinasse o rebaixamento mental irremovível" [2]. Esse discurso legitimava a indicação da intervenção cirúrgica para as crianças esquizofrênicas. Além das crianças, os casos de ansiedade crônica e esquizofrenia paranoide eram os que mais se beneficiavam com a psicocirurgia.
Apesar de reconhecido e publicamente discutido na 1ª Conferência Internacional de Psicocirurgia, em 1948, "um dos maiores inconvenientes do método" [4] ou uma das piores consequências físicas da leucotomia é "a diminuição ou regressão do estado mental das pessoas" [3]. Foram constatadas outras sequelas como as "alterações de personalidade, a imprevisibilidade das reações, a regressão geral e uma taxa de morbidade e mortalidade que se agravava a [longo] prazo" [5]. Segundo o psicólogo Walter Melo, a "lobotomia transforma uma desordem funcional numa doença orgânica de caráter irreversível" [6].
Em uma das cenas finais do filme, em uma exposição dos quadros dos clientes, um dos psiquiatras questionou Nise acerca da eficácia dos seus métodos. Ela afirmou que seu instrumento era o pincel enquanto o dele era o picador de gelo. Nesse diálogo, Nise se refere ao instrumento utilizado na lobotomia para suprimir a conexão do lóbulo frontal com o restante do cérebro dos pacientes.
O filme destaca o posicionamento de Nise contra os protocolos de tratamento psiquiátricos defendidos por médicos daquela instituição que procuravam a cura da doença mental. Esses psiquiatras calculavam a efetividade do procedimento da lobotomia por meio do número de altas médicas que diminuíam a superlotação dos hospitais psiquiátricos, um problema enfrentado pela administração pública da época. O filme evidencia que a escolha pela lobotomia era feita pelo médico e autorizada pela família, o paciente não consentia o procedimento.
Pode-se observar no filme que Nise buscou impedir que um dos seus clientes fosse lobotomizado. Ao contatar sua família e mostrar a sua produção artística, Nise atestava a melhora geral em seu quadro clínico. Apesar de suas tentativas, não conseguiu impedir que três clientes do ateliê de pintura passassem pelo procedimento cirúrgico. No entanto, Nise produziu uma análise comparativa das produções plásticas realizadas por eles antes e depois da psicocirurgia. Sua intenção era evidenciar os efeitos do procedimento, como a separação entre o pensamento e os estados emocionais, perda da capacidade de síntese, de abstração, de criação, de planejamento. Diferente dos transtornos emocionais e da agitação, os clientes, após a lobotomia, pareciam autômatos. Suas reflexões foram publicadas [7] com a intenção de evitar que outras pessoas fossem submetidas à lobotomia. Mesmo com todo o empenho de Nise, a prática da psicocirurgia não foi substituída de imediato, mas aos poucos pela substância clorpromazina, sintetizada no início da década de 1950. O uso da medicação psicotrópica foi o principal fator para a diminuição da prescrição da lobotomia.
CURA PELA ARTE E PELO AFETO
Declaradamente inspirada por obras do filósofo holandês Baruch Spinoza (1632 - 1677), pela literatura de Machado de Assis (1839 - 1908) e pelas obras do poeta, ator e dramaturgo francês Antonin Artaud (1896 - 1948), Nise da Silveira institui o ateliê de pintura com a ajuda do artista plástico Almir Mavignier, que na época era estudante de pintura e funcionário do hospital. O objetivo do ateliê era assistir os clientes e estimular a expressão artística (como a pintura, a modelagem e a música). A expressão artística era entendida como uma forma de possibilitar ao indivíduo exprimir as suas emoções a partir da prática ocupacional. Nas palavras de Nise: "a terapia ocupacional como a emoção de lidar e suas consequências" [8]. Essas atividades expressivas eram consideradas terapêuticas.
Nas ações de terapia ocupacional, acreditava-se que a relação de afeto era importante para promover um estímulo de vida para as pessoas internadas na Casa das Palmeiras (espaço de reabilitação dos internos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro). Uma forma de produzir afeto era estimulada por meio da relação que os clientes estabeleciam com os animais, cães e gatos que assumiam a função de "co-terapeutas" [9]. Segundo Nise, os clientes, ao cuidarem dos animais, produziam uma relação de responsabilidade e desenvolviam laços afetivos que, por sua vez, contribuíam para a sua própria reabilitação.
Pavão [10], em sua etnografía, além de descrever a relação entre humano e animal na equoterapia, apresenta os efeitos que a terapia com cavalos provoca tanto no corpo, como na saúde e no bem-estar humano. A autora explica que a zooterapia é estabelecida por meio de um vínculo com o animal e com partes do seu corpo que emanam um potencial de cura ou uma capacidade agentiva. Essa relação terapêutica é composta por uma intencionalidade do cavalo e por sua capacidade de prever e perceber as ações humanas. Diferente das reações que a equoterapia provoca no corpo físico, Nise observava como a relação de responsabilidade de cuidar e alimentar um animal promovia nos clientes um processo de organização dos seus sentimentos. Foi o caso de um cliente que amenizou suas ações consideradas agressivas, que eram investidas contra os trabalhadores do hospital, depois de estabelecer uma relação de afeto e responsabilidade por um cão abandonado.
O ateliê de pintura era um espaço de experimentação. Estimulados por Nise, os clientes experimentavam formas de manobrar suas emoções por meio da produção de esculturas e pinturas. Para divulgar o trabalho realizado no ateliê e as inúmeras obras produzidas, em 1952, foi inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente. Nise, além de promover mostras públicas, organizou um grupo de estudo para discutir e analisar as expressões plásticas espontâneas, como as mandalas. Estudiosa da teoria do psicanalista suíço Carl Gustav Jung (19875 - 1961) sobre os arquétipos, Nise destacava as mandalas como símbolos que mostravam a tentativa de reorganização da psique esquizofrênica. Contrária à ideia psicanalítica de que esquizofrênicos não estabelecem relações de transferência, Nise atestou a capacidade dos clientes em produzir relações afetivas manifestadas na pintura e na relação com os animais. Segundo Nise, a terapia ocupacional é uma forma de psicoterapia não verbal em que o indivíduo se expressaria em uma linguagem arcaica, coletiva e universal.
No filme observamos como o ateliê de pintura foi transformado, com a ajuda de Almir Mavignier, em um espaço de encontro entre artistas e críticos de arte. A experiência no ateliê fez com que muitos artistas questionassem a formação acadêmica e o modernismo figurativo (movimento artístico que se inicia no fim do século XIX) [11]. O crítico de arte Mário Pedrosa, ao analisar as obras produzidas no ateliê, formulou o conceito de "criação livre", que remete às criações desprendidas de associações mentais já executadas e de fórmulas prontas. Segundo Pedrosa, a produção artística precisaria estar desatada da atividade consciente - em suas palavras: o "que é a arte, afinal, do ponto de vista emotivo, senão a linguagem das forças inconscientes que atuam dentro de nós?" [12].
A partir do filme é possível refletir sobre o modo como o saber psiquiátrico era operado, na década de 1950, por meio de métodos que visavam uma intervenção no corpo, um conhecimento fundamentado em um saber que procurava se constituir como uma psiquiatria clínica e neurológica. Esse modelo biológico da psiquiatria fisicalista [13] se constituía enquanto uma verdade apresentada por meio dos resultados das intervenções consideradas efetivas, que eram publicadas e expostas em congressos nacionais e internacionais. O que acontece nesse período é, creio, o surgimento de uma prática discursiva que legitima as intervenções cirúrgicas indicadas para "tratar" ou "curar" determinados comportamentos, como observamos no filme, agressivos e agitados. Apesar da constatação dos efeitos nefastos da lobotomia, o dispositivo psiquiátrico [14] legitimava suas intervenções acionando os enunciados, os discursos de verdade e, por conseguinte, as publicações e as apresentações em congressos. Por fim, o filme apresenta a inventividade do trabalho de Nise empreendido por meio da relação de afeto, seus resultados teóricos e a sua importância não apenas para as pessoas que viviam internadas, mas para os campos da psiquiatria e das artes plásticas em geral.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. O procedimento, denominado atualmente de eletroconvulsoterapia, deve ser consentido pelo usuário e realizado em hospital com anestesia (cf. resolução n. 1.640/2002). Para uma descrição do procedimento indico o livro O Capa-Branca: de funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil (escrito por Faria & Sonim, publicado em 2014 pela editora Terceiro Nome) e a maté ria "Eletrochoque" da Revista Piauí, 21.
2. Longo, P. W.; Pimenta, A. M.; Arruda, J. "Lobotomia pré-frontal. Resultados clínicos em hospital privado". Trabalho do Serviço de Neuro-Psiquiatria do Instituto Paulista (diretor-clínico: Prof. Paulino W. Longo), apresentado ao Congresso Internacional de Neurocirurgia, realizado em Lisboa. Arq. Neuro-Psiquiatr. [internet] v.7, n. 2, p. 126-140. Apr./Jun., 1949.
3. Cabral F. G.; Gusmão, S.; Silveira, R. L. "Egas Moniz e a neurocirurgia brasileira". [internet] Arq Bras Neurocir v.19, n.3, p.136-139. 2000.
4. Correia, M.; Marinho, M. G. S. M. C. "A 1ª Conferência Internacional de Psicocirurgia e a influência dos cientistas brasileiros na atribuição do prêmio Nobel a Egas Moniz". História da psiquiatria: ciência, práticas e tecnologias de uma especialidade médica. São Paulo [internet] p. 11-28. 2012.
5. Ibidem, p. 22.
6. Melo, W. "Nise da Silveira e o campo da saúde mental (1944-1952): contribuições, embates e transformações". Mnemosine v.5, n. 2, p. 30-52. 2009.
7. Foram publicadas no I Congresso Mundial de Psiquiatria, realizado em Paris (1950), no I Congresso Latino Americano de Saúde Mental, realizado em São Paulo (1954), e na revista Medicina, Cirurgia e Farmácia, sob o título: "Contribuição ao estudo dos efeitos da leucotomia sobre a atividade criadora".
8. Silveira, N. da. Do mundo da caralâmpia à emoção de lidar. [vídeo youtube] 1992.
9. Silveira, N. da. Gatos, a emoção de lidar. Léo Christiano Editorial. Rio de Janeiro. 1998.
10. Pavão, L. C. "Montaria a cavalo: um convite ao estudo antropológico sobre a relação entre humanos e animais na equoterapia". Revista Latinoamericana de Estudios Críticos Animales, v. 2, p. 99-115. 2014.
11. Toledo, M. S. R. de. "Entre a arte e a terapia: as 'imagens do inconsciente' e o surgimento de novos artistas". PROA: Revista de Antropologia e Arte, v. 1, n. 3, 2011/2012.
12. Pedrosa, M. Arte, necessidade vital. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil. 1949.
13. Magaldi, F. S. "Imagens do inconsciente: pessoa e visualidade no projeto médico-científico de Nise da Silveira". V Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia - Porto Alegre. P. 1-16. 2015.
14. Foucault, M. 2006. O poder psiquiátrico. Curso dado no Collège de France (1973-1974). Editora Martins Fontes, São Paulo.