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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.70 no.3 São Paulo July/Sept. 2018

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602018000300003 

    TENDÊNCIAS
    ENTREVISTA

     

    Sergio Mascarenhas: parte da história da ciência do Brasil

     

     

    Patricia Mariuzzo

     

     

     

    Uma conversa com Sérgio Mascarenhas é como brincar com uma boneca russa. Do mesmo modo que uma boneca vai surgindo de dentro da outra, histórias brotam de histórias. Elas contam do menino que saiu no Rio de Janeiro, foi um mau aluno, estudou em um internato na adolescência, escrevia poesias, achou que seria advogado, mas acabou estudando física e química e se tornou um dos mais respeitados cientistas brasileiros. "Eu fui um mau aluno, desses que dava trabalho para os professores na escola. Depois da faculdade, no entanto, eu percebi que adoro dar aulas, nasci professor e quanto maior a turma melhor. Adoro o burburinho da sala de aula", contou ele. Sérgio é graduado em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 1952) e em química pela mesma instituição (1951). Professor aposentado do então Instituto de Física e Química da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos. Foi professor visitante em diversas universidades dos Estados Unidos, México, Japão, Reino Unido e Itália. Fundou e dirigiu diversas instituições, como o Instituto de Física e Química da USP de São Carlos e o Centro Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento de Instrumentação Agropecuária em São Carlos (Embrapa). Também criou o primeiro curso de engenharia de materiais do país, que começou a funcionar na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Uma de suas mais importantes contribuições é o Braincare, primeiro método não invasivo para mensurar a pressão do interior do crânio (PIC). Em 2018, ele completou 90 anos e ainda não parou de dar aulas ou de pesquisar. Publicou este ano Novos olhares de Janus (Funpec Editora, 2018), continuação do livro anterior Os olhares de Janus (Embrapa, 2009), onde ele reuniu crônicas de suas experiências com pesquisador, educador e empreendedor. Com uma trajetória tão rica e uma contribuição fundamental para a ciência brasileira, Sérgio Mascarenhas é um dos nomes inescapáveis na história da SBPC, em seus 70 anos. Veja abaixo a entrevista que ele concedeu para a revista Ciência & Cultura.

    Ciência & Cultura (C&C): Desde quando o senhor é associado da SBPC? Destacaria algum momento dessa trajetória?

    Sérgio Mascarenhas (SM): A SBPC foi uma das únicas instituições que protestava publicamente contra a ditadura e contra as prisões ou aposentadorias compulsórias impostas aos cientistas. Eu tenho uma história muito marcante nesse sentido. Quando eu era vice-presidente, na gestão do Warnick Kerr (1971 - 1973), nós organizamos um encontro onde foi elaborado um manifesto contra a prisão e a tortura de cientistas brasileiros e decidimos levar a carta pessoalmente para o então ministro da Educação Jarbas Passarinho. O presidente era Emílio Garrastazu Médici. Fomos eu, o Kerr e o Simão Matias, químico da USP, então secretário geral. Sem muitos recursos para comprar passagens de avião, nós alugamos um pequeno avião, mas quando chegamos em Brasília nosso pouso não foi autorizado. Fomos forçados a descer na pista de um pequeno aeroclube de Lusiânia, em Goiás, a cerca de 50 quilômetros de Brasília. Para você ter uma ideia, tivemos que fazer um voo rasante para afastar o gado que ocupava a pista. Chegando lá, tivemos que ir a pé até a cidade para conseguir um transporte para Brasília. Quando finalmente chegamos e entramos na sala do ministro, a primeira coisa que ele fez foi virar uma ampulheta na mesa, indicando que teríamos pouco tempo para falar. O clima era tenso. Nós mencionamos várias pessoas que tinham sido presas. Passarinho, no entanto, disse que não havia muito a fazer, alegando que aquelas decisões estavam acima dele. Na viagem da volta, a tensão foi substituída por uma profunda tristeza com o destino do país.

    C&C: Um dos vários projetos nos quais o senhor está envolvido é o Braincare, primeiro método não invasivo para mensurar a pressão do interior do crânio (PIC). Nesse projeto o senhor trabalha com alunos que o senhor mesmo formou. Como acontece esse diálogo com os mais jovens?

    SM: Essa é uma pergunta importantíssima. Eu acredito na importância de dar continuidade a uma escola, de contribuir com a árvore genealógica da ciência. O professor que não tem alunos melhores do que ele, falhou! Essa é uma frase que eu repito em todas as entrevistas que dou. O bom professor deve incentivar o aluno, desejar que ele seja melhor, a despeito do seu próprio ego e vaidade. Eu sempre me lembro daquela frase de Isaac Newton: "Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes". No caso do professor, esse gigante tem que ser o próprio aluno. Caso contrário, não há escola, não há progresso! Essa é uma questão fundamental para a educação.

    C&C: O senhor tem uma carreira longa como professor titular na Universidade de São Paulo (USP), no Instituto de Física e Química da USP São Carlos. O que mudou ao longo dos anos na universidade?

    SM: Nada! Como disse o escritor italiano Giuseppe di Lampedusa (1896-1957), tudo mudou para permanecer o mesmo! Sabe por quê? Porque a universidade que nós temos hoje está muito ruim. Para entender isso, precisamos visitar a história, pois sem isso não dá para pensar no futuro. E esse é o verdadeiro perigo. Pior do que não conhecer o passado é não ter um GPS para o futuro. Então vamos lá: a universidade começou a se formar na Idade Média, mais precisamente na Itália. A Universidade de Bolonha é considerada a mais antiga da Europa. O modelo de organização dessa universidade foi feito a partir das profissões que existiam na sociedade. Por exemplo: você é ferreiro, trabalha com ferro, então você vai ser engenheiro. Você é barbeiro, trabalha com uma navalha, então vai ser médico. Criou-se, desse modo, a pior coisa do mundo, os departamentos, sem interdisciplinaridade. Daí que o médico não fala com o engenheiro, que não fala com o historiador, que tem medo de matemática. Eu conheço um exemplo de universidade no mundo que não é organizada por departamentos, mas por projetos: a Universidade de Tsukuba, no Japão. Projetos que têm começo, meio e fim. Os departamentos criam muros. A universidade que temos hoje tem que mudar! Temos que fazer uma espécie de ontologia do ensino superior, ou seja, olhar para o passado criticamente. Tem uma frase de um amigo meu que eu gosto muito, o professor José Policarpo Gonçalves de Abreu, atual diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig): "seja o passado meu mestre, mas não o meu senhor!"

    C&C: Um dos desafios da universidade do século XXI é se aproximar da sociedade, seja da indústria, do mercado, na área da saúde e também das escolas. O senhor participou de um programa em São Carlos que envolveu o Instituto de Física e as escolas da cidade. Pode falar um pouco desse projeto?

    SM: A ideia que estava na base desse projeto é acabar com os muros entre a universidade e a comunidade. É fazer a universidade caminhar para a sociedade e não para uma zona de conforto, para a chamada Torre de Marfim. Outro meio de proporcionar essa aproximação é incentivando o empreendedorismo entre os estudantes e pesquisadores. Além disso, a universidade tem que se conectar com os jovens nas escolas, se abrir para eles. Os professores das universidades deveriam visitar as escolas do ensino fundamental e médio, para falar das carreiras científicas, incentivar e despertar o interesse dos jovens pela ciência.

    C&C: Ainda sobre os jovens, em um país com tantos desafios, como envolver a juventude no projeto de Brasil melhor?

    SM: O que responde a essa pergunta é o conceito de bônus demográfico (período em que a população ativa é mais numerosa do que a população de jovens), porque precisamos de políticas de Estado, de médio e longo prazo, não de políticas de governo, onde a pessoa que entra destrói o que o anterior fez. Nossa população está envelhecendo, por isso temos que tratar das duas pontas: os jovens e os velhos. As mulheres jovens são motivo de grande preocupação para mim. Nós vivemos em um país machista, onde mulheres e homens são educados de maneira diferente. Infelizmente, a mulher ainda é educada para obedecer ao homem. É por meio da educação da mulher jovem que você consegue reduzir o machismo. Por isso eu estou criando um projeto, que será lançado este ano, chamado "Prêmio Marie Curie para jovem cientista brasileira", inspirado nessa pesquisadora que foi a primeira mulher a ganhar um Prêmio Nobel. No primeiro ano eu quero, com recursos próprios, conceder uma bolsa para uma jovem ainda na escola fundamental para iniciação científica. O objetivo é dar uma demonstração para a sociedade de que ciência sem mulher não vai dar certo, porque quando você perde esse contingente de jovens você está desperdiçando 50% da cognição do nosso país. Para dar continuidade a esse projeto, eu estou convocando empresários brasileiros a fazer um fundo para a jovem cientista brasileira. Eu vou percorrer algumas escolas públicas para divulgar o projeto. Eu acho fundamental transformar as ideias em coisas concretas, senão vira só fumaça, vaidade e ego. Ideias são importantes para fazer nascer uma nova realidade.

    C&C: Falando nisso, como o senhor vê o papel da mulher na ciência e na sociedade?

    SM: Me incomoda muito a diferença entre homens e mulheres. Temos que parar de ensinar a mulher a depender do marido. Isso não tem o menor sentido e gera grande prejuízo para a sociedade. Falando como um cientista, eu posso afirmar que a mulher, na função biológica geradora, é muito mais complexa do que o homem. Todos nascemos fêmeas, o macho é uma variante tardia na evolução embriológica. Nós homens somos mulheres de segunda classe. No entanto, como o homem é fisicamente mais forte, ele se impôs socialmente, deixando a mulher escrava dos filhos e do marido. Felizmente isso está mudando. Pouco a pouco, elas estão assumindo seu potencial, não apenas como geradoras de vida, mas como geradoras de conhecimento. A ciência não pode prescindir disso.

    C&C: O senhor estudou química e física, mas também fala frequentemente de assuntos da economia, filosofia, história. Quando ficou fácil aprender?

    SM: Há dois tipos de intelectuais. Os que sabem muito sobre pouco e os que sabem um pouco sobre muito. Há que se respeitar os dois. Eu admiro pessoas que tem um conhecimento profundo sobre um assunto. Mozart era assim, um gênio revelado ainda criança. Nesse sentido eu me considero um homem de conhecimentos superficiais. A única pessoa que eu conheci que tinha os dois perfis ao mesmo tempo foi o físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), responsável pelo desenvolvimento do primeiro reator nuclear. Eu acho que a facilidade para aprender tem a ver com uma abertura para a transdisciplinaridade. Me lembro do Mito de Sísifo, personagem da mitologia grega que, punido pelos deuses, é condenado a empurrar uma grande pedra montanha acima, para depois vê-la cair quando ele alcança o cume. Eu tenho uma leitura mais construtiva desse mito: cada vez que Sísifo alcança o topo da montanha, ele consegue ter uma visão do todo, ele vê além do que via quando estava na parte de baixo. Trata-se de uma epifania. Isso significa também ver além do conhecimento especializado, olhar de modo transdisciplinar. Eu acredito que o esforço de Sísifo, que também é o nosso esforço de conhecer, deve levar a uma visão prospectiva e mais inteligente dos cenários.

    C&C: Isso tem a ver com a terceira cultura, que o senhor menciona frequentemente?

    SM: Sim, exatamente. Eu falo do que foi defendido pelo físico e romancista inglês Charles Percy Snow, já no início da década de 1960, em seu livro As duas culturas (1959). Ele se referiaà falta de diálogo entre uma cultura científico-tecnológica e uma cultura humanista. Eu penso, assim como Snow, que o futuro virtuoso da humanidade depende dessa terceira cultura, onde convivem o cientista-tecnólogo, com sua linguagem quantitativa, baseada na matemática e na lógica e o humanista, que expressa emoções, afetos e valores sociais e éticos.

    C&C:Como incentivar o aprendizado nas crianças?

    SM: A tecnologia pode ser uma aliada nessa empreitada. As pessoas confundem conhecimento com cognição. O conhecimento está espalhado por aí, mas ele só tem valor quando é apropriado. Cognição é quando você se apropria do conhecimento. Eu leio muito, tenho 70 livros no meu celular. Levo isso comigo para todo lugar. Eu acho que o livro digital é a maior invenção que houve para a cognição. O garoto de hoje é completamente diferente do garoto que eu fui, e das crianças que meus filhos foram. Eu defendo que as crianças, os jovens tenham acesso à tecnologia, que tenham celulares, tablets. As pessoas têm medo disso. Ele pode ser altamente instrutivo para cognição. É claro que há que se tomar cuidados porque um celular pode ter conteúdos prejudiciais também. O que temos que fazer é ter uma política de Estado para o ensino a distância, para a leitura digital. A tecnologia une, mesmo que aparentemente ela pareça isolar as pessoas. Na verdade, esses jovens estão conectados, estão em um mundo diferente do que nós conhecemos. Temos que entender e aproveitar isso.

    C&C: Ainda sobre tecnologia, o que o senhor espera das tecnologias emergentes como, por exemplo, a inteligência artificial?

    SM: A grande pergunta que já está em discussão: será que o computador vai ter inteligência igual ou superior à de um ser humano. Stephen Hawking e o Roger Penhouse (matemático e filósofo da ciência inglês, da Universidade de Oxford), são pesquisadores expoentes que discutiram esse assunto. Para Penhouse, a resposta é não. Nunca haverá um computador capaz de superar a mente humana. Ele escreveu um livro famoso chamado A mente nova do rei (Campus, 1989). Hawking, ao contrário, acha que seremos colonizados pela inteligência artificial. É o que eu acho também, e isso me anima muito porque isso pode eliminar um grave problema do comportamento humano que é a dualidade que introduz incertezas ou que cria alienações, como as que fazem o homem acreditar em algo maior do que a realidade, em um deus. Ao fazer isso, você aliena sua compreensão do mundo e cria um deus, algo que foi altamente prejudicial na história humana. Com as máquinas não teremos isso.

    C&C: Que temas têm despertado seu interesse recentemente?

    SM: Eu tenho me dedicado à pesquisas sobre o cérebro e tenho aprendido muito sobre os outros e sobre mim mesmo. Tenho projetos que estão sendo apoiados pelo Ministério da Saúde e pela Organização Panamericana da Saúde (Opas). A neurociência desponta como uma disciplina fundamental para a compreensão do ser humano. É uma área de grande beleza. Para mim pensar é uma grande festa. Pena que acaba! Eu adoro a vida, mas tenho plena consiência de que a morte está sempre presente. O Nietzsche dizia que a única coisa que nos faz valorizar a vida é a morte. Ele está certíssimo!